Por detrás dos "interesses" nos incêndios, sobram teorias da conspiração

2 horas atrás 22

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 Estela Silva/LusaLuís Montenegro lançou frenesim de especulação. Foto: Estela Silva/Lusa

Sem faísca não há fogo, sem criminosos não há incêndios, e sem interesses não há tragédias?

Com Portugal assolado por uma onda de incêndios, que provocaram cinco mortos e dezenas de feridos, Luís Montenegro ficou, na semana passada, a milímetros de imputar responsabilidades a terceiros. “Não podemos perdoar atitudes criminosas que estão na base de muitas das ignições que ocorreram nos últimos dias”, disse.

Segundo o primeiro-ministro, houve “coincidências a mais” no aparecimento de um grande número de fogos. “Há interesses que sobrevoam estas ocorrências”, atirou, sem nunca concretizar ao quê ou a quem se referia.


Governo declara situação de calamidade nos municípios afetados pelos fogos

Montenegro falava de alguma empresa? Algum negócio? A Renascença questionou o gabinete do primeiro-ministro, mas não obteve resposta.

Nas redes sociais, assim como no terreno, abundam teorias – falsas, descontextualizadas ou infundadas. Há quem insinue que 1) os fogos estão relacionados com a prospeção de lítio, e quem 2) especule sobre as empresas de fabrico e comercialização de papel. Há ainda quem 3) aponte o dedo às empresas privadas de meios-aéreos de combate às chamas, e também 4) à indústria madeireira.

Na passada quinta-feira, em entrevista ao programa "Hora da Verdade", Paulo Rangel evitou ir tão longe quanto Montenegro. E Margarida Blasco, ministra da Administração Interna, seguiu o mesmo caminho quando disse: “Havendo a convicção de que muitos destes incêndios têm origem criminosa, há que destrinçar entre aqueles que eventualmente sejam negligentes dos outros que possam configurar a existência de uma associação criminosa”.


 Paulo Cunha/Lusa Foto: Paulo Cunha/Lusa

Mãos no fogo?

Desde domingo passado, pelo que apurou a Renascença, foram detidas pelo menos nove pessoas suspeitas de terem ateado fogos. Este número representa quase um terço do total detidos (29) deste ano, tendo em conta o último registo da Polícia Judiciária.

Para já, a única certeza é que o “destrinçar” das motivações dos suspeitos não será tarefa fácil. E tomará algum tempo.

Conforme lembra à Renascença o psicólogo forense Mauro Paulino, “não há um único perfil do incendiário português”. Se é verdade que há casos de motivação “instrumental”, também há quem ateie fogos apenas numa “tentativa de expressar emoções, zanga, frustração”.

O especialista desconhece a existência de qualquer estudo que aponte uma “motivação” mais prevalente em incendiários. Reconhece, ainda assim, que em alguns existe a “ideia de obter ganhos materiais, algum valor pecuniário associado às questões dos incêndios, para faturar determinado tipo de materiais ou conseguir aceder a determinado tipo de terrenos, que estavam bloqueados”.

Mas daí a algum dos suspeitos ter sido contratado para lançar incêndios – para proveito de terceiros – é um salto especulativo.

Em entrevista ao programa "Dúvidas Públicas", da Renascença, o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal já veio dizer que as palavras de Montenegro " têm reduzida adesão à realidade dos fogos”.

Não há qualquer indício de que “os incendiários [dos últimos dias] tenham cometido estes crimes por interesses económicos escondidos”, fizeram saber fontes da GNR e PJ ao “Expresso”. “As declarações do primeiro-ministro não estão fundadas em factos diretos ou relatórios oficiais”, disse um responsável da GNR.


 Fernando Veludo/LusaFuneral de um dos bombeiros vitima dos incêndios em Portugal. Foto: Fernando Veludo/Lusa

A culpa é do papel? Qual papel?

