"O trauma passa de uma geração para a outra, e os netos serão impactados pelo trauma que os pais ou os avós experimentaram"

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Galit Atlas é psicanalista e supervisora clínica num consultório em Manhattan, Nova Iorque. Foi dessa sala que saíram os onze casos que partilha em Herança Emocional – Como superar o legado do trauma, recuperar a sua vida e ser feliz (Alma dos Livros). O livro é uma espécie de manual que ajuda, através das histórias dos pacientes, mas também da experiência pessoal e profissional da autora, a investigar a importância que o trauma de gerações passadas pode ter nas nossas vidas. A terapeuta, que também é professora no Pós-Doutoramento em Psicoterapia e Psicanálise da Universidade de Nova Iorque, refere-se a experiências vividas pelos nossos pais e avós. Heranças emocionais que podem transformar-se em fardos, condicionando hábitos e comportamentos. Autora de vários livros e artigos científicos, Galit já foi distinguida com dois prémios de investigação e é frequentemente convidada para conversas e conferências um pouco por todo o mundo. Foi depois de uma dessas palestras – integrada no programa do evento Book 2.0 The Future of Reading, em Lisboa - que conversámos com ela.  

De que trata este conceito de herança emocional? 

Tem que ver com a ideia de que as experiências dos nossos pais e avós têm um impacto nas nossas vidas e, de certa forma, moldam-nas. Quando falamos disso, no contexto da psicanálise, costumamos falar de um outro conceito, o de transmissão intergeracional do trauma. Trata-se da forma como o trauma passa de uma geração para a outra, e de como os netos serão impactados pelo trauma que os pais ou os avós experimentaram. Quando eu falo de herança emocional, falo de todas as experiências que não foram processadas, inclusivamente do trauma, mas não só. No livro debruço-me especificamente sobre escolhas que fazemos na vida, ou escolhas que não somos capazes de fazer, e de que como é que elas estão relacionadas com esse conceito de herança emocional. 

No livro explica que essa transmissão emocional pode ser feita através da socialização e da educação, mas também de uma forma genética 

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Sim, há várias formas de transmissão, entre elas a que é estudada pela epigenética e que se debruça sobre a expressão dos genes (os genes não mudam, mas a expressão dos genes sofre alterações). Esta investigação só começou a ser desenvolvida nos anos 1990, por isso, ainda é muito recente e também um pouco controversa. A investigação psicanalítica começou logo após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 e 60 já havia produção científica nesse sentido, com a apresentação de estudos sobre o impacto do trauma provocado pela guerra na segunda geração. Agora já estudamos a terceira e quarta gerações. A diferença entre os dois aspetos dessa transmissão da herança emocional é que a epigenética se foca muito em sintomas físicos que podem ser medidos, como a ansiedade e o stress pós-traumático. No meu livro, debruço-me também sobre o conteúdo, não apenas na parte física. Escrevo que, de certa forma, as pessoas que nos criaram vivem dentro de nós e muitas das nossas respostas são condicionadas por isso. No livro dou vários exemplos dessa relação, por exemplo, pessoas cujos antepassados morreram afogados ou foram enterrados vivos e que desenvolveram medo da água ou claustrofobia.  

Herança Emocional – Como superar o legado do trauma Herança Emocional – Como superar o legado do trauma Foto: Alma dos Livros

E isso acontece mesmo quando não tiver oportunidade de conhecer o antepassado ou inclusivamente quando não sabemos da existência de determinada história? 

Sim. E isso, mesmo que possa parecer uma ideia um bocadinho new age, não é. O que se passa é que acreditamos no inconsciente. Por exemplo, quando fazemos investigação infantil, analisamos essa interação entre pais e filhos do ponto de vista da microanálise, por vezes desde o momento do nascimento. É possível perceber como é que as crianças respondem aos gestos dos pais e não necessariamente às palavras. É isso que analiso no livro, a forma como reagimos ao que foi dito, mas sobretudo ao que não foi dito, às omissões, aos fantasmas do não dito e do indizível. É sabido, no domínio da psicanálise e da investigação infantil, que comunicamos para além daquilo que podemos registar de forma consciente. Transportamos sinais inconscientes transmitidos pelos nossos pais e avós.  

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Refere a importância dos segredos de família. O silêncio é como um combustível que alimenta o trauma? 

Exatamente. O silêncio é muito poderoso, comunicamos através dele. Através das histórias dos meus pacientes reuni muitos exemplos desses silêncios, de momentos em que os pais foram confrontados com uma pergunta e responderam com silêncio. Frequentemente, há uma sensação de que alguma coisa não está bem. Lembro-me do caso de um paciente que cresceu a acreditar que tinha tido um irmão gémeo. A forma como a mãe foi reagindo, com silêncios, criou nele uma quase obsessão. Mais tarde, viria a descobrir não que tinha tido um irmão gémeo, mas que tinha tido uma irmã que morreu antes do seu nascimento, situação que nunca foi processada e ultrapassada pela mãe. Através das ferramentas da investigação infantil temos possibilidade de analisar as nuances, as sincronicidades da comunicação.  

