Pepa: «O Quaresma ficou magoado comigo, mas foi um prazer treiná-lo»

7 meses atrás 66

A vista sobre o azul do Golfo Pérsico é idílica. Pedro Miguel Marques da Costa Filipe, apenas Pepa, abre a janela ao zerozero e exibe o paraíso esculpido pelo Homem em Doha. A capital do Catar junta um mar manso a edificações exóticas, de abrir a boca de espanto. Modernidade oriental, sim, mas a piscar o olho ao mundo do oeste. Aos 43 anos, o treinador do Al Ahli é um homem de ideias fortes, convicções inegociáveis, mas está consciente do contexto diferente onde agora se movimenta. Fala, por isso, em «paciência e evolução», palavras confirmadas pela evidente melhoria da equipa na liga catari. 

A quarta parte da conversa com Pepa é um regresso a casa, um abraço ao passado. O agora treinador do Al Ahli fala da passagem intensa por Guimarães, interrompida antecipadamente, mas também pelo crescimento em Torres Novas e pelos dias de Benfica, com muita malandragem e um golo na estreia pela equipa principal.

Pode ler a primeira parte da grande entrevista AQUI: «Quem não tem jogo de cintura, aguenta duas semanas no Catar» 

E AQUI a segunda parte: «O Julian Draxler está uma máquina, fomos conquistando-o aos poucos» 

A terceira parte pode ser lida AQUI: «Fiquei magoado e frustrado com a saída do Cruzeiro»

zerozero - Depois de passar pela exigência do Vitória e do Cruzeiro, treinar um dos «três» grandes ou o SC Braga já não assusta o Pepa?

Pepa - Não, não, não. Não assusta nada, nunca me assustou. O treinador tem de se sentir preparado. No início da minha caminhada tive um diretor que me chamou e disse-me isto: 'Para que é que estás com isso tudo organizado, com folhas, papéis e o c******?' e eu respondi-lhe que era assim e que queria estar preparado para todos os desafios quando eles me surgissem. O que quero dizer com isto? Na nossa vida olhamos para o lado e dizemos que aquele tipo teve uma sorte enorme. No mundo do futebol é diferente. Sorte? Sim, no surgimento ou não de uma oportunidade. Mas quando ela surge, temos de estar preparados e aí não podemos esperar que a sorte nos ajude. Não vai dar. Até podemos ter uma grande oportunidade, mas se não formos bons vamos cair rápido. Quando nos preparamos... vai chegar a oportunidade ou não? Aí sim, pode haver ou não a sorte de ter esses desafios. Fui-me preparando ao longo da minha vida para esses desafios.

zz - E esses desafios têm surgido. 

qO Benfica meteu-me a mão no pescoço, e bem, para eu não me perder, eu andava um bocado malandreco. Infelizmente, voltei a deslumbrar-me quando marquei um golo na minha estreia pela equipa principal. Já me achava o rei da coboiada

Pepa

P - Sim, mas também não me posso esquecer de que fui perseguido muitas vezes por não ter o cartão de treinador, ter ou não ter o curso, e foi muito feio o que me fizeram [no Feirense e na chegada ao Moreirense]. Percebo, ok, não tinha o nível UEFA Pro. Mas que culpa tenho eu de estar a ser competente e a subir de divisão? Eu nunca quis deixar de tirar o curso. Queria, mas não me deixaram entrar porque não tinha currículo. Senti-me perseguido pela Associação Nacional de Treinadores e disse-o na cara do presidente. Não sou de tretas e o que tenho de dizer, digo. Não posso dizer que tenho esse sonho [treinar os «três grandes], mas se me perguntarem se me sinto mais preparado se algum dia surgir a oportunidade, claramente que me sinto. Sem receios, sem medo, apenas com o prazer enorme de fazer o que faço. Pressão boa, sim. Se não a tiver, faz-me falta. Se eu estiver em casa sem trabalhar, a minha mulher diz que eu, enfim, jesus! (risos) 

zz - Faz sentido. 

