"Os agricultores são os heróis da luta contra as alterações climáticas"

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Maior projeto agroecológico do mundo

13 jul, 2024 - 00:47 • José Pedro Frazão

A natureza não precisa de fertilizantes, defende o gestor do maior projeto de agroecologia do mundo, que pretende transformar oito milhões de hectares de terras em terrenos de agricultura natural até 2030. A Fundação Calouste Gulbenkian acaba de distinguir este projeto, entre outros, com o Prémio Gulbenkian para a Humanidade 2024.

Lançado em 2016 pelo governo do estado de Andhra Pradesh, no sudeste da Índia, o projeto agora galardoado com o Prémio Gulbenkian para a Humanidade 2024 - partilhado com uma ONG egípcia de agricultura sustentável e um cientista americano de referência na área dos solos - é considerado o maior programa de agroecologia do mundo.

Baseado no conceito de "agricultura natural", envolve mais de um milhão de pequenos agricultores em 500 mil hectares - o equivalente à totalidade de culturas atingidas pelos trágicos incêndios de 2017 em Portugal.

O programa "Andhra Pradesh Community Managed Natural Farming" quer chegar a oito milhões de agregados familiares nos próximos 10 anos, investindo também aqui o valor do Prémio recebido em Lisboa.

O projeto aposta, sobretudo, no poder das mulheres agricultoras como Nagendramma Nettem, que, em conversa com a Renascença, revelou que trocou a agricultura com recurso a produtos químicos pela chamada "agricultura natural", na sequência de um encontro de um movimento de autoajuda em que participava.

O alto preço dos fertilizantes e um problema de baixa hemoglobina e perda de visão da sua filha mais velha levaram-na a experimentar uma outra forma de fazer agricultura. Criou uma pequena horta e conseguiu observar melhorias na saúde da filha em apenas 15 dias, o que a impeliu a desenvolver esta agricultura num campo maior.

É neste tipo de exemplos que se baseia o discurso mobilizador de Vijay Kumar, líder do projeto desde a sua fundação, depois de ter trabalhado durante uma década num grande programa público de redução da pobreza rural na Índia que, segundo as autoridades locais, envolveu 100 milhões de mulheres naquele país.

Em entrevista à Renascença, registada na véspera de receber o galardão, Kumar explicou os conceitos que presidem a esta prática agrícola num estado com mais de 49 milhões de habitantes, na sua maioria em áreas rurais.

Quão importante é para si este prémio que está a receber aqui em Lisboa?

Este é um prémio muito importante. É um reconhecimento global do nosso trabalho. E isso realmente deixa-nos felizes. É uma validação do que temos feito todos estes anos. E é igualmente importante, porque também inspira agricultores de todo o mundo.

Os agricultores são os heróis da luta contra as alterações climáticas, porque, em muitos países e em muitas situações, são vilipendiados. Os agricultores são "deuses" que podem resolver o problema climático. Por isso, estamos muito felizes por ser um reconhecimento que os agricultores realmente são os mais poderosos e os mais impactantes guerreiros das alterações climáticas.

Isto significa que espera um impacto global, para além das fronteiras da Índia.

Sim, absolutamente sim. E esse é o reconhecimento especial que o Prémio Gulbenkian nos confere. Permite-nos inspirar pessoas noutros países. O trabalho que estávamos a fazer já atraiu a atenção de cerca de 45 países. Portanto ajuda-nos a concretizar, a ter planos para o levar para outros países que gostariam do nosso suporte técnico.

A agricultura natural é definida como uma agricultura sem qualquer tipo de bioquímicos?

É uma pergunta difícil, porque existem muitas variações. Para nós, em Andhra Pradesh, a expressão "agricultura natural" significa que a agricultura está em harmonia com a natureza. Durante todos estes anos, violámos princípios da natureza que estamos também a aprender. A natureza não precisa de nenhum fertilizante. As florestas estão a crescer por conta própria, ninguém foi lá aplicar fertilizantes, ninguém as irrigou.

A "Mãe Natureza" evoluiu durante milhões de anos e há uma sabedoria por trás disto. Percebemos que estávamos constantemente a pensar que precisávamos de adicionar o nutriente X ou Y, azoto, fósforo, potássio, zinco e tantos outros produtos químicos totalmente desnecessários. Existem nutrientes suficientes no solo, no ar e na água para não precisarmos de adicionar nem um grama de qualquer um destes produtos químicos durante os próximos milhares de anos. Esta é a grande falácia da agricultura industrial. O que percebemos ao estudar e compreender os princípios da natureza é que, na verdade, as plantas alimentam o solo. Empurram os exsudados das raízes, o que ativa micróbios que, por sua vez, levam todos os nutrientes para a planta nos momentos e quantidades certas.

