‘Nunca, até hoje, nenhum Governo  reconheceu o que  o meu avô fez’

2 meses atrás 49

Salvador Reis é neto de Carlos Sampaio Garrido,  embaixador português na Hungria durante a II Guerra Mundial. O seu heroísmo, ao salvar centens de famílias de judeus, tornou-o numa das figuras mais relevantes da diplomacia portuguesa do século passado. Ainda assim, foi prejudicado mais tarde na sua vida e nunca foi devidamente reconhecido por Portugal.

O embaixador Carlos Sampaio Garrido, seu avô, deixou uma marca indelével na história da diplomacia portuguesa depois da atitude que decidiu tomar em Budapeste em 1944. Com a ocupação nazi da Hungria, e a consequente mudança de Governo para um subserviente de Berlim, os judeus começam a ser alvo de perseguições. O seu avô, com risco pessoal, decidiu salvar centenas de judeus. Pode-nos contar mais sobre isso?

O meu avô esteve na Hungria de 1939 a junho de 1944, já depois da ocupação da Hungria pela Alemanha. Já tinha vindo a perceber há uns tempos que poderiam, de facto, estar em perigo todas as pessoas de origem judia. Seriam pessoas perseguidas pelos nazis quando a Hungria fosse ocupada pelos alemães. Foi substituído o Governo que existia na altura por um Governo muito mais pro Alemão. Inclusive, o próprio Weichmann foi para a Hungria nessa altura para tratar rapidamente daquilo a que os alemães chamavam ‘a solução final’. Ora bem, o meu avô, nessa altura, começa a conceder passaportes e outros documentos de identificação para que alguns judeus escapassem. Fala-se que ele e quem o foi substituir, que foi o encarregado de negócios Teixeira Branquinho, tenham salvado perto de mil pessoas, tendo passado passaportes provisórios e, inicialmente, à revelia das ordens, ou pelo menos sem dar conta a Salazar. Nessa altura, a Hungria, e Budapeste especialmente, começou a ser bombardeada pelas tropas aliadas. Por causa disso, o meu avô resolveu sair de Budapeste e ir para uma cidade próxima, a cerca de 50 km, chamada Galgagyork, onde alugou uma casa na qual fez a Embaixada de Portugal e levou para lá com ele uma série de judeus, cerca de 30, que estiveram bastante tempo na embaixada para não serem perseguidos pelos alemães. No entanto, essa casa foi assaltada nos finais de abril pela Polícia húngara, não se sabe se também pela Gestapo, e levaram uma série de pessoas que se encontravam na embaixada. O meu avô não aceitou isso e disse que também queria ser preso com eles para depois tentar, devido à sua posição de embaixador, que as pessoas fossem libertadas. Foi agredido, teve problemas dos quais sofreu até ao final da sua vida, mas não deixou de fazer isso porque achava que era de facto o mais correto.

Chegou a ser declarado persona non grata e segue então para Berna, certo?

Sim, o Governo húngaro declara-o como persona non grata devido ao episódio que descrevi. Os aliados pressionaram Salazar para que baixasse o nível de representação diplomática em Budapeste, daí Salazar ter nomeado o encarregado de negócios Teixeira Branquinho para exercer essas funções na Hungria. O meu avô conseguiu aguentar-se em Budapeste até junho e daí parte para Berna, onde fica ainda algum tempo, pelo menos algumas semanas, e de onde, digamos, dava instruções a Teixeira Branquinho para ele continuar aquilo que tinha sido a ação do meu avô e, portanto, continuar a emitir esses documentos de proteção ao maior número possível de judeus. Nessa altura, Salazar autorizou a atribuição de passaportes portugueses a judeus húngaros, mas na condição de estes terem uma relação familiar, cultural ou económica com Portugal ou com o Brasil, já que o Brasil era diplomaticamente representado por Portugal na Hungria nessa altura. Quanto a esses documentos de proteção, fala-se em cerca de 700 passaportes provisórios sem indicação da nacionalidade portuguesa – uma condição de Salazar para que mais tarde essas pessoas não pudessem reclamar a cidadania portuguesa.

Falando de Salazar… no início o seu avô operou à revelia, como disse, mas sabemos que depois o Presidente do Conselho acabou por dar o aval com essas condições que acabou de descrever. Gozando Portugal de uma posição de neutralidade na II Guerra Mundial, teria Salazar o objetivo de se voltar a aproximar dos aliados, sendo que a Guerra estava já perto de conhecer o seu fim?

Sim, sem dúvida. Foi exatamente isso que acabou de dizer. Salazar, quando percebeu que a Guerra estava a cair para o lado dos aliados, passou a ter uma posição, digamos, mais flexível no salvamento dos judeus, permitindo que isso acontecesse. Portanto, o meu avô e o Teixeira Branquinho conseguiram, de facto, emitir documentos de proteção para toda essa gente ao mesmo tempo que arranjavam casas seguras em Budapeste para conseguir por lá a viver, escondidos dos alemães, uma série de pessoas judias húngaras.