Diria que todas as famílias têm estas zonas cinzentas? Esse efeito prolonga-se em quantas gerações? 

Sim, diria que todas as famílias têm os seus silêncios. Atualmente, começa a falar-se sobre o alcance destes efeitos na quarta geração, até porque boa parte deste trabalho só começou a ser feita depois do Holocausto e, hoje, já temos uma quarta geração de descendentes, mas a investigação desenvolvida incide sobretudo na segunda e terceira gerações. No entanto, se pensarmos na epigenética e nos estudos realizados com animais com ciclos de vida mais curtos como, por exemplo, ratos, é possível desenvolver este trabalho em muitas gerações. Creio que já é possível identificar efeitos na 14ª geração ou algo semelhante.  

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Defende a ideia de que as experiências não processadas encontram sempre uma forma de regressar. É mesmo inevitável? Parece haver um certo fatalismo... 

É inevitável até um certo ponto. Não podemos dizer com absoluta certeza até que ponto um determinado evento pode afetar, positiva ou negativamente, a nossa vida. Na terapia lidamos sobretudo com implicações negativas, afinal é por isso que as pessoas nos procuram, mas parte da nossa herança emocional também se traduz em resiliência, esperança e sobrevivência. É importante ter esta abordagem dualista. Aliás, fico contente que tenha levantado essa questão do fatalismo porque na investigação da transmissão intergeracional do trauma, o foco incide sobretudo nas implicações negativas, mas não podemos menosprezar o fator resiliência, fundamental em sobreviventes de traumas. 

"Na terapia lidamos sobretudo com implicações negativas, afinal é por isso que as pessoas nos procuram, mas parte da nossa herança emocional também se traduz em resiliência, esperança e sobrevivência." Foto: DR

Pensando nesses silêncios que perduram, e tendo como exemplo as histórias que conta no livro, não haverá, também, da parte de quem viveu essas experiências, o direito à privacidade? Não haverá uma espécie de conflito? 

Há sempre essa dialética entre o contar e o calar, sendo que ambas têm as suas implicações. Às vezes, quando faço palestras sobre estes temas, nomeadamente sobre herança emocional, digo que as pessoas tendem a deslizar entre o demasiado e o insuficiente. Quando o trauma não é processado, por exemplo, quando uma mãe passou por uma experiência traumática que não processou e decide contar às/aos filha/os algo, acaba por fazê-lo através deles, correndo o risco de provocar um trauma secundário. Uma das coisas que digo com mais frequência a pais e mães, é que falar sobre segredos não é um evento, é um processo. Não se cria um momento em que se conta o segredo e se despeja toda a informação, cria-se, isso sim, espaço para uma conversa que vai decorrendo. Não ter segredos não implica contá-los. Tem que ver com a energia que colocamos ou não no desejo de esconder o segredo e na capacidade de criar uma relação em que há abertura constante para o diálogo. Não é algo que tenha que ver apenas com o nosso processo individual, mas que é interpessoal, em que partilhamos as nossas experiências tendo em conta a sensibilidade da outra pessoa, avaliando até que ponto está preparada para ouvir aquilo que lhe vamos dizer.  

Como podemos então saber se há uma herança emocional com a qual não estamos a lidar? 

Essa é, de facto, uma pergunta muito importante. Dou algumas pistas sobre isso no livro, mas creio que tudo começa com uma experiência e a necessidade de se criarem ligações entre o passado e o presente. Nem sabemos tudo sobre a nossa história, nem sempre queremos saber. Às vezes, optamos por não fazer determinadas ligações. Recentemente, numa conferência em que participei, uma pessoa fez a ligação entre o facto de ser parteira e de a sua avó ter morrido durante o parto. Não era um segredo de família, mas ela nunca tinha feito essa ligação e nunca se tinha perguntado até que ponto é que a sua decisão tinha sido influenciada por esse trauma da sua mãe. Conhecer o passado e fazer essas ligações pode ser importante. Às vezes, os nossos nomes também revelam informações importantes: qual é o significado, quem o escolheu, se traduz uma homenagem a alguém... tudo isso revela uma dinâmica de poder na família.  

A terapia é o único caminho?  

Penso que só conseguimos fazer esse trabalho sozinhos até um certo ponto. Podemos fazer as ligações, chegar a conclusões, mas creio que é apenas o princípio do processo. Existem formas importantes de sarar, seja através das nossas relações pessoais ou até da nossa comunidade, mas depois há um mergulho mais profundo no inconsciente que é mais fácil na terapia. Claro que nem todas as pessoas estão dispostas a fazê-lo, e está tudo bem. Mas quando queremos compreender certos aspetos da nossa vida ou mudá-los, o processo de terapia é mais eficaz. 

Há também um outro lado: o da herança emocional que transmitimos às gerações seguintes... 