Portanto, se a natureza o faz gratuitamente, não estaremos a ser tolos na forma como fazemos agricultura? Todos os nossos princípios são assim. Não precisamos sequer de um grama de fertilizante sintético externo nem de fertilizantes orgânicos. Mas precisamos de algumas substâncias biológicas, como bio estimulantes, em pequenas quantidades. Na Índia, fazemo-lo com estrume e a urina de vaca num punhado de terra. Assim, existem fermentações de produtos naturais que não fornecem azoto, fósforo, potássio, mas ativam os micróbios do solo. Quando percebemos que não precisávamos de nenhum fertilizante químico orgânico, surgiu um paradigma muito novo de agricultura, menos dispendioso para o agricultor e que não depende de qualquer fornecimento externa. Basta simplesmente respeitar as leis da natureza.

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Como responde àqueles que dizem que este tipo de agricultura é menos vantajoso em relação à produtividade face à agricultura industrial?

A nossa produtividade é superior. Essa é a razão pela qual os agricultores a estão a adotar. Mais importante, temos mais culturas naquele mesmo acre de terreno do que a agricultura industrial, que apenas explora uma cultura. O nosso método de agricultura requer menos água e é capaz de resistir a longos períodos de seca e ainda assim dar resultados. Portanto, é muito mais produtiva do que a agricultura industrial.

Em quantidade suficiente para exportar?

Absolutamente. Em primeiro lugar, para satisfazer as nossas próprias necessidades do mercado local, e depois para exportar. Mas se todos os países adotassem este tipo de agricultura, haveria excedentes em todos os lugares e também resolveria o problema climático.

Defende que este tipo de agricultura é mais adaptativo em termos climáticos e que acompanha a natureza. Mas se a natureza fornece cada vez mais eventos extremos, como é que consegue praticar este tipo de agricultura?

A agricultura industrial tornou os eventos climáticos extremos mais frequentes. Na agricultura natural, melhorando a biologia e a porosidade do solo, a água não foge. Penetra realmente no solo onde permanece durante mais tempo e liberta a água lentamente conforme a necessidade da planta. Como a qualidade do solo melhora, mesmo com chuvas muito fortes, a água não fica estagnada e entra pelos solos.

Tivemos um ciclone muito severo em dezembro de 2023, o ciclone "Michaung". Perdemos a cultura que estava pronta a ser colhida em cerca de 500 mil acres. A velocidade do vento era de 120 a 130 quilómetros por hora. Mas os campos agrícolas naturais estavam intactos. Este é o poder de fazer uma agricultura em harmonia com a natureza porque o tronco é mais forte, as raízes são muito profundas, misturando-se muito bem com o solo.

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É falso dizer que trazer tecnologia para a agricultura torna as culturas mais resilientes ao clima?

Depende da tecnologia. É contra a natureza ou está na natureza? Fazemos agricultura que não está a destruir a natureza. Por isso, qualquer tecnologia que desempenhe esta função é bem-vinda. Não é alguma inteligência artificial ou algo vindo da Google ou de uma grande investigação. A agricultura industrial criou muitos falsos paradigmas, de que pode gerar uma semente resiliente. Mas quando os seus solos estão a deteriorar-se, qual a importância do tipo de semente que tem? E as investigações mais recentes mostram que os micróbios do solo podem melhorar a expressão genética se o solo é rico em biologia. Devemos perguntar-nos se a tecnologia respeita as leis da natureza.

Com as alterações climáticas, há muitas pessoas que estão a abandonar a agricultura, ou há uma renovação? Qual é a situação nas estatísticas na agricultura indiana?

Tem razão. Os jovens estão a abandonar a agricultura, porque não veem qualquer possibilidade. Na atualidade, o paradigma da agricultura industrial está a gerar prejuízos e os riscos aumentaram. Por isso questionam-se se vão ter um futuro melhor. Mas esperamos que, através da agricultura natural, tornando-a mais rentável e mais resiliente, estou certo de que poderemos atrair de volta os jovens. Essa é a nossa esperança, que os jovens voltem à agricultura, que esta renda mais, que seja saudável e melhore o solo ao mesmo tempo.

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