O intercidades treme por todos os lados, entre Lisboa e Covilhã. A carruagem do bar é a melhor de todas, há espaço para as pernas, bancos altos e ainda janelas generosas para acompanhar a paisagem verdejante. Às tantas, um senhor encosta-se ao balcão e pede um café. A silhueta é-me familiar. Parece o meu avô, com uma mala castanha de couro a tiracolo. Embora nunca tenha visto esta figura ao vivo e a cores, aproximo-me e pergunto-lhe (o resto é magia). Uma conversa perfeita, em dia de jogo de Cabo Verde no CAN. Tenho aqui dois golos seus no Estoril ao FC Porto. Lembro-me disso perfeitamente, tenho para aqui uns recortes de jornal e tudo. Os dois golos foram engraçados, e bons também. No primeiro, dei de trivela e era o Joaquim Torres à baliza. Na segunda, a bola veio para mim, passei o Octávio Machado e fiz um túnel ao Freitas que vinha na minha direção como um touro, naquele seu estilo possante. Se eu não me desviasse, ia parar à bancada, eheheh. Bom, fiz-lhe um túnel e fiquei ali à frente do Fonseca. Rematei e golo. O Rodolfo estava pior que estragado, eheheh. A dizer-me que só sabia marcar ao Porto e aos outros não. [ndr: Óscar marcou um terceiro golo ao FC Porto, numa derrota por 5-2 nas Antas] A verdade é que foi para o Porto. Por ter marcado duas vezes ao Porto, o Pedroto contratou-me para evitar mais desaforos. Pedroto, que tal? Via mais com um olho do que todos os outros juntos com dois. Era um homem sagaz e interessante. Uma vez, perguntou-me se tinha filhos. Disse-lhe que sim, dois até. E ele ‘já são baptizados?’ ao que respondi que não. Então ele vira-se e oferece-se para ser padrinho de um deles. Eu digo-lhe que não, ‘o padrinho dos meus filhos tem de ser um amigo meu’. Ele vibra com a resposta. ‘Ó Óscar, se alguma vez precisares de ajuda, fala comigo, telefona-me, bate-me à porta de casa. Estás à vontade, ajudar-te-ei sempre’. Tínhamos muitas conversas sobre política. Quando o PCP planeava algum movimento nas ruas, o Pedroto dizia-me sempre ‘ò Óscar, tem cuidado aí nas ruas hãããã?’ e eu respondia-lhe sempre ‘ò sr. Pedroto, lá porque sou de esquerda não quer dizer que seja comunista’ e a partir daí desenvolvíamos a conversa para outros temas políticos. Ouvia muitas bocas políticas durante os jogos? Então não? Uma vez, no Vidal Pinheiro, com o Salgueiros, joguei a ala e passei o jogo a ouvir um homem a dizer-me ‘volta para o Tarrafal’, ‘só sabes votar no Cunhal’, coisas dessas. Grande pancada. Alguém o defendia? Acha? Pois. Nem o Pedroto? O Pedroto nem sequer ouvia, é o mais provável. Naquele tempo, o treinador sentava-se no banco e dava instruções sentado. Muito raramente, muito mesmo, o Pedroto se levantava. Não é como agora em que os treinadores passam o tempo de pé e de um lado para o outro. A voz era mais poderosa, então. Sem dúvida, Rui. E a do Pedroto, vai lá vai. Era ele quem mandava lá dentro do FC Porto. Quando um jornalista entrava com a ideia de entrevistar jogador x, ele era capaz de o desviar dessa missão e a verdade é que o tal jornalista acabava por entrevistar o jogador y. Foi feliz no FC Porto? Ainda hoje me lembro do primeiro treino. Conte. O Rodolfo fez-me uma falta dura, desnecessária e começou a barafustar comigo numa de impor a sua lei de jogador mais antigo. O Jaime Pacheco, que estava só a treinar à experiência, atacou-o na hora e disse ‘vais ter de passar por cima de mim para voltares a fazer isso’. Grande Jaime. E o Rodolfo? Nunca mais repetiu o gesto. Isso é o primeiro treino. E o primeiro jogo? Marquei um golo. Uauuuu. Ao Belenenses. Entrei ao intervalo pelo Duda e marquei o último da tarde. Foi um arranque animador, mas depois acabei por jogar pouco. O Pedroto dava-me força e dizia-me sempre ‘tem calma, o teu momento vai aparecer’, só que isso realmente nunca aconteceu. Porque? Era convocado, mas raramente jogava. Quem o contratou para o FC Porto? Pinto da Costa, então diretor do futebol – o presidente ainda era o Américo de Sá. Já tinha casa no Porto, só me faltavam aquelas coisas essenciais. E como o Pinto da Costa tinha uma fábrica de eletrodomésticos, pedi-lhe ajuda. Deu-me a mão, deu-me tudo entre um frigorífico, um fogão e essas coisas. Quem era o adjunto do Pedroto? António Morais. Estava sempre em cima do acontecimento. Um dia, apanhou-nos a jogar à batota com dinheiro. Foi o cabo dos trabalhos. Queixou-se ao Pedroto e adeus batota. Apanhou-nos