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Luís Montenegro lançou frenesim de especulação. Foto: Estela Silva/Lusa
Sem faísca não há fogo, sem criminosos não há incêndios, e sem interesses não há tragédias?
Com Portugal assolado por uma onda de incêndios, que provocaram cinco mortos e dezenas de feridos, Luís Montenegro ficou, na semana passada, a milímetros de imputar responsabilidades a terceiros. “Não podemos perdoar atitudes criminosas que estão na base de muitas das ignições que ocorreram nos últimos dias”, disse.
Segundo o primeiro-ministro, houve “coincidências a mais” no aparecimento de um grande número de fogos. “Há interesses que sobrevoam estas ocorrências”, atirou, sem nunca concretizar ao quê ou a quem se referia.
Governo declara situação de calamidade nos municípios afetados pelos fogos
Montenegro falava de alguma empresa? Algum negócio? A Renascença questionou o gabinete do primeiro-ministro, mas não obteve resposta.
Nas redes sociais, assim como no terreno, abundam teorias – falsas, descontextualizadas ou infundadas. Há quem insinue que 1) os fogos estão relacionados com a prospeção de lítio, e quem 2) especule sobre as empresas de fabrico e comercialização de papel. Há ainda quem 3) aponte o dedo às empresas privadas de meios-aéreos de combate às chamas, e também 4) à indústria madeireira.
Na passada quinta-feira, em entrevista ao programa "Hora da Verdade", Paulo Rangel evitou ir tão longe quanto Montenegro. E Margarida Blasco, ministra da Administração Interna, seguiu o mesmo caminho quando disse: “Havendo a convicção de que muitos destes incêndios têm origem criminosa, há que destrinçar entre aqueles que eventualmente sejam negligentes dos outros que possam configurar a existência de uma associação criminosa”.
Foto: Paulo Cunha/Lusa
Mãos no fogo?
Desde domingo passado, pelo que apurou a Renascença, foram detidas pelo menos nove pessoas suspeitas de terem ateado fogos. Este número representa quase um terço do total detidos (29) deste ano, tendo em conta o último registo da Polícia Judiciária.
Para já, a única certeza é que o “destrinçar” das motivações dos suspeitos não será tarefa fácil. E tomará algum tempo.
Conforme lembra à Renascença o psicólogo forense Mauro Paulino, “não há um único perfil do incendiário português”. Se é verdade que há casos de motivação “instrumental”, também há quem ateie fogos apenas numa “tentativa de expressar emoções, zanga, frustração”.
O especialista desconhece a existência de qualquer estudo que aponte uma “motivação” mais prevalente em incendiários. Reconhece, ainda assim, que em alguns existe a “ideia de obter ganhos materiais, algum valor pecuniário associado às questões dos incêndios, para faturar determinado tipo de materiais ou conseguir aceder a determinado tipo de terrenos, que estavam bloqueados”.
Mas daí a algum dos suspeitos ter sido contratado para lançar incêndios – para proveito de terceiros – é um salto especulativo.
Em entrevista ao programa "Dúvidas Públicas", da Renascença, o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal já veio dizer que as palavras de Montenegro " têm reduzida adesão à realidade dos fogos”.
Não há qualquer indício de que “os incendiários [dos últimos dias] tenham cometido estes crimes por interesses económicos escondidos”, fizeram saber fontes da GNR e PJ ao “Expresso”. “As declarações do primeiro-ministro não estão fundadas em factos diretos ou relatórios oficiais”, disse um responsável da GNR.
Funeral de um dos bombeiros vitima dos incêndios em Portugal. Foto: Fernando Veludo/Lusa
A culpa é do papel? Qual papel?
Um dos alegados “interesses” que mais circula nas redes sociais é o das empresas de fabrico e comercialização de papel. Não existe, porém, qualquer caso, notícia ou indício direto, que ateste tal teoria.
Mesmo Paulo Lucas, da ZERO - Associação Sistema Terra Sustentável, nota que os fogos não apresentam “vantagens nenhumas” para as empresas da celulose.
“Efetivamente só estariam a destruir a sua própria matéria-prima, não é? Se nós vamos ter uma área de eucaliptal que vai arder de forma muito significativa, numa indústria que já importa uma parte muito significativa da matéria-prima, isso era uma coisa completamente, do ponto de vista de gestão, lesiva. E revelava um comportamento completamente inaceitável”, diz.Mais: os incêndios potenciam o abandono das áreas de eucalipto.
“Os eucaliptais vão ficar afetados, depois todo o trabalho de corte, etc., vai crescer os custos de manutenção ao proprietário. Não há aqui grandes interesses relativamente a isso.”
Isto não quer dizer, porém, que a atividade comercial de empresas como a Navigator ou Altri não tenha nenhuma ligação com os fogos, aponta Leonor Canadas, porta-voz do coletivo Climáximo, em declarações à Renascença.
As empresas da celulose, entende a ativista, estão na origem do problema (por incentivarem a plantação de eucaliptos) e ainda podem, no futuro, vir a lucrar do sucedido, devido a negócios paralelos em que estão a investir.
“Estão a investir em negócios de bioenergia, biomassa e hidrogénio verde, o que faz com passa a ser menos importante para estas empresas se a madeira está queimada ou não, porque podem fazer uso da madeira de qualquer forma”, diz Leonor Canadas.
Não por acaso, na passada sexta-feira, a sede da Navigator, em Lisboa, foi escolhida pelos ativistas da Climáximo para uma ação de protesto. (A empresa vai apresentar queixa-crime.)
Portugal é o país com maior área relativa de eucaliptal no mundo. Ao mesmo tempo, é dos países que mais arde na Europa.
