O Sol da Caparica’24: do balanço de Nelson Freitas à palavra de Capicua

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Voltámos à Costa da Caparica para mais uma edição de O Sol da Caparica, um festival promovido pela Câmara Municipal de Almada que celebra 10 anos e cujas últimas edições foram marcadas por uma série de problemas logísticos, de produção e mesmo de segurança. Com uma nova produtora encarregue do evento, parece que esses problemas foram resolvidos, mas é difícil não pensar que O Sol da Caparica enfrenta uma certa crise de posicionamento num mercado de festivais cada vez mais preenchido e saturado. 

A aposta na música lusófona — e sobretudo portuguesa — mantém-se. Da pop ao rap, do rock à electrónica, da dança à spoken word, foram muitos os artistas que passaram pelo Parque Urbano da Costa da Caparica nos últimos dias. Mas muitos são músicos que podemos encontrar nos cartazes das festas populares das autarquias por todo o país, muitas vezes em concertos gratuitos, e torna-se difícil para um festival como este ter argumentos suficientes — com o mercado e a economia que temos — para atrair todo o público que deseja. 

A nossa jornada pel’O Sol da Caparica iniciou-se no Palco Almada, uma das melhores novidades deste ano, por onde passaram diversos artistas locais — uma ponte que não estava feita até então, o que parece até um desperdício, tendo em conta o historial artístico do concelho e o número de artistas talentosos e reputados que ali tiveram a sua origem.

O pontapé de partida aconteceu por parte de Mura e Stereossauro, dupla que no início do ano lançou ADAMAS, um disco de recorte clássico, mas ainda assim sofisticado, que junta a mestria do produtor e DJ das Caldas da Rainha às rimas de um dos rappers mais interessantes do panorama underground actual — e filho do município de Almada.

Já tinham provado que funcionavam bem em disco, mas ao vivo mostraram-se igualmente capazes. Sem precisar de um hypeman, naquela que terá sido uma das performances mais palavrosas de toda esta edição do Sol da Caparica, Mura demonstrou ter o calibre para corresponder à maior experiência de Stereossauro. Competente na arte da rima séria, com as palavras e a dicção no ponto, o MC apresentou uma óptima presença em palco, driblando de forma suave pelas batidas cuidadosamente orquestradas, que soaram muito bem naquele Palco Almada. 

Pelo meio, Stereossauro ainda aplicou os seus cortes precisos, não fosse ele um guru do scratch. Com um registo tão ético quanto poético, Mura também demonstra como o underground tem espaço para um estilo menos drunk e nasty, como tantas vezes acontece. E ainda houve tempo para dois convidados, que vieram interpretar temas com Mura mas também faixas próprias, o almadense João Pestana e o lisboeta Vácuo. Um concerto ao nível dos diamantes que esta dupla lapidou em disco.

É fácil constatar que o espectro do hip hop tuga se alargou tanto com o passar dos anos quando passamos de Mura e Stereossauro para Chico da Tina. Subindo ao palco principal com a sua vasta comitiva, o artista de Viana do Castelo trouxe o seu show caótico até à Costa da Caparica. Já tínhamos assistido ao espectáculo do Minho Trapstar, autêntico fenómeno que tem trilhado um percurso ímpar e conquistado um público juvenil ansioso pela descarga enérgica do moshpit e pelas letras arrojadas mas simplistas, combinadas com beats modernos de trap e flows cativantes. Não podemos dizer que não seja eficaz, quando claramente existe um público para tal, ainda que apostemos que uma fatia considerável não apanhe todas as referências e acabe algo alienado.

O espectáculo de Chico da Tina — onde há assumidamente muito mais entretenimento do que música — parece celebrar a aleatoriedade e a absurdez. Se o Domingão, a cultura minhota e os códigos e os sons do trap tivessem um filho, era mais ou menos este o resultado. Trata-se de um festival de insufláveis, com múltiplos hypemen a ostentar adereços e bandeiras. Há apologias à União Europeia, à glória ucraniana e um momento em que Chico da Tina, anti-herói de espírito punk, salta para cima do público numa prancha de bodyboard. Serve-se vinho às filas da frente, toca-se concertina, ouve-se o riff de “Walk” dos Pantera e o acordeão de temas populares do Minho, mas também se interpretam canções que melhor demonstram o conceito musical de Chico da Tina, como a versão trap de “Nós Pimba”. A pior parte são mesmo as letras misóginas ou que procuram chocar e ofender de forma gratuita.