Completamente. Ter filhas/os implica assumir essa responsabilidade. É fundamental conhecermo-nos, saber distinguir aquilo que nos pertence, que é nosso, que não deve ser projetado nas/os filhas/os. Toda a gente acaba por fazer projeções, os filhos são uma extensão narcísica, mas é importante assegurar que não lhes estamos a passar um fardo.  

No livro, todos os casos que apresenta tiveram um desfecho. Imagino que não seja sempre assim... 

Na realidade não há um "final feliz", até porque, no final, morremos. Mas há vários finais felizes ao longo do processo, e também devo dizer que há muitos momentos dolorosos. É uma combinação de dor e de tolerância à dor, perceções e momentos felizes.  

Os casos que relata são muito diferentes entre si, de homens e mulheres de diferentes idades. O género desempenha algum papel particular? 

Não sinto que homens, mulheres ou pessoas não binárias estejam mais aptas ou disponíveis para fazer este trabalho, depende sempre do indivíduo. Aquilo que me parece é que, culturalmente, as mulheres falam melhor a linguagem da terapia, mas isso não significa que o seu trabalho seja mais profundo. Às vezes, até pode ser um problema, porque parece que o trabalho está a ser feito, mas é só à superfície. É como se estivessem a ter a conversa, mas não estivessem a fazer o caminho.  

É, também, uma questão geracional? 

Geracional e cultural. O livro foi publicado em 27 países e pude aperceber-me dessas diferenças, da forma como, em cada cultura, se fala de emoções, se privilegia ou prioriza a família, se lida com o trauma. Sou apenas uma observadora, mas em Portugal, por exemplo, as pessoas parecem-me muito disponíveis para ter esta conversa, para partilhar experiências. Nem sempre é assim. Há uma ilusão de que, se não falarmos das coisas, elas não têm a capacidade de nos magoar. É claramente uma ilusão. Tudo o que nos rodeia tem um impacto em nós.  

Inclusivamente o inconsciente de quem nos rodeia?  

Sim, nomeadamente o das pessoas de quem gostamos. Aquilo que temos a fazer é estar cientes disso. Estar atentos. É um pouco a ideia do inconsciente: só podemos lidar com o que conhecemos. Naturalmente, não conseguimos controlar tudo, mas se há algo no nosso ambiente que nos afeta negativamente, temos o poder de nos afastar, de mudar alguma coisa. Temos agência. Não sei se existe esta palavra em Portugal... há muitas línguas nas quais ela não existe, o que também diz muito sobre essas culturas.  

A palavra continua a ser a mesma – trauma - mas quando falamos do está a acontecer no Médio Oriente, temos de elevá-la a uma dimensão impossível. Do ponto de vista pessoal [Galit Atlas é natural de Telalive, Israel] mas sobretudo profissional, como é possível gerir esse trauma? 

É a situação mais dolorosa que vivemos a nível global, e é provocada pelo trauma de gerações passadas, de ambos os lados. É algo que impacta todo o mundo. Não sei bem o que dizer, senão que vamos transportar esta herança durante muito tempo. Parece-me que é importante derrubar barreiras, lutar pela paz. Ela só virá através da compreensão e do reconhecimento mútuo do trauma do outro. Sem isso, continuaremos a responder a ameaças e a vermo-nos como vítimas. Cada um dos lados vê-se enquanto vítima e cada um dos lados é a vítima. Mas se continuarmos a pensar assim, tendemos a continuar a ver o outro como o agressor, a reagir à ameaça da aniquilação, a ser incapaz de reconhecer o trauma do outro. Toda a gente está traumatizada. Perdoe-me se pareço "grandiosa", mas a única forma de reparar é reconhecer a existência de várias gerações de trauma. Já houve várias pessoas a fazê-lo. Eu tenho amigos dos dois lados que trabalham juntos. Standing Together é um desses grupos.   

Os media, nomeadamente as redes sociais, também vieram modificar a forma como estes processos decorrem... 

Criam ameaça. Ameaça e trauma são as palavras-chave para descrever a forma como as redes sociais atuam. A partir do momento em que estamos expostos a essa informação, o sistema nervoso responde e entramos em modo sobrevivência. Sentimo-nos ameaçados e reagimos em função disso. Existem estudos que analisam as reações das pessoas enquanto assistem a vídeos nas redes sociais: o batimento cardíaco sobe, as pessoas começam a suar, ficam tensas. Há muitas respostas físicas a estes estímulos. Por isso, não é surpreendente que o mundo fique dividido. Não temos o espaço para processar, nem sequer para processar a dúvida. Estamos demasiado ameaçados para isso. 

Há diferentes fases no trauma, tal como no luto? 

Com certeza. Não podemos fazer esse trabalho quando estamos imersos no trauma, ou numa fase de ameaça. No Médio Oriente há bombardeamentos a decorrer, reféns, brutalidade. Só quando a guerra terminar e existir alguma sensação de segurança é que as pessoas vão conseguir começar a processar o trauma. Até lá impera o modo de sobrevivência.  

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