“Portugal não pode ser só o bom aluno da Europa nas migrações. Deve exigir que não prejudiquem a sua economia”

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“Este plano é indispensável e de emergência. Mas não espero uma política migratória para amanhã”

O presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) é também um especialista em migrações. Entrevistado pela Renascença, Gonçalo Saraiva Matias defende que a Europa deve criar mecanismos que incentivem a atração de talento não apenas para os países mais dinâmicos. O jurista alerta que o incumprimento do Estado de Direito significa o fim da União Europeia e apela a mais apoios de Bruxelas a Portugal.

Como é que o Plano de Ação para as Migrações se articula com a nossa dimensão europeia? A Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) foi criada para um certo alinhamento com a Europa.

Não creio que haja um desalinhamento. Eu penso que a grande preocupação na Europa é a proteção das fronteiras externas e garantir que estas estão sob controlo. Penso que essa preocupação está refletida neste plano. A partir do momento em que nós regulamos as coisas e temos instituições a funcionar, penso que aí há um alinhamento.

Já existia a Agência. As instituições existiam.

A questão é que elas não funcionavam. Pensemos que há um país qualquer na Europa que tinha milhares ou milhões de processos pendentes. Isso preocupa toda a gente e, portanto, é compreensível que haja essa relação.

Portugal não pode ser só o bom aluno da Europa e também tem de exigir à Europa. É natural que Portugal queira e tenha de cumprir com regras na entrada de pessoas de países terceiros, nomeadamente pessoas da CPLP. Agora, a Europa não se pode tornar uma fortaleza fechada com muros à sua volta e, com isso, prejudicar as economias mais frágeis, como a portuguesa.

A Europa não pode ter na Alemanha um programa de atração de imigrantes altamente qualificados - e muito bem com mérito para a Alemanha, que o soube desenhar - e com isso atrai os mais qualificados, a começar pelos portugueses que estão a sair às dezenas de milhar. Um terço dos jovens portugueses estão a sair do país.

O que sugere que a Europa faça para ajudar Portugal?

A Europa tem de perceber que está num processo de envelhecimento acelerado e que há economias que são mais atrativas do que outras. Ninguém tem dúvidas que a economia alemã é mais atrativa que a portuguesa.

Nós tivemos saldos migratórios negativos durante 10 anos. Nada nos garante que, se a economia portuguesa quebrar nos próximos anos, esse ciclo não volte. Para quem está hoje muito preocupado com a imigração, eu estaria mais preocupado com uma possível queda da nossa economia e com os efeitos que isso vai ter na demografia e com a perda de imigração por essa via.

Mas há um instrumento europeu para ajudar Portugal? É Portugal que tem que dar o passo à frente e propor algo a Bruxelas?

Este Pacto das Migrações e Asilo está muito concentrado em fechar as fronteiras, em erguer os muros e em evitar as entradas, mas está pouco preocupado com os canais legais de imigração, porque os países mais ativos e dinâmicos criaram os seus próprios canais.

A Alemanha, por exemplo, acaba de aprovar um programa de imigração por pontos, igual aquele que o Canadá tem há muitos anos e que o Reino Unido criou assim que saiu da União Europeia. A Alemanha criou um pacote brutal de atração de imigrantes qualificados desde o final do ano passado. Não estou a pedir à Alemanha para deixar de fazer isto.

A Alemanha está a fugir à harmonização de regras?

Não, acho bem que faça isto. Não é contra o Direito europeu. Portugal tem de acordar para esta realidade e seguir esse exemplo e, em segundo lugar, deve exigir à Europa condições para criar programas deste género, para não haver aqui uma concorrência desleal.

Porque ela existe, há uma corrida global pelo talento. Todo o mundo está à procura de talento. Os países estão a fazer o trabalho que lhes compete para fazer isso. Portugal não está nem a fazer esse trabalho, nem a ter a solidariedade dos outros. Agora começa a fazer um pouco esse trabalho, mas temos que exigir da Europa condições para isso.

E que condições são essas?