O seu avô, Teixeira Branquinho e Aristides de Sousa Mendes são os três grandes nomes da diplomacia portuguesa na II Guerra Mundial…

Sem dúvida.

Mas o mais conhecido e falado é Aristides de Sousa Mendes?

Eu tenho sobre isso uma opinião muito pessoal. Desde sempre que se tentou de alguma forma fazer reconhecer pelo Governo português aquilo que o meu avô fez. Até ao 25 de Abril isso era impossível porque o regime, até essa altura, não queria que isso acontecesse. Depois do 25 de Abril, tentou-se de várias formas que houvesse esse reconhecimento, nomeadamente quando Aristides de Sousa Mendes é reconhecido. Não sei por que razão o meu avô nunca o foi.  Julgo que na altura era preciso haver algum herói português, e sem dúvida alguma que Aristides de Sousa Mendes foi um herói que teve um papel muito importante no salvamento de judeus. Fala-se que o Aristides de Sousa Mendes concedeu vistos a cerca de 30 mil pessoas, portanto, trinta vezes mais do que aquilo que o meu avô e o Teixeira Branquinho fizeram.

Os israelitas têm uma autoridade nacional para a memória dos mártires e heróis do Holocausto, que concede uma categoria de ‘Justos entre as nações’. Aristides de Sousa Mendes foi o primeiro a ser reconhecido como tal e mais tarde, já em 2010, essa distinção foi também concedida ao meu avô por esta autoridade israelita que se chama Yad Vashem. Foi dado a conhecer em Portugal aquilo que o meu avô e o Teixeira Branquinho tinham feito através de uma investigação académica de uma jornalista húngara em 1993 sobre aquilo que se chamava o ‘Triângulo Lisboa-Budapeste-Berlim’, e foi ela que deu a conhecer ao mundo, digamos assim, pelo trabalho que na altura que publicou, esta ação do embaixador Sampaio Garrido e de Teixeira Branquinho. Com base nisso, houve uma publicação com grande destaque de primeira página e que esteve nas primeiras sete ou oito páginas do jornal Público nessa altura, a dar conta daquilo que tinha sido a ação do meu avô e, logicamente, do Teixeira Branquinho. A partir daí, e meramente por acaso, tive de me deslocar à Embaixada da Hungria em Lisboa e em conversa referi que era neto de uma pessoa que tinha sido embaixadora na Hungria durante a guerra, ao que o Embaixador disse que lhe custava a acreditar que estava na presença de um membro da família de Sampaio Garrido. Ele andava, desde que estava colocado em Lisboa, à procura de conseguir contactar alguém da família porque o Governo húngaro, nessa altura, queria condecorá-lo, fazer-lhe uma homenagem e por aí fora.

Ainda hoje os dois são lembrados e terão a sua devida homenagem no dia 1 de julho em Budapeste, onde existem placas comemorativas com os nomes gravados. Quão importante é para a família ver que os esforços – carregados de heroísmo – de um dos seus são ainda reconhecidos e celebrados?

Acima de tudo, para mim há duas questões que são muito importantes: a primeira é lembrar para não esquecer, ou seja, há que continuar a falar-se nestas atrocidades que foram cometidas durante a II Guerra Mundial para que isso não seja esquecido e para que nunca mais volte a acontecer algo desse género. Por outro lado, digamos que esta ação do meu avô é carregada, para mim e na minha opinião, de um grande simbolismo de humanismo. Ele, de facto, com risco da própria vida, e posteriormente tendo sido mesmo prejudicado na sua carreira por Salazar, não se coibiu de ter esta ação porque ia ao encontro daquilo que era a sua forma de ser e de pensar.

E foi prejudicado por Salazar porquê?

Porque Salazar não concordou com aquilo que ele fez, até porque ele começou por fazê-lo à revelia de Salazar. Portanto, e como todos sabemos, não podia haver desobediência ou iniciativas que não tivessem o acordo dele. Assim, o meu avô quando saiu da Hungria teve uns tempos no Ministério e depois ainda foi nomeado embaixador em Oslo, onde esteve apenas um ano, e depois foi compulsivamente reformado, não tendo sido promovido, com tinha direito a ser, na sua carreira diplomática. Não teve mais nenhum cargo depois de 1951, se não estou enganado, e depois teve problemas na sua reforma, problemas de ordem económica e etc. Tudo isso foi o castigo que Salazar lhe deu pela sua rebeldia em relação aquilo que eram as ordens e o controlo que Salazar exercia sobre os seus funcionários, fossem diplomatas ou não.

