"O nosso senhorio não queria renovar-nos o contrato (...) a chegada da Joana mexeu connosco"

2 horas atrás 31

Comprei uma cafeteira preta. Contra aquilo que acredito ser a aparência e o perfil ideais e inegociáveis de uma boa cafeteira italiana - metálica, pura, simples -, cedi. A minha, a original, era exatamente assim: metálica e pura. Entretanto, percebi que a Joana fazia nela uma mistela qualquer - "não é uma mistela, Margarida, é uma infusão de ervas e sementes" - e, como se não bastasse, a lavava com detergente. Repito, a Joana lavava uma cafeteira italiana com detergente. 

Para evitar mais uma discussão doméstica, resignei-me. Aceitei que aquela cafeteira seria, de então em diante, a dela e que eu compraria outra, só para mim e para o Tomás. "Ficas com essa, então, mas por favor não uses a nova, que fica para nós e que servirá apenas para fazer café. É fácil distingui-las: a tua é a metálica, a nossa é a preta." Ficou a olhar para mim em silêncio como se tentasse apreender toda a informação que eu lhe fornecia. Por precaução, decidi aquecer o manípulo da minha no bico do fogão e gravar-lhe um M de Margarida com uma faca.

Trazer a Joana cá para casa foi uma decisão difícil, mas, mais do que isso, revelou-se um ato de gestão arriscado. Só que, dadas as circunstâncias, foi a solução mais rápida e eficaz. O nosso senhorio não queria renovar-nos o contrato. Afirmava que as atualizações da renda deixavam o preço da casa muito aquém do seu valor no mercado de arrendamento. Tínhamos um contrato de cinco anos. A 12 meses do seu termo, recebemos a carta registada com a comunicação sucinta e lacónica: "Avisam-se os arrendatários que o presente contrato, registado nas finanças sob a referência xisípsilonzê no dia tal do mês assim e assado do ano que já lá vai, que o mesmo não será renovado por motivos de defesa do interesse patrimonial do proprietário." 

Quatro anos depois de uma prática religiosamente cumprida do pagamento pontual de uma renda que era, para nós, muito alta, fomos postos entre a espada e a parede. As opções eram aceitar a derrota, abdicar da casa e procurar um apartamento num subúrbio provavelmente longínquo, ou dispormo-nos a suplicar ao senhorio que nos fizesse um novo contrato, sabendo de antemão que tal significaria um aumento substancial do valor da renda. 

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Instalados e acomodados ao bairro, pesámos os prós e os contras, valorizámos o sentimentalismo, levámos em conta o conforto e a preguiça de fazer mudanças e avançámos: "senhor Luís, quanto é que quer de renda para aceitar fazer um novo contrato?" Falou o Tomás com o senhorio. Depois de negociações e de algum tempo a regatear, chegaram a acordo para um aumento de 72%. "Conseguimos", exclamou o Tomás quando regressou a casa. E eu a somar todas as contas em parcelas e a subtrair o bolo inteiro ao rendimento de ambos. "Com a nova renda, sobram-nos 12% para gastos." O Tomás fez uma expressão de quem está confuso. "E a comida está contabilizada nestes gastos - sim, nos 12% que sobram."

Tínhamos de fazer escolhas, traçar planos, estabelecer estratégias. Havia que decidir muito seriamente o que comer e o que vestir. Reduzir o consumo, racionar, se possível desfazermo-nos do que não fazia falta vendendo os itens. Sempre era mais algum dinheiro que entrava. Ao fim de três meses de uma vida monástica, sentámo-nos para ter uma conversa. "Precisamos de conversar", disse o Tomás, e eu respondi-lhe que ia dizer-lhe precisamente isso, que tínhamos de conversar. "E se transformássemos o escritório num quarto e o alugássemos?" Apanhou-me desprevenida com aquela ideia. Primeiro, só me ocorreram objeções, só temos uma casa de banho, mas alugamos a quem, a um desconhecido?, o que é que os vizinhos vão pensar de nós?, e a nossa vida, como casal? Mas depois passou-me, acalmei-me. O argumento "esta renda dividida por três é muito menos pesada" fez com que me rendesse. Só faltava decidir a quem alugaríamos o escritório transformado em quarto.

Passaram-se alguns dias. O Tomás chegou a casa, vinha sorridente, "uma colega minha procura quarto numa casa partilhada". A minha expressão terá sido semelhante à de um cubo de gelo quando se senta para pensar e esvazia o olhar porque não sabe como há de dizer "bom, fica registada a tua ideia, mas não vai ser possível, obrigada" com delicadeza. O Tomás percebeu e atalhou, "ela é lésbica. É a Joana, já a conheceste." E foi nesse momento que o cubo de gelo mexeu os olhinhos como se despertasse e dissesse "ai sim? Boa". Ele que falasse com a Joana, então. "Já falei. Vem ver a casa amanhã."

