"Nós damos muitas altas". Cuidados paliativos não se limitam a preparar a morte

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Adelina gosta de abraços sem tempo, de mãos entrelaçadas nas suas e dos sorrisos que a fazem mais feliz, sempre que recebe a visita da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos dos centros de saúde Maia/Valongo.

“Tanta gente”, sorri. Aos 92 anos, Adelina sofre de insuficência cardíaca. Há quatro anos, uma queda acidental na cozinha ditou a perda irremediável da autonomia.

Foi nessa altura que a filha assumiu o cuidado a tempo inteiro. À Renascença, Cecília admite que não sabe o que faria se não tivesse esta “ajuda tranquilizadora”.

“Fizeram um despedimento coletivo na empresa onde trabalhava em 2018”, conta esta cuidadora que viu a sua vida dar uma volta de 180 graus. Com a crise da Covid-19, sentiu-se na obrigação de não deixar os pais na solidão.

Pelo meio, divorciou-se, embora procure desculpar esse desfecho com os confinamentos e com as proibições de circulação entre concelhos: “Eu nasci em Gaia e vivi sempre em Gaia, mesmo depois de casar… Quando eu tive de vir para aqui, ele ficou sozinho”. Os pais vivem em Valongo: “São 25 quilómetros para lá e para cá, era demasiado e mais ainda nas horas de ponta."

O fim do casamento foi algo natural, mas Cecília garante que “não voltava atrás”.

Quando lhe perguntam se alguma vez pensou em procurar ajuda para si própria, Cecília faz uma pausa: “Não penso muito em mim… Tenho de dar o meu melhor para cuidar deles. Um dia, se Deus quiser, logo se vê se há tempo.

Sem conseguir ter acesso a apoios por ser cuidadora informal, Cecília está financeiramente dependente dos pais. “Ainda fui à Segurança Social para saber se podia fazer descontos para a reforma, mesmo não estando a trabalhar, enquanto cuido dos meus pais, mas disseram-me que não é possível”, conta.

A assistente social Maria do Céu Gradíssimo, que integra esta equipa de suporte em cuidados paliativos, fala em “injustiça potencial”. As mudanças introduzidas ao Estatuto do Cuidador Informal hão de corrigir essa situação, mas, “enquanto isso não acontece, esta senhora tem, de facto, a vida muito complicada”.

A mãe de Cecília é um exemplo entre milhares de pessoas com necessidades paliativas que só a muito custo conseguiram ter acesso a esses cuidados. “A espera até conseguir uma vaga foi um desespero.

O exemplo multiplica-se e chega a milhares de pessoas que necessitam de cuidados paliativos. Em Portugal, mais de 70% da população que precisa destes cuidados diferenciados não consegue aceder-lhes.

Manuel Barbosa é o médico que coordena esta equipa de intervenção em cuidados paliativos que serve os concelhos da Maia e de Valongo e que é composta por três médicos, três enfermeiros, uma psicóloga e uma assistente social.

“Neste momento, tratamos 22 doentes com necessidades paliativas”, diz Manuel Barbosa. O problema é a lista de espera: “Temos 30 doentes em lista de espera e isso é péssimo para eles e para os cuidadores”.

Nunca é um bom sinal”, acrescenta este médico paliativista que encontra na falta de profissionais uma parte da explicação para o problema. No caso concreto desta equipa que serve uma área com cerca de 250 mil habitantes, “necessitaríamos do dobro dos profissionais em todas as valências para dar resposta às necessidades”.

“O que incomoda são as palavras”

As rotinas da equipa já estão bem definidas e todos sabem o que têm de fazer. Às 9h00, a primeira reunião do turno passa em revista o dia anterior. Definem-se as prioridades, apontam-se as situações que pedem resposta mais urgente. É hora de fazer telefonemas, para saber como os doentes passaram a noite.

“Temos aqui uma situação de uma doente oncológica que visitamos ontem e que passou a noite muito instável. Éramos para ir de tarde, mas vamos ter de ir já”, comunicou o coordenador à sua equipa.

Chegados ao domicílio, o cenário confirma-se. A noite foi difícil. E há dúvidas que se adensam.