a quem? Eu, Lima Pereira, Oliveira e mais não sei quem. E o Pedroto era de refilar? Então não? E também gostava de ironizar. Um dia, o Toninho Metralha, que chegou ao FC Porto ao mesmo tempo que eu, via Marítimo, falhou um golo incrível e o Pedroto deu-lhe uma descasca na boa, estilo ‘até eu marcava; eu, cheio de tabaco e uísque’. Falou da malta porreira no Covilhã e Estoril. Que tal no FC Porto? Também havia gente boa. E má. Nunca mais me esqueço de um jogo na Madeira em que meteram garrafas vazias de cerveja à porta do nosso quarto (meu e do Duda) para dar a entender que tínhamos bebido. Isso não era uma brincadeira, era maldade. Como é que ia para os treinos? De autocarro. A séééério? Então se não tinha carro, tinha de aparecer nos treinos de alguma forma. Claro, autocarro é que tem a sua piada. Depois, comecei a viver mais perto das Antas, curiosamente, no mesmo prédio de outros três jogadores, e, às vezes, ia a pé. Podia ter boleia dos outros três, mas acordava mais cedo e ia à minha vida. Sabe, sempre fui muito recatado, na minha. Então se me apanhasse na rua antes da hora marcada, para quê ficar à espera? Ia e pronto. E é campeão da 1.ª divisão, certo? Sim, época 1978-79. Depois não faz parte do plantel, porquê? Saí para o Boavista, com a ideia de jogar mais. Ainda por cima, o Valentim, já aí o Valentim, pagava-me mais. Como não aceitar? Encontrei um balneário engraçado, com Moinhos, Folha Cambalhota. O Rui acredita que ele até dava cambalhotas no balneário? E jogou mais? Eu disse com a ideia de jogar mais. Não joguei mais no Bessa do que nas Antas, ahahah. Eischhhh. Paciência, não fico triste. Olho para trás e fui campeão da 3.ª divisão pelo Covilhã, da 2.ª pelo Farense, da 1.ª pelo FC Porto e ainda cheguei à seleção. Espere aí, foi campeão da 2.ª divisão pelo Farense? É verdade, e apanhei o Jorge Jesus na época seguinte, na 1.ª. Como era ele? Um belo jogador, um médio com muita muita muita técnica. Então e fisicamente? Talvez fosse ligeiramente preguiçoso, mas compensava isso com a técnica. E foi campeão pelo Farense a jogar a ala? Depende. Do quê? Do fator casa. No São Luís, era ala. Fora do São Luís, era central. O treinador assim o decidiu. Quem era? Um búlgaro chamado Hristo Mladenov, que não o Mladenov que jogou uns anos depois no Belenenses, Vitória FC e Estoril. Fazia dupla com o Manuel Cajuda. A central? Isso mesmo. E o Cajuda? Dizia-me sempre a mesma coisa: ‘porra, tens de jogar sempre aqui’. E a história da seleção, ainda não falámos sobre isso. Foi em Março 1978. 1978, Março. Mas isso é Estoril ainda? Verdade. Foi internacional pelo Estoril? Ainda estou doido, que espetáculo. O selecionador era o Juca e levou dois estreantes: eu e o José Alberto Costa, da Académica, com quem me iria encontrar no FC Porto na época seguinte. Sabe o que aconteceu? Entrei perto do fim para o lugar do Costa. E o resultado? Sei lá [2:0 para a França], só sei que joguei no Parque dos Príncipes e está bom para mim. Ahahahaha. Já tinha ido a Paris? Um ano antes, o Eusébio fez um jogo oficial de despedida em que convidou os seus jogadores preferidos na 1.ª divisão. Estava lá eu, por exemplo. Joguei a titular, no Estádio Colombes, a grande casa do futebol parisiense antes do Parque dos Príncipes. Que jogo foi esse? Amigos do Eusébio, ahahahahah. Com quem? Uma equipa francesa da 1.ª divisão. Bastia, acho. E acabou quanto? Isso já é puxar muito por mim. Sei que fui eleito pelo Eusébio e dividi campo com ele. Em Paris. Fantástico. Houve uma outra vez em que também joguei com o Eusébio, aí no Canadá. Também não me lembro do resultado, mas lembro-me, isso sim, da camaradagem no seio da comitiva. O Manuel Fernandes, do Sporting, entrou numa loja, comprou uma t-shirt e ofereceu-me. Epá, fiquei sensibilizado. Terá sido o maior com quem dividiu o relvado, o Eusébio? Em nome, seguramente. Em forma, tenho de falar do Keita. O homem era tramado no Sporting. Já chegou com uma certa idade a Portugal, mas era um caso sério quando engatava. E o outro génio que apanhei cá foi o Cubillas. Esse era f******. Um dia, fui ver o FC Porto à Tapadinha. Devia estar de folga ou assim. Seja como for, há uma jogada em que ele dribla uns quatro ou cinco e marca golo. Um fenómeno da cabeça aos pés, nunca vi igual.«Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico».
«No FC Porto ia para os treinos de autocarro»