P - Dizem-me que no Catar não há pressão. Mas eu é que coloco pressão no meu trabalho! Gostava que estivessem 20 mil ou 50 mil adeptos no estádio, como no Brasil. Venho de lá com estádios cheios e chego ao Catar e tenho 100 pessoas num jogo ou 200. Até parece um jogo da era do covid - que, felizmente, ficou para trás. Lá está, tenho de ser exigente ao máximo para um futebol neste contexto e é isso que me auto-motiva, além da questão financeira. Não sou hipócrita e falo sobre isso abertamente. Não me assusta nada ter ido para a Arábia, agora estar no Catar. Em termos profissionais pode fechar certas portas? Não sei se fecha, são opções. O Roger Schmidt esteve na China, o Marcel Keizer esteve em Abu Dhabi. Não vejo as coisas assim, tenho 43 anos e muito pela frente. 

zz - Dizia que as suas segundas épocas costumam ser melhores do que as primeiras. Foi assim no Tondela e no Paços de Ferreira. Em Guimarães, a segunda época nem chegou a arrancar. 

P - E como foi essa época do clube? (risos) Foi top. E como está a ser esta? 

zz - O timing dessa saída foi estranho. O Pepa fez a pré-época e saiu perto de um jogo das provas da UEFA. 

P - Fiz a pré-época e saí a uma semana de um jogo de uma pré-eliminatória europeia. O Vitória é um clube brutal, especial. Tive divergências com o presidente e foi isso que me levou a sair. Mas não é uma pessoa que me vai retirar o prazer, a paixão e o agradecimento àqueles adeptos e àquela cidade. Não é isso que me faz olhar ressabiado. O Vitória é um clube apaixonante e fico orgulhoso por ter contribuído um bocadinho naquela pré-época. Vou partilhar uma coisa pela primeira vez em público. 

zz - Vamos a isso. 

P - Nessa pré-época, em que acabo por sair, lembro-me de falar com a minha equipa técnica e de lhes dizer isto: 'Estamos a criar aqui um grupo filha da... piiiii. Um grupo muito forte, top'. E depois aconteceu o que aconteceu. O presidente [António Miguel Cardoso], com quem tive a tal divergência grave, ao ponto de sair, está a fazer um grande trabalho. Conseguiu mais uma qualificação europeia e está a caminho de uma terceira seguida. Esse é o caminho natural do Vitória. A direção e o presidente estão de parabéns. A mim não me surpreende, mas o clube ainda está longe de outros voos. Isso demora. 

zz - O potencial social do Vitória é impressionante. 

@Catarina Morais / Kapta +

P - É, é sim senhor. Está a meio do que pode ser. O Julian Draxler sabe bem o que é o Vitória, por exemplo. Jogou no estádio. Nem todos têm a felicidade de trabalhar no Vitória e de saber o que é o clube. E é marcante também para quem defronta o Vitória, porque ficam... é impactante, é especial. Ali não há dois ou três clubes, é preto e branco em toda a cidade. 

zz - O Ricardo Quaresma foi um dos jogadores que treinou em Guimarães. Como é que foi gerir um campeão da Europa, já numa fase final do seu percurso? 

P - Foi um prazer enorme ter treinado o Ricardo Quaresma. Inteligente, um craque. A única infelicidade para ele, e para mim, foi ter sido o último treinador da carreira dele. Não sei se ele vai voltar a jogar ou não. Acredito que o Ricardo ficou muito magoado comigo, por ter jogado menos do que esperava. São opções do treinador, técnicas, mas ele foi importante e ajudou. Gostava de tê-lo apanhado noutros tempos, foi um dos melhores alas do mundo, era incrível. Na esquerda, na direita, para dentro, para fora, trivela, uma coisa do outro mundo. Só tive de desfrutá-lo, mas foi pena porque ele ficou um bocado magoado por não ter jogado como queria. O treinador tem de tomar decisões, tem as suas opções. 

zz - A concorrência também conta. 

P - Conta e a melhor forma de respeitar um jogador com um currículo e um historial tão grande é colocá-lo ao nível dos outros nas opções e na competitividade. Tratá-lo de forma especial? Sim, mas cada um tem a sua cabeça, era importante olhar para ele como olhava para os outros. É um orgulho enorme ter treinado o Ricardo, bom homem, chefe de família, foi um prazer. 

zz - Draxler, Quaresma, que nomes de elite faltam a esta lista de jogadores treinados por si? 

P - É um bocado injusto, porque vou esquecer alguns. O Marcus Edwards, o Matheus Pereira no Cruzeiro, o Ricardo Quaresma apesar de estar em final de carreira. Mas estava lá a inteligência, a qualidade técnica, a capacidade de ver as coisas antes dos outros. E o Julian Draxler, que está a ser uma surpresa para mim aqui no Catar. Eu punha-o aqui em cima e agora, ao vê-lo a treinar todos os dias e a fazer tudo, está a ser uma surpresa positiva. 