Falou-se em 2015 em criar canais legais de imigração para a Europa. A única coisa que foi criada foi a Diretiva ‘Bluecard’, que não funciona porque exige contrato de trabalho e porque tem valores altíssimos de remuneração. É preciso que a Europa crie mecanismos que incentivem a atração de talento para a Europa como um todo, não apenas para os países mais dinâmicos e mais atrativos.

Ou com salários mais elevados.

Parece que estes programas foram desenhados para esses países e não para nós. E é isso que nós temos de exigir, porque nós precisamos de pessoas com salários mais elevados.

E, já agora, o Parlamento Europeu pode fazer a diferença aí?

Pode fazer toda a diferença, mesmo que não tenha todas as competências. Pelo menos pode falar nisso. Pode fazer propostas, pode levantar a questão.

O Pacto Europeu das Migrações foi descrito como um pacto de mínimos. Antes ter um Pacto do que não ter nada?

Concordo, acho melhor ter um pacto do que não ter nada. É um pacto de mínimos, de facto, não há dúvida nenhuma. Se recuarmos a 2015 e à chamada ‘crise dos migrantes’, vemos que os objetivos já nessa altura eram mais elevados. E mesmo os documentos preparatórios deste Pacto, que são de 2020, também eram mais ambiciosos.

Destacava aqui dois aspetos. Um deles tem a ver com a recolocação de refugiados. Um dos objetivos claros que já estava na Agenda Europeia para as Migrações em 2015, era a criação de um mecanismo de solidariedade. Chegou-se a falar num sistema de quotas, contra o qual levantaram-se vários Estados, ameaçando levar o sistema a Tribunal, dizendo que isso ultrapassava as competências da União Europeia. E esse sistema caiu.

O que há é um mecanismo de solidariedade mínimo em que os Estados pagam aos outros para não receberem refugiados. Ora, se estivermos a pensar em países ricos, isto dá-lhes uma capacidade infinita de não receberem refugiados, o que me parece uma violação desse mecanismo e desse princípio de solidariedade. Portanto, acho que aí o Pacto fica aquém daquilo que devia ter ido.

Outro aspeto em que me parece que o Pacto também fica aquém é nos canais de migração regular, não estabelecendo mecanismos sólidos e equitativos de migração regular, o que vai criar dificuldades aos países que precisam de receber pessoas. Vai criar dificuldades às pessoas que gostariam de vir para a Europa, não têm como o fazer e, portanto, têm de recorrer às redes clandestinas.

Muitas pessoas dizem que fechar as fronteiras cria redes clandestinas. Eu estou de acordo com isso, mas abrir as fronteiras também cria oportunidades para as redes clandestinas. É preciso criar canais regulares de migração que façam com que as pessoas tenham muito mais facilidade de entrar por esses canais do que pelas vias clandestinas.

Vou usar outra vez o exemplo do Canadá. Se as pessoas puderem candidatar-se a um visto facilmente através dum telemóvel vão preferir fazer isso a porem-se

nas mãos de uma rede clandestina a quem pagam em média 10 mil dólares, que é quanto custa uma travessia ilegal em média, como nos dizem os serviços de informações.

É evidente que temos de criar canais fáceis, transparentes, expeditos para que as pessoas possam candidatar-se a vistos e é aí que eu acho que o Pacto está a falhar. Claro que é melhor isto que nada, porque pelo menos temos um acordo de imigração e isso não é mau. Não quer dizer que esse acordo não possa ser melhorado.

Mas é difícil. Chegámos aqui ao fim de oito anos.

Mas é mais fácil trabalhar em cima de alguma coisa do que trabalhar em cima de nada. É mais fácil agora dizer que há aqui 2 pontos que temos de melhorar do que dizer que temos que melhorar tudo o temos que fazer a partir do zero. A mim parece-me mais fácil, se calhar chame-me ingénuo…

As principais famílias políticas que aprovaram o Pacto reconhecem efetivamente que tem de ser melhorado. A questão vai parar também às ações de implementação. Se o Pacto é imperfeito, a implementação vai ter muitas dificuldades em ser executado. Isso não vai danificar, na prática, os poucos méritos que eventualmente possa este Pacto ter?

A implementação é muito importante, mas não acho que o Pacto já venha torto. Exige