Aquela combinação rápida e eficiente dividia-me os sentimentos. Se, por um lado, gostava que o Tomás tivesse tratado de tudo sem precisar da minha ajuda, por outro, não gostava de ter sido deixada de parte numa negociação tão séria. Lésbica ou não, desagradava-me a ideia de ter em casa uma Joana com uma proximidade quase íntima com o meu companheiro. O Tomás percebeu os meus receios e hesitações. Ele conhece-me. Tentou convencer-me de que nada daquilo fazia sentido, carregando sempre na orientação sexual da Joana. Deixei-o estar. Tudo bem, não se fala mais no assunto. Mas guardei, no fundo mais negro de mim, um pensamento: depois conversamos.

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A chegada da Joana mexeu connosco, com as rotinas. Em parte, mexeu com o nosso quotidiano porque acreditámos, com alguma ingenuidade, que a maneira ideal de a acolher seria fazendo-a sentir-se parte da família. Recebemo-la, no primeiro dia, com um jantar. Os três à mesa, conversámos, partilhámos, revelámos. Parecia uma experiência bem-sucedida. Só que a repetição dos fins do dia começaram a criar algum desconforto. A Joana aceitava amavelmente os convites para jantar, mas eu notava que o fazia por delicadeza. Nós, pela nossa parte, também perdêramos o desejo de a convidar, mas não queríamos deixar de o fazer depois de praticamente se ter tornado um hábito, pois podia parecer mal. Ficámos os três reféns da gentileza e da diplomacia. O que começou por ser um gesto de generosidade e de acolhimento tornara-se inadvertidamente numa obrigação desagradável para todos. 

Foi a Joana quem desatou aquele nó complexo. Durante três dias consecutivos, não jantou em casa. Encontrava sempre qualquer desculpa, um familiar em Lisboa, uma amiga com quem ia sair, trabalhar até tarde. Ao quarto dia, bati-lhe à porta do quarto, perguntei se podíamos conversar. Disse-me que entrasse, que estivesse à vontade. Perguntei-lhe abertamente o que se passava, se se sentia desconfortável com a nossa proximidade abrupta. Garantiu-me que não, mas eu sabia que sim, que sentia. Sentíamos todos. Não insisti nesse ponto, mas aconteceu ficarmos a conversar descontraidamente sobre esse e outros assuntos. Quando o Tomás chegou a casa, estávamos ambas sentadas na cama dela e conversávamos com alguma intimidade. Quando o Tomás nos cumprimentou da porta do quarto, a Joana disse logo, meio atrapalhada, "tenho de me ir embora, senão chego atrasada". O Tomás ficou perturbado. Mais tarde, disse-me "Margarida, isto não me deixa descansado". Respondi-lhe que se deixasse de disparates, "sabes bem que sou hétero, isto não é sequer conversa que se tenha". E sorri, como se o enganasse.

O ambiente entre mim e o Tomás não ficou propriamente tenso, mas tornou-se frágil. Sensível. Falávamos com cautelas. Ficámos mais desconhecidos um para o outro. No outro quarto, que outrora fora escritório, a porta fechava-se cada vez mais. A Joana foi construindo uma existência no intervalo das nossas. Andava pela casa quando estávamos recolhidos. Usava a cozinha quando já lá não estávamos. Foi evitando progressivamente que nos cruzássemos. E nós, sem querer, fomos fazendo o mesmo. E, ao fazê-lo, fomos ficando mais encurralados no quarto, e logo num momento em que talvez precisássemos do nosso espaço individual, cada um no seu canto.

Começaram então a surgir os reparos e as notas por escrito, "por favor, leva também o lixo", "agradeço que não deixem loiça suja no lava-loiças", "aspirei as áreas comuns três vezes esta semana, devemos dividir tarefas". Cada um ia deixando a sua. Ao fim de apenas algumas semanas, uma casa familiar habitada por um casal nos seus trintas transformara-se numa residência universitária de gente que não se dava - e com um quarto ocupado por namorados meio desavindos.

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Inevitavelmente, viemos dar ao ponto em que nos encontramos. Andamos agora à procura de uma nova solução. A Joana não podia continuar connosco. Por tudo o que foi acontecendo - são coisas que não acontecem, propriamente, porque não são visíveis nem percetíveis; são antes um acumular de perceções, de impressões e de mal-entendidos menores que, juntos, se transformam numa coisa muito desagradável -, mesmo que ela não tivesse a culpa (e não teve, pelo menos, não em exclusivo). Só que houve uma gota de água que fez transbordar o cálice da minha tolerância: ela usou a cafeteira preta para fazer uma infusão das suas. Assim, é impossível.

*Se conhecer uma história real envie-a para [email protected]. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado. 

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