Mesmo que Salazar depois tenha acabado por concordar com o que o seu avô fez…

Não sei se ele concordou. Ele foi, de alguma forma, obrigado a concordar, acima de tudo pelos aliados que exerceram nessa altura uma grande pressão sobre o regime português.

Num registo mais pessoal, já que descreveu perfeita e detalhadamente os acontecimentos e toda a história, quero perguntar-lhe, sendo neto de uma figura como Carlos Sampaio Garrido, que memórias – escritas ou pessoais – guarda dele?

O meu avô morreu quando eu tinha nove anos, portanto não tenho grandes memórias. Lembro-me de ir muito a casa dele. Ele Ficou a morar no Estoril, eu ia lá muito e passeava com ele. Ele gostava muito de passear e levava-me a mim, aos meus irmãos e aos meus primos a passear ali pelo Estoril. Mas depois dele ter morrido, e, portanto, já eu com uma idade maior, lembro-me especialmente da minha mãe falar vagamente do que se tinha passado na Hungria. Mas eu acho que guardava muito para ele a sua estadia na Hungria e por tudo aquilo que passou, não contava grandes coisas. É evidente que especialmente não contava a um miúdo de oito ou nove anos, como eu na altura. E, portanto, sobre a sua estadia lá não tenho memórias porque ele nunca falou delas comigo, com o meu irmão ou com os meus primos. No entanto, lembro-me que era uma pessoa extremamente simpática, agradável. Lembro-me de ele passear ao pé do sítio onde morava no Estoril e de falar com toda a gente, com o senhor da mercearia, com o senhor do café, da pastelaria, do talho. Por onde ele passava toda a gente o cumprimentava e toda a gente o tratava bem, algo que era recíproco. Portanto, era uma pessoa bastante querida e bem aceite naquela comunidade, naquela zona onde vivia. Lembro-me que a minha mãe, que era muito chegada a ele, falava, mas não muito, sobre aquilo que se tinha passado, e dá-me ideia que ele próprio não contou muito à família de tudo aquilo que tinha acontecido na Hungria, especialmente nessa altura em inícios de 1944.

E alguma vez houve qualquer iniciativa por parte do Governo português após o 25 de Abril?

Não. A Hungria teve o cuidado e a iniciativa de condecorar o meu avô. Nunca, até hoje, nenhum Governo português teve qualquer iniciativa semelhante. Houve, há dois anos penso eu, uma cerimónia no Ministério dos Negócios Estrangeiros por iniciativa do Instituto Diplomático, uma conferência que evocou os 140 anos do nascimento do meu avô, que era considerado por um historiador húngaro como um verdadeiro herói. Tirando isso, nunca o Governo português se dignou sequer prestar-lhe qualquer espécie de homenagem. Quando houve a cerimónia da condecoração ao meu avô na embaixada a Hungria, estava presente o então Presidente da República Mário Soares, e eu disse num discurso em nome da família que de facto nunca ninguém tinha feito nada para o reconhecimento daquilo que foi a atividade que o meu avô desenvolveu na Hungria. E não só o meu avô como também o Teixeira Branquinho. Na altura, Mário Soares ficou, enfim, bastante incomodado com isso. Eu disse que ele tinha conhecimento do que se tinha passado e nunca tinha tomado uma iniciativa. E então, passado dois meses ou três, desenvolveu uma cerimónia em que condecorou vários portugueses por diversas razões e incluiu o meu avô, atribuindo-lhe também a título póstumo uma medalha de algum reconhecimento. Isto enquanto Presidente da República. Quando o meu avô é condecorado pelo Yad Vashem na Embaixada de Israel em Lisboa, em 2010 ou 2011, com a medalha de Justo entre as Nações, o próprio Governo português nem sequer se fez representar. Mandou um assessor qualquer do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou coisa que o valha, mas o que é certo é que não se fez representar oficialmente por nenhum membro do Governo. Ou seja, durante todos estes anos, e apesar de inúmeras tentativas da minha parte de que alguma coisa fosse feita, tive apenas promessas de deputados. Mas o que é certo é que nunca ninguém fez absolutamente nada. E todas as cerimónias que houve nas quais se falou daquilo que foi a ação do meu avô em Budapeste, foram feitas por entidades que não entidades governamentais. Desde escolas em vários sítios do país, em Coimbra, em Felgueiras, a Ordem dos Advogados, a delegação de Lisboa também em tempo, juntamente com uma junta de freguesia dos Anjos, também descerrou uma placa, uma lápide junto à sua sede com o nome do meu avô. Tudo iniciativas que não foram iniciativas governamentais. Até hoje, o Governo português, pura e simplesmente, não quis saber, ou não quis reconhecer aquilo que o meu avô fez.

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