«O Multibanco ou me dizia ou adeus ou me fazia um manguito»

zz - O trabalho no Paços de Ferreira é o mais perfeito no percurso do Pepa? 

P - O do Tondela também. Foram três anos fantásticos, dentro dos objetivos do clube. Anos muito difíceis, mas que me enchem de orgulho. Por todos os clubes onde passei, os objetivos foram alcançados. Se o objetivo é a manutenção, não se pode exigir uma percentagem de vitórias ao nível do quinto classificado. Se me derem um Ferrari para as mãos, o meu objetivo é ser campeão na F1. Se me derem um Alpha Tauri ou um Lotus, o que querem? Que eu fique à frente do Red Bull ou do Mclaren? Não dá. Sinto-me mesmo realizado e não tenho receio nenhum de ir para a guerra com objetivos difíceis de alcançar. Chegará o dia em que vou falhar um objetivo, espero que não seja em breve (risos). Para já, sinto orgulho por estar a meter carimbos em todos os desafios ganhos. 

zz - Nasceu em Torres Novas e aos 13 anos foi para Lisboa e para o Benfica. Como foi a infância do menino Pepa? 

P - Uma infância boa, a jogar futebol a toda a hora. Não passei dificuldades, mas também não tive o que outros tiveram. A minha mãe trabalhava numa loja de perfumes e o meu pai era cantoneiro, trabalhava no camião do lixo. Nunca me faltou nada, tive comida e roupa. Quando fui para o Benfica, vindo de uma cidade pequena, houve ali um deslumbramento. O Benfica meteu-me a mão no pescoço, e bem, para eu não me perder, eu andava um bocado malandreco. Infelizmente, voltei a deslumbrar-me quando marquei um golo na minha estreia pela equipa principal. Já pensava que era isto e aquilo, e a mão aí já era pequena para me apertar o pescoço. Já não dava. Já me achava o rei da coboiada. 

zz - Foram muitas coisas novas em poucos anos. 

P - Ter passado por tanta coisa tão cedo, tantos amigos da onça, tantas pessoas interesseiras a chegarem-se a mim porque eu era o Pepa do Benfica, se calhar deu-me uma capa muito cedo. Há malta que deixa de jogar com trinta e tal anos e cai nisto ou naquilo. Eu arrisco-me a dizer que não vou cair em contos do vigário, porque vivo entre o trabalho e a família. Não digo isto por dizer, é o que é. Levei uma vacina para vida, vi muita gente interesseira. Isso deu-me uma bagagem grande para o resto da vida. E eu deixei de jogar muito cedo. 

zz - O último jogo foi no Olhanense, aos 26 anos. 

P - Antes disso tive um tumor no pé, fui nove vezes operado. Isso ajudou-me a moldar a minha personalidade, ajudou-me a ser mais exigente. Não tenho dúvidas de que foi muito útil para o que sou hoje como treinador. 

zz - Conseguiu juntar dinheiro no percurso de futebolista, com a ligação ao Benfica e às seleções jovens? 

P - Não, longe disso. O Multibanco ou me dizia ou adeus ou me fazia um manguito. Eu gostava muito de iogurtes líquidos, mas tive de optar entre os iogurtes e o leite. Ponto final. Passei dificuldades, mas não entrei em depressão. A depressão não me ia pôr comida em casa, digo isto com todo o respeito por quem tem depressões. Não tive tempo para perceber o que é uma depressão. Tive de ir à luta, arregaçar as mangas. Fui dar aulas de AEC's [Atividades de Enriquecimento Curricular, complementares ao 1º ciclo]. Não era professor de Educação Física, mas a lei permitia dar-me aulas porque tinha estado ligado ao Desporto e às seleções nacionais. Estive dois anos e tal a dar essas aulas, com muito gosto.

Tinha jeito para os miúdos e olho para esse período com saudade. À noite dava treinos no Sacavenense e mais tarde no Odivelas. O que eu ganhava... 100/150 euros e esse dinheiro fazia-me diferença. Fui à luta com tudo. A minha mulher trabalhava e agarrámo-nos muito um ao outro. Nunca atropelei nada nem ninguém. Se tivesse de chegar ao futebol profissional, chegava. Se tivesse de estar a treinar na II B ou na distrital, também estava. É a paixão que tenho pelo futebol. Tive a felicidade de ter oportunidades e de estar preparado para elas. 

«Ou ia para a fábrica da Renault ou me dedicava ao futebol»

zz - Nunca ponderou deixar o futebol e ir trabalhar noutra área? 

P - Quando me mudei para Aveiro [2009], de onde a minha mulher é natural, hesitei. Ou ia trabalhar para a fábrica da Renault ou me dedicava a 100 por cento ao futebol. Estive mesmo a ir para a fábrica e em cima da hora decidi investir o meu tempo no futebol. Foi um risco tremendo. 'Pronto, vamos embora' e lá fui, sem atropelar ninguém. Se calhar, quando fui treinar a Sanjoanense, muita gente perguntou 'quem é este gajo para vir treinar a nossa Sanjoanense?', é normal.

Quando fui para o Feirense, com 35/36 anos e na II Liga, sem nunca ter estado antes no futebol profissional, a mesma coisa. 'Mas quem é este boneco para vir treinar o Feirense, candidato à subida? O Pepa? Quem é que o Pepa treinou?'. Foi uma oportunidade de ouro que me surgiu. E eu agarrei-a com tudo. Estava preparado, subimos de divisão. É o que digo, estar preparado e esperar que as coisas surjam. 

zz - Que tipo de avançado foi o Pepa, antes das lesões e de ser treinador? 

A festa da subida à I Liga em Tondela @Global Imagens / Tony Dias

P - Era agressivo, batia nos defesas... estou à procura de um nome atual parecido comigo. Não, não era o Gyokeres (risos)! Gostava de cair nos corredores, pressionava bem sem bola, era muito chatinho para os defesas. Não era tecnicamente muito evoluído, o meu jogo de cabeça era fortíssimo a ganhar as bolas na vertical, mas o gesto técnico já não era grande espingarda. Faltava-me a técnica. Agressivo, atacava a profundidade, caía nos corredores e desgastava os defesas. E tinha facilidade em marcar golos. 

zz - Lembra-se de quem estava ao seu lado no banco de suplentes, na tarde em que entrou e marcou pelo Benfica ao Rio Ave? 

P - Ao meu lado... é difícil. Sei que entrei para o lugar do Nuno Gomes e quem me fez o passe foi o João V. Pinto. Quem estava ao meu lado no banco... Poborsky? 

zz - Michel Preud'Homme. 

P - Estava no banco (risos)? No aquecimento, o Michel gostava daquelas bolas de rotina, para ele encaixar. Tau, tau. Dois passos para o lado, mais uma. Mais dois passos, tau. Eu estava a aquecê-lo, como suplente, e o treinador dos guarda-redes pediu-me para rematar para um lado. Eu tive o azar de marcar golo (risos). Mandei um bilhete e a bola entrou ao ângulo. Eiiiiii, o Michel saiu da baliza desesperado, quis-me matar. O que eu fui fazer, estraguei aquela rotina do rapaz. Do rapaz, não, do homem. Eu fui para o banco a rezar para não sofrermos golos, para ele não dizer que a culpa era minha (risos). O Michel era impressionante, era muito difícil fazer-lhe golos. 

zz - E sabe quem foram os jogadores que mais jogos fizeram ao seu lado no futebol sénior? 

P - Diria Rui Baião e Jorge Ribeiro

zz - O Rui aparece no quinto lugar, com 38 jogos, e o Jorge Ribeiro em primeiro, com 48. No segundo lugar está o Alexandre (Varzim) e em terceiro o Quim Berto

P - Não andei longe. O Rui e o Jorge estiveram comigo na formação do Benfica e os restantes estiveram comigo no Varzim. 

zz - E a passagem pelo Lierse, da Bélgica? É um bocadinho fora da caixa. 

P - Fui emprestado pelo Benfica. O clube estava bem, jogava na Taça UEFA, lembro-me até de ter jogado contra o Bordéus, do Pauleta. E surgiu essa oportunidade, aceitei. 

zz - Quando olha para o futuro, mais à frente, o que lhe diz o coração? O que pretende atingir? 

P - Conquistar títulos. Quero ganhar títulos, falta-me isso na carreira. estar num clube que lute por títulos. Sem pressas e sem atropelar ninguém para lá chegar. No Cruzeiro era uma questão de tempo, mas vinha da Série B e era preciso ganhar a estabilidade. 

Portugal

Ricardo Quaresma

NomeRicardo Andrade Quaresma Bernardo

Nascimento/Idade1983-09-26(40 anos)

Nacionalidade

Portugal

Portugal

PosiçãoAvançado (Extremo Esquerdo) / Avançado (Extremo Direito)

 Vitória SC x Gil Vicente

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