Um dos alegados “interesses” que mais circula nas redes sociais é o das empresas de fabrico e comercialização de papel. Não existe, porém, qualquer caso, notícia ou indício direto, que ateste tal teoria.

Mesmo Paulo Lucas, da ZERO - Associação Sistema Terra Sustentável, nota que os fogos não apresentam “vantagens nenhumas” para as empresas da celulose.

“Efetivamente só estariam a destruir a sua própria matéria-prima, não é? Se nós vamos ter uma área de eucaliptal que vai arder de forma muito significativa, numa indústria que já importa uma parte muito significativa da matéria-prima, isso era uma coisa completamente, do ponto de vista de gestão, lesiva. E revelava um comportamento completamente inaceitável”, diz.

Mais: os incêndios potenciam o abandono das áreas de eucalipto.

“Os eucaliptais vão ficar afetados, depois todo o trabalho de corte, etc., vai crescer os custos de manutenção ao proprietário. Não há aqui grandes interesses relativamente a isso.”

Isto não quer dizer, porém, que a atividade comercial de empresas como a Navigator ou Altri não tenha nenhuma ligação com os fogos, aponta Leonor Canadas, porta-voz do coletivo Climáximo, em declarações à Renascença.


As empresas da celulose, entende a ativista, estão na origem do problema (por incentivarem a plantação de eucaliptos) e ainda podem, no futuro, vir a lucrar do sucedido, devido a negócios paralelos em que estão a investir.

“Estão a investir em negócios de bioenergia, biomassa e hidrogénio verde, o que faz com passa a ser menos importante para estas empresas se a madeira está queimada ou não, porque podem fazer uso da madeira de qualquer forma”, diz Leonor Canadas.

Não por acaso, na passada sexta-feira, a sede da Navigator, em Lisboa, foi escolhida pelos ativistas da Climáximo para uma ação de protesto. (A empresa vai apresentar queixa-crime.)

Portugal é o país com maior área relativa de eucaliptal no mundo. Ao mesmo tempo, é dos países que mais arde na Europa.

A Renascença questionou a Navigator e a Altri sobre como se posicionam perante a acusação de terem “interesse” e “responsabilidade” nos incêndios. Até ao momento, não obteve resposta.


 Fernando Veludo/LusaFuneral de um dos bombeiros vitima dos incêndios em Portugal. Foto: Fernando Veludo/Lusa

Então e os meios-aéreos?

Todos os anos o Estado português gasta milhões de euros com a contratação de meios-aéreos para o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR) – cujos níveis de prontidão III e IV vão de 1 junho a 15 de outubro.

E todos anos há quem acuse as empresas proprietárias dos meios aéreos de terem “interesse” em provocar fogos – para gerar mais negócio.

Ora, o Governo não contratualiza meios aéreos na hora. Na última semana, não gastou qualquer valor extra para usufruir dos serviços dos meios-aéreos já contratados.

O número de meios aéreos do DECIR é sempre acautelado com antecedência, não há contratação de serviços extra em momentos de crise. O que explica, por exemplo, a vinda de reforços de bombeiros, veículos e aviões de outros países europeus.

Desde que tomou posse, segundo dados do Portal Base, o Governo de Luís Montenegro assinou oito contratos para locação de meios-aéreos para o DECIR de 2024. Ao todo, gastou cerca de 14 milhões e 933 mil euros. (Deste valor não fazem parte os contratos já assinados pelo Executivo de António Costa, nos primeiros quatro meses do ano.)


 Susana Vera/ReutersUm bombeiro descansa perto de um terreno queimado, durante os trabalhos de combate a incêndios florestais, nos arredores de Doninhas, em Talhadas, Sever do Vouga. Foto: Susana Vera/Reuters

E os madeireiros?

Montenegro não concretizou. Paulo Rangel e Margarida Blasco também não. Mas António Rodrigues, vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, sim.

Em declarações à Renascença, no programa “São Bento à Sexta”, o social-democrata disse que, “no passado, falou-se de madeireiros, hoje fala-se de outro tipo de interesses que podem vir estar por baixo dos terrenos [minérios, lítio]”.