Palavras como ‘morfina’ ou ‘paliativos’ são sinónimo de alarme, de recusa e de negação. Incomodam. Parece que aproximam do fim da vida.

Às dúvidas colocadas da doente oncológica que tinha diante de si, Manuel Barbosa procurou tranquilizar: “A morfina não é o fim da linha, é o princípio”. Do outro lado, o olhar quase inexpressivo devolve desconfiança.

Era o nome que estava a incomodar a doente. O que incomoda são as palavras. Porque ela valorizou o facto de ter diminuído a dispneia e a dor. Era o nome que a incomodava e nós tivemos de desmistificar o nome”, explica.

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“A morte é um dos momentos mais importantes da vida”

Quando a medicina já não cura, ainda há vida. E enquanto há vida, há esperança. “Mas uma esperança realista, com expetativas ajustadas”, sublinha Lília Conde, uma das enfermeiras desta equipa que é responsável pelas áreas da saúde mental e do protocolo de luto.

O luto até os profissionais precisam de o fazer, “assim tenham a humildade de reconhecer que também são vulneráveis". E "Têm de ser capazes de construir a partir daí”, acrescenta a enfermeira.

Entre visitas domiciliárias, as viagens de carro são trabalho. Revê-se cada caso e cada proposta de cuidados. Revisita-se a memória de histórias que nunca se esquecem.

Lília Conde emociona-se ao contar o caso que, provavelmente, mais a terá marcado até hoje: “Faleceu há três anos”, inspira, suspire e chora. Depois, prossegue: “É o caso extraordinário de um doente que, em fim de vida, se reconciliou com a família e consigo próprio."

Tinha 41 anos, um cancro no pulmão e era portador de HIV Sida. “Tinha, também, algumas questões em relação à identidade”, aponta.

A mãe, com quem tinha os maiores choques de personalidade, foi quem voltou a dar-lhe o colo antes de partir. “Marcou-nos bastante”, remata Lília.

Subitamente, o carro dos domicílios foi tomado pelo silêncio. Nos cuidados paliativos, há muita vida que se completa no limite entre a vida e a morte. Há lugar ao amor e ao perdão que reparam tantos mal-entendidos da vida. Vive-se um dia de cada vez.

Inês de Carvalho, outra das médicas paliativistas da unidade Maia/Valongo, lembra que “a morte é um dos momentos mais importantes da vida” e precisa de ser vivida com dignidade.

Se as pessoas puderem ficar em casa, elas preferem isso ao ambiente hospitalar. E, felizmente, já vai havendo cada vez mais equipas que possibilitam essa situação”, indica.

Só que não chega. É preciso criar mais equipas, formar profissionais especializados. Por isso, mais cedo, ou mais tarde, Manuel Barbosa espera que seja criada “a especialidade médica em cuidados paliativos” que reconheça que “estes são cuidados diferenciados e extremamente complexos que precisam de grande especialização”.

E, quanto mais depressa, mais tempo se ganha. Em 2050, metade da população portuguesa deverá ter mais de 60 anos. Grande parte dos nascidos antes de 1990 serão doentes paliativos.

Cuidados paliativos não é só para quem está a morrer

Aliviar o sofrimento não é o mesmo que preparar a morte. “Nós damos muitas altas”, lembra Manuel Barbosa. “Na maior parte dos casos, são doentes não oncológicos."

Para este médico ,é decisivo desmontar a ideia de que cuidados paliativos são a última reta a caminho do fim: “Cuidados paliativos não é só para quem está a morrer nem só para doentes oncológicos”.

Manuel Barbosa faz, por isso, questão de apresentar a designação tecnicamente correta. Cuidados paliativos são para situações de “doença grave, ameaçadora de vida e para situações em que haja descontrolo sintomático que provoca grande sofrimento”.

Contudo, em muitos casos, a morte acontece. Quando assim é, há que continuar a cuidar de quem cuidou.

E depois do adeus? Não é, necessariamente, ficarmos sós”, garante.

Sempre que alguém parte, a Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos dos centros de saúde Maia/Valongo faz a triagem do luto para perceber se algum familiar necessita de ajuda, em caso de desenvolver luto patológico.

Ninguém fica sozinho. “E muito do que fica é gratidão”. Das famílias e dos profissionais de saúde.

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