A Renascença questionou a Navigator e a Altri sobre como se posicionam perante a acusação de terem “interesse” e “responsabilidade” nos incêndios. Até ao momento, não obteve resposta.
Funeral de um dos bombeiros vitima dos incêndios em Portugal. Foto: Fernando Veludo/Lusa
Então e os meios-aéreos?
Todos os anos o Estado português gasta milhões de euros com a contratação de meios-aéreos para o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR) – cujos níveis de prontidão III e IV vão de 1 junho a 15 de outubro.
E todos anos há quem acuse as empresas proprietárias dos meios aéreos de terem “interesse” em provocar fogos – para gerar mais negócio.
Ora, o Governo não contratualiza meios aéreos na hora. Na última semana, não gastou qualquer valor extra para usufruir dos serviços dos meios-aéreos já contratados.
O número de meios aéreos do DECIR é sempre acautelado com antecedência, não há contratação de serviços extra em momentos de crise. O que explica, por exemplo, a vinda de reforços de bombeiros, veículos e aviões de outros países europeus.
Desde que tomou posse, segundo dados do Portal Base, o Governo de Luís Montenegro assinou oito contratos para locação de meios-aéreos para o DECIR de 2024. Ao todo, gastou cerca de 14 milhões e 933 mil euros. (Deste valor não fazem parte os contratos já assinados pelo Executivo de António Costa, nos primeiros quatro meses do ano.)
Um bombeiro descansa perto de um terreno queimado, durante os trabalhos de combate a incêndios florestais, nos arredores de Doninhas, em Talhadas, Sever do Vouga. Foto: Susana Vera/Reuters
E os madeireiros?
Montenegro não concretizou. Paulo Rangel e Margarida Blasco também não. Mas António Rodrigues, vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, sim.
Em declarações à Renascença, no programa “São Bento à Sexta”, o social-democrata disse que, “no passado, falou-se de madeireiros, hoje fala-se de outro tipo de interesses que podem vir estar por baixo dos terrenos [minérios, lítio]”.
“Claro que é muito difícil encontrar a ligação entre aquele que pratica o ato e aquele que é o mandatário do ato. É difícil que se consiga fazer isso. Aliás, condenados só têm sido aqueles que têm sido apanhados, quase sempre em flagrante delito. Mas há mais qualquer coisa que a mera negligência das pessoas”, afirmou.
As palavras de António Rodrigues fazem sentido? E têm fundamento?
À Renascença, Vítor Poças, presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, diz que “não faz sentido acusar ou imputar responsabilidades [pelos fogos] a nenhum setor empresarial em Portugal”.
O líder da AIMMP afirma, ainda assim, compreender e aceitar a “tentação”, mesmo “não sendo legítima”, das pessoas tentarem “buscar de uma explicação, qualquer que seja, para este fenómeno dantesco e que tem prejudicado o país”.
“Não podemos é recorrer a um argumento emotivo que nos possa surgir, porque sei que a preocupação é realmente muito grande, o sofrimento é muito grande, e depois acabamos por ter essa tentação”, nota.A seguir às populações e aos bombeiros, que “acabam ter prejuízos do ponto de vista humano”, “os proprietários e a indústria que dependem da floresta” são “os grandes prejudicados pelos incêndios”, sublinha Vítor Poças, que desafia a comunicação social e Polícia Judiciária a fazerem “estudos” sobre as motivações das pessoas detidas.
“Se algum empresário, mesmo que meu associado, caísse na tentação de fazer alguma coisa dessas, e eu tomasse conhecimento, seria o primeiro a denunciar isso publicamente e a expulsá-lo como associado”, garante ainda.
Incêndios distrito de Aveiro, Macinhata da Seixa. Foto: Miguel Marques Ribeiro
E o lítio?
Outro dos alegados “interesses” veiculados nas redes sociais é o lítio. Desde segunda-feira, começaram a circular recortes do Mapa do Minério, da rede MiningWatch Portugal, alertando para uma sobreposição de muitos focos de incêndio e zonas de prospeção e pesquisa do lítio.
A mensagem implícita? Que as empresas de exploração de lítio teriam “interesse” nos incêndios.
Esta correlação é, tudo indica, falsa (e não é nova). Porquê? Terrenos afetados por fogos não são favoráveis à prospeção de lítio. E a lei portuguesa - Decreto-Lei n.º 55/2007 – proíbe, durante 10 anos, alterar e utilizar terrenos que tenham sido afetados por incêndios florestais.
À Renascença, Nik Völker, membro da MiningWatch e responsável pela criação do Mapa do Minério, diz que o que está em causa é uma coincidência, um caso de “viés de confirmação”.
A associação errónea entre incêndios e zonas de prospeção de lítio remonta a 2019, em particular a uma reportagem da "CMTV". (A mesma tese voltou a emergir aquando dos incêndios de 2022.) O Mapa do Minério “tem mais procura em momentos em que projetos estão em consulta pública, e agora desde 2019, nos períodos em que há muita ocorrência de incêndios”, assume Nik Volker.
Em declarações à Renascença, Alexandre Lima, geólogo e professor universitário, nota o que o Mapa do Minério, ao assinalar todos os pedidos de prospeção e pesquisa desde que há registo (mesmo os já contratos já expirados), gera confusão.
O geólogo explica ainda os incêndios são um “inconveniente” do ponto de vista prático para quem anda no terreno, “pelo menos durante alguns meses”. E na deteção remota – a primeira abordagem na grande maioria dos casos – é ainda muito pior.
“A nossa primeira abordagem é a utilização de satélites e já descobrimos que, às vezes, um incêndio tem uma resposta semelhante a uma anomalia do nosso algoritmo que identifica lítio, mesmo que o incêndio já tenha acontecido há cinco, seis, sete anos”, conta.