“Claro que é muito difícil encontrar a ligação entre aquele que pratica o ato e aquele que é o mandatário do ato. É difícil que se consiga fazer isso. Aliás, condenados só têm sido aqueles que têm sido apanhados, quase sempre em flagrante delito. Mas há mais qualquer coisa que a mera negligência das pessoas”, afirmou.

As palavras de António Rodrigues fazem sentido? E têm fundamento?

À Renascença, Vítor Poças, presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, diz que “não faz sentido acusar ou imputar responsabilidades [pelos fogos] a nenhum setor empresarial em Portugal”.

O líder da AIMMP afirma, ainda assim, compreender e aceitar a “tentação”, mesmo “não sendo legítima”, das pessoas tentarem “buscar de uma explicação, qualquer que seja, para este fenómeno dantesco e que tem prejudicado o país”.

“Não podemos é recorrer a um argumento emotivo que nos possa surgir, porque sei que a preocupação é realmente muito grande, o sofrimento é muito grande, e depois acabamos por ter essa tentação”, nota.

A seguir às populações e aos bombeiros, que “acabam ter prejuízos do ponto de vista humano”, “os proprietários e a indústria que dependem da floresta” são “os grandes prejudicados pelos incêndios”, sublinha Vítor Poças, que desafia a comunicação social e Polícia Judiciária a fazerem “estudos” sobre as motivações das pessoas detidas.

“Se algum empresário, mesmo que meu associado, caísse na tentação de fazer alguma coisa dessas, e eu tomasse conhecimento, seria o primeiro a denunciar isso publicamente e a expulsá-lo como associado”, garante ainda.


 Miguel Marques RibeiroIncêndios distrito de Aveiro, Macinhata da Seixa. Foto: Miguel Marques Ribeiro

E o lítio?

Outro dos alegados “interesses” veiculados nas redes sociais é o lítio. Desde segunda-feira, começaram a circular recortes do Mapa do Minério, da rede MiningWatch Portugal, alertando para uma sobreposição de muitos focos de incêndio e zonas de prospeção e pesquisa do lítio.

A mensagem implícita? Que as empresas de exploração de lítio teriam “interesse” nos incêndios.

Esta correlação é, tudo indica, falsa (e não é nova). Porquê? Terrenos afetados por fogos não são favoráveis à prospeção de lítio. E a lei portuguesa - Decreto-Lei n.º 55/2007 – proíbe, durante 10 anos, alterar e utilizar terrenos que tenham sido afetados por incêndios florestais.

À Renascença, Nik Völker, membro da MiningWatch e responsável pela criação do Mapa do Minério, diz que o que está em causa é uma coincidência, um caso de “viés de confirmação”.

A associação errónea entre incêndios e zonas de prospeção de lítio remonta a 2019, em particular a uma reportagem da "CMTV". (A mesma tese voltou a emergir aquando dos incêndios de 2022.) O Mapa do Minério “tem mais procura em momentos em que projetos estão em consulta pública, e agora desde 2019, nos períodos em que há muita ocorrência de incêndios”, assume Nik Volker.

Em declarações à Renascença, Alexandre Lima, geólogo e professor universitário, nota o que o Mapa do Minério, ao assinalar todos os pedidos de prospeção e pesquisa desde que há registo (mesmo os já contratos já expirados), gera confusão.

O geólogo explica ainda os incêndios são um “inconveniente” do ponto de vista prático para quem anda no terreno, “pelo menos durante alguns meses”. E na deteção remota – a primeira abordagem na grande maioria dos casos – é ainda muito pior.

“A nossa primeira abordagem é a utilização de satélites e já descobrimos que, às vezes, um incêndio tem uma resposta semelhante a uma anomalia do nosso algoritmo que identifica lítio, mesmo que o incêndio já tenha acontecido há cinco, seis, sete anos”, conta.

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