O concerto no Sol da Caparica ficou também marcado por uma novidade. Chico da Tina anunciou que vai lançar este ano Playboy Matos, um EP de homenagem ao célebre cantor português Tony de Matos, cujo centenário se assinala em 2024. O rapper apresentou dois singles inéditos do disco: rodeado de fantasmas, interpretou a faixa-título, com um beat trap musculado, vozes guturais estilo heavy metal e um segmento que se assemelha a canto gregoriano; e ainda “Correcto”, um tema para o qual convidou o duo portuense Joint One e Yung Juse, que vieram interpretar as suas rimas.

O sol já se tinha posto na Caparica quando fomos assistir ao muito aguardado concerto de King Bigs. Praticamente a jogar em casa, Biggavelski atraiu uma das maiores multidões de todo o festival ao palco secundário Bandida do Pomar. Indubitavelmente com um registo gangster, que tanto apela aos miúdos do seu e de tantos outros bairros, como a um público de outras classes sociais seduzido pelo perigo e risco que a sua música representa, King Bigs está em estado de graça no caminho para o seu anunciado álbum de estreia, Da Psiquiatria para Hollywood, que já esteve prometido para este ano.

Com uma performance que tem espaço para estar mais oleada, Kings Bigs foi ele próprio e usou o seu carisma natural para convencer um público que já estava conquistado à partida. “Tipo de Vida”, “Para Tu Seres de Onde Eu Sou” ou “Como é que Tamos?!”, com um tributo a Mota JR, não falharam o alinhamento. E King Bigs jogou as cartas todas ao convocar Landim para “Juro Que Não Dá”, Nex Supremo e Kosmo da Gun para uma das versões de “Respeita o Crime”, e Regula para “Momma”; além de muitos dos MCs terem tido espaço para interpretar temas próprios, reforçando o espectáculo.

Houve ainda tempo para apresentar um tema inédito, mais próximo de um registo de R&B, com a participação impressionante do muito melódico King David, e que também serviu para acrescentar diversidade e provar alguma versatilidade em King Bigs. Depois de um segmento com duas bailarinas, o rapper do Monte da Caparica chamou ainda do público um miúdo entusiasmado para interpretar um dos mais celebrados temas, “Biggie Biggie Biggie”, num momento que foi realmente electrizante. E o concerto encerrou, reunindo todos em palco, com o portentoso single “Gangstanismo”, já um marco na facção mais gangsta rap do hip hop tuga.

O primeiro dia de Sol da Caparica ficaria concluído com os Fogo Fogo. Uma das bandas mais versadas e experientes do panorama actual da música portuguesa regressou ao festival passados sete anos. Sem um grande público à sua frente, também certamente por ser a uma hora tardia de uma quinta-feira, ainda assim fizeram a festa — aquilo que melhor sabem fazer — e trouxeram melodias e harmonias quentes e ritmadas ao interpretarem as canções que têm marcado o seu percurso, sem estarem demasiadamente encostados ao álbum que lançaram este ano, Nha Rikeza.

A bateria de Márcio Silva e a guitarra de David Pessoa estabelecem grande parte do ritmo, acelerado e quente, que só sai enaltecido com o baixo groovy de Francisco Rebelo, as cordas igualmente calorosas de Danilo Lopes e as incontornáveis teclas de João Gomes. É a celebração da música cabo-verdiana e da sua diáspora, da casa que também encontrou em Lisboa e nos seus subúrbios, mesmo que muitas vezes fruto de uma cultura e de uma comunidade marginalizada. O caminho para a justiça e para o reconhecimento do valor também se faz por aqui, através da arte e da música.



Ao segundo dia, foi a vez de regressarmos ao Palco Almada para o concerto de M.A.C., dupla veterana de TNT e Kulpado, acompanhada por DJ Sahid nos pratos. Nomes históricos da cultura hip hop da cidade, mostraram as virtudes da experiência, com um concerto perfeitamente conduzido, vozes e entrega no ponto, que só deixa pena pelo horário e pelo palco escolhidos — ainda que, como os próprios fizeram questão de frisar, já seja positivo haver espaço n’O Sol da Caparica para grupos locais como eles, tendo em conta o histórico do festival até aqui.

Entre temas do álbum Sem Título (2021) e clássicos com quase 20 anos, TNT e Kulpado foram os protagonistas de uma sessão de hip hop tradicional, repleta de alma, num ambiente (literalmente) familiar. “Deve Ser da Guita”, “Chokolate Rocka” ou “Hoje é Dia” foram das faixas mais celebradas. “Nós Todos” evocou a memória de Davidson Gonçalves, aka Luciano Bonniz, dos Nexo, que partiu recentemente. E, como é seu apanágio, os M.A.C. estenderam a mão a outros, dando destaque a diferentes zonas do concelho de Almada, convocando João Pestana e Vato para apresentarem um par de faixas. Missão (mais uma vez) cumprida para estas autênticas instituições do hip hop tuga. 

O ritmo era outro quando passámos para o palco principal para assistirmos ao concerto de Nelson Freitas. Com quase 30 anos de carreira, é impressionante como o cantor e produtor cabo-verdiano, nascido e criado nos Países Baixos, conseguiu sempre manter-se relevante, reinventando-se mas mantendo a sua identidade, captando novas gerações com hits que se tornaram transversais. E a prova disso era a imensa (e muito jovem) multidão que se reuniu em frente do palco para o receber de forma calorosa.

Com um espectáculo bem estruturado, com um conjunto de bailarinos e uma banda que adapta da melhor forma os instrumentais de natureza digital, Nelson Freitas mostrou-se sempre um performer seguro, interagindo bastante com o público. Num alinhamento com um registo best-of — nem poderia ser de outra maneira —, houve tempo para recuar até “Cré Sabe”, para recuperar o êxito “Bo Tem Mel”, para interpretar “Break of Dawn”, “Mariana”, “Dpos D’Quarentena”; e as mais recentes “Stay Away”, “Hero” e “Black Butterfly”, que dá título ao disco editado este ano.

Quando foi a vez de outro dos seus grandes hits de calibre pop, “Miúda Linda”, Nelson Freitas aproveitou inclusive para deixar uma mensagem positiva e de reforço da auto-estima a todas as raparigas (e mulheres) na audiência. “Esqueçam pôr lábios, levar injecções, esqueçam o Instagram e o TikTok, olhem no espelho e digam: eu sou linda!”, disse.

Tendo em conta o seu perfil musical, social e até étnico, muitas vezes os cantores como Nelson Freitas foram invisibilizados na esfera pública portuguesa, sem repercussão na imprensa ou junto das instituições. Quando se torna cada vez mais evidente os fenómenos de massas que representam, as comunidades muitas vezes também invisibilizadas onde ressoam e o valor cultural que possuem, temos de assinalar e celebrar os mestres do zouk ou da kizomba que em grande medida criaram à margem da grande indústria um R&B lusófono, alimentado por batidas quentes, com uma musicalidade intrínseca. O caminho para combater as noções enviesadas de “alta” ou “baixa” cultura também passa por aqui.

Passámos ainda no concerto de Rony Fuego, que tem tido uma ascensão algo discreta no segmento que cruza os mundos do hip hop e da música urbana africana. Com uma performance enérgica onde não faltou fogo, actuou perante uma vasta plateia contagiada pela cadência afro dos instrumentais e pelos flows cativantes deste angolano radicado em Portugal.

O alinhamento deu um natural destaque a Bakongo, o álbum de estreia editado este ano, mas também passou pelas várias faixas com que se deu a conhecer e pela mais recente “TBB”, que o junta a Mr. Marley e que tem apenas duas semanas de vida. O mercado pode estar algo saturado, mas Rony Fuego tem conseguido superar muitos desses entraves e este concerto foi prova disso.

Ayo Mizzy Miles… The streets gonna love this one”. Era na voz de Prodígio que estava o mote dado para o electrizante DJ set de Mizzy Miles, certamente uma das actuações mais esperadas pelo público do festival, ansioso pelas batidas musculadas para dar uso ao corpo e fazer correr as hormonas adolescentes em múltiplas rodas de mosh. Com honras de palco principal, Mizzy Miles tem traçado um percurso admirável e surpreendente. Make more, never less é um lema que lhe assenta bem e a sua visão — e a forma como se mexe na indústria da música — é o principal factor para a ascensão que teve nos últimos anos e para os diferentes feitos que tem alcançado.

Só nos últimos meses, tornou-se num dos primeiros — se não for mesmo o primeiro — DJs de hip hop em Portugal a conduzir um talk show numa rádio nacional, a Cidade FM; orquestrou um espectáculo com convidados de renome que antecedeu o jogo da Supertaça entre FC Porto e Sporting; foi confirmado no Rock in Rio do Brasil; e tem estado numa tour intensiva que também inclui uma residência no Bliss, uma das principais discotecas sazonais do Algarve, onde leva sempre uma panóplia de convidados especiais. Mizzy Miles não tem certamente dias de folga e alia a sua profunda ambição à capacidade de concretizar. Não é mesmo para todos.

Enquanto DJ, já conhecemos o seu registo — é o seu próprio hypeman em palco, sempre a interagir com o público, muitas vezes actuando de microfone em punho, cantando partes dos temas que selecciona, sejam ou não da sua autoria. Com efeitos generosos de pirotecnia, uma crew de bailarinos e um cenário bem montado, conseguiu vingar e criar um espectáculo destinado aos grandes palcos. A rapidez com que transita entre bangers, num alinhamento recheado de força e velocidade, alinha-se bem com a geração TikTok, em que o attention span é tão curto que 15 ou 30 segundos de cada tema podem servir perfeitamente num autêntico desfile de hits que parte de Portugal e viaja até ao Brasil, aos Estados Unidos da América ou até ao Reino Unido. Não é um DJ set muito técnico nem feito para agradar a hip hop heads, mas é ultra-eficaz para este público.

Voltámos ao palco Bandida do Pomar para o grande baile dos Bateu Matou. Ao vivo, a imagem de três baterias elevadas lado a lado impressiona — com Quim Albergaria, Ivo Costa e RIOT a ocuparem os papéis centrais deste espectáculo acelerado onde a percussão live se funde com os instrumentais gravados, dando origem a uma verdadeira festa, mesmo que sem uma afluência merecida diante do palco. Pité e Raissa são os anfitriões de serviço, cantando os temas em que participam, puxando pelo público e tornando a performance mais abrangente — é um daqueles concertos em que qualquer curioso que desconheça a banda pode muito facilmente ficar contagiado se passar no sítio certo à hora certa.

Há momentos de pura explosão de ritmo e energia neste caldeirão musical que representa Lisboa — ao juntar música portuguesa, africana ou de origens goesas num estufado bem mexido; mas também segmentos ligeiramente mais introspectivos ou contemplativos. Trata-se realmente de uma performance equilibrada e versátil, onde há ritmo, melodia e rap; e que ganha muito com a energia e dicção de Pité e com a voz doce (mas também cheia de garra, quando é preciso) de Raissa. “Rala-côco” foi dedicada à classe trabalhadora, um discurso que à partida assentaria bem num festival como o Sol da Caparica; “Subi Subi” e “Cada x + Perto” foram outros dos momentos mais aclamados; e ainda houve tempo para uma versão especial de “Balancê”, hino da eterna Sara Tavares que aqui de facto ganhou um outro balanço. O baile está vivo e recomenda-se.



Chegado o terceiro e o nosso último dia de festival — não conseguimos estar presentes na Caparica no domingo, dia em que actuaram T-Rex e TNT, por exemplo — o nosso itinerário levar-nos-ia novamente ao palco principal. Era a vez de Danni Gato, DJ e produtor de afrohouse, fazer a festa ao final da tarde. É um sinal muito positivo haver espaço para o afrohouse no palco principal do Sol da Caparica — o género não deve ficar circunscrito ao circuito de clubes, sejam mais alternativos ou populares, e os grandes eventos dedicados a este estilo têm sido organizados por promotoras ligadas à própria comunidade — mas talvez o DJ set de Danni Gato, mesmo que possa ter uma abordagem mais mainstream ao afrohouse, possa estar algo deslocado de um festival como este. 

É o que também acontece quando se pensa numa programação como uma salada de frutas, quando se juntam no mesmo dia artistas tão distintos — tem sido essa a aposta do Sol da Caparica. Por um lado, é o preço a pagar pela tão desejada diversidade; por outro, permite a diferentes gerações ou a amigos com gostos diferentes poderem apreciar em conjunto um único dia de festival; e também é certamente conveniente na hora de marcar concertos, tendo em conta a difícil agenda dos artistas. 

Mas perde-se alguma coesão e Danni Gato, mesmo que tivesse um público considerável à sua frente e que até conhecia vários dos hooks dos seus êxitos, não teve aqui a sua melhor audiência — tanto que até houve quem tentasse fazer mosh ao som das batidas quentes de afrohouse do DJ e produtor algarvio, que pediam outro tipo de resposta corporal e, de preferência, uma “cara feia” a reagir àqueles instrumentais assombrosos. Mas o cântico “esta merda é que é boa”, praga até incentivada pelo próprio Danni Gato, diz muito sobre aquele público d’O Sol da Caparica.

Para algo completamente diferente, dirigimo-nos depois ao palco Bandida do Pomar para não mais o deixarmos nesta noite. Era vez de os José Pinhal Post-Mortem Experience subirem ao palco. O que mais há a dizer sobre este fenómeno, depois de toda a tinta já escorrida, cá e lá fora? A história da popularidade actual em torno de José Pinhal é extraordinária. É difícil acreditar como é que um cantor nortenho desconhecido, perdido nos confins do tempo, viu o seu nome ressurgir envolto em glória, tantos anos depois, com a sua obra reeditada e esgotada, com milhares de pessoas — que em muito ultrapassam o universo mais melómano — a vibrarem com as suas canções. Pode não ser tudo aquilo que fazemos dele, mas a história propriamente dita em torno do fenómeno de José Pinhal é inacreditável.

Ao vivo, os José Pinhal Post-Mortem Experience — conjunto de baile composto por Bruno Martins (voz), João Sarnadas (guitarra), José Pedro Santos (bateria), José Cordeiro (baixo), Tito Santos (teclas e trompete), David Machado (saxofone) e Nuno Oliveira (percussão) — perpetuam o legado em comunhão com os fãs dedicados. Não esperávamos encontrar muitos tendo em conta o perfil d’O Sol da Caparica, mas a prova que se tornou algo transversal é que havia dezenas e dezenas de pessoas a cantar as letras e a vibrar verdadeiramente. 

A presença e as palavras de Bruno Martins são particularmente importantes para esta dinâmica de interacção entre palco e plateia. Naturalmente, “Porém Não Posso”, “Magia (Bola de Cristal Mentia)”, “A Vida Dura Muito Pouco” e, claro, “Tu És A Que Eu Quero – Tu Não Prendas O Cabelo” foram as mais aclamadas. Neste momento, já é seguro considerarmos que — tal como a banda manifestou em palco — José Pinhal é “imortal”.

Eis que chegava a vez de Capicua. Com uma Madrepérola representada em palco e um pano de fundo que funciona bem com qualquer tom projectado, começámos por ver a banda reunida num estrado elevado, estilo big band de jazz, aqui num formato orquestra hip hop, deixando a maioria do palco para as palavras e presença da rapper portuense.

Rapper militante, mestre dos versos e com uma consciência social e política (muito) acima da média, Capicua deu um concerto que reflecte o seu percurso ao longo da última dúzia de anos. Com canções mais politizadas e outras assumidamente despreocupadas, da urgência de “Mão Pesada” à imaginação de “Vayorken”, é o exemplo de como um espectáculo de hip hop em Portugal pode ser maduro e equilibrado, mantendo elementos tradicionais (como o scratch de D-One, por exemplo) mas cruzando-os com uma musicalidade acrescida que advém da tal sapiência e experiência que Ana Matos Fernandes acumulou com os anos de carreira.

Os temas foram intercalados por momentos acapella, em que a palavra mereceu todo o protagonismo, e Capicua mostrou a sua óptima presença em palco, a maneira como articula o discurso dirigindo-se ao público, o quão consegue ser doce mas também evocar a garra portuense que lhe reconhecemos. Discreta mas essencial, a banda composta por Joana Raquel (voz), Inês Malheiro (voz), D-One (DJ), Virtus (samples e programação), Sérgio Alves (teclas) e Luís Montenegro (baixo e guitarra) fez toda a diferença. O concerto foi aquecendo com o passar dos minutos e talvez um dos melhores momentos tenha sido a versão de “Que Força é Essa”, do ídolo Sérgio Godinho, que aqui ganhou outro peso musical e liricamente se virou para a condição feminina na nossa sociedade.

A nossa missão pel’O Sol da Caparica encerrava ao som dos Gilsons, a banda sublime dos irmãos José, João e Francisco Gil, os filhos do lendário Gilberto Gil, que há um par de anos lançaram o álbum de estreia, Pra Gente Acordar, e que têm apresentado vários singles e tocado um pouco por todo o lado desde então. A música bem que lhes pode correr nos genes, pois os Gilsons — que ao vivo apresentam uma formação alargada — dão um concerto irrepreensível.

Começam lentos e vão acelerando, evocando as sonoridades afro-baianas, mas também o samba carioca. Todos vestidos de branco, a música que tocam é luminosa e soalheira, singela e honesta, como um cartão-postal de uma realidade utópica a que todos ambicionamos pertencer. A leveza com que tocam os seus instrumentos leva os irmãos Gil e companhia a parecer que não estão a realizar esforço algum. Os instrumentos parecem simplesmente a extensão natural dos seus corpos, tal é a naturalidade com que os dominam. Tocam sobretudo canções de amor, e temas como “Love Love” ou “Várias Queixas” foram celebrados em harmonia com o público — com muitos conhecedores presentes, de versos decorados na ponta das línguas. O lema é “juntos e misturados”, como não poderia deixar de ser, e, apesar das suas falhas, também é uma máxima que assenta bem a’O Sol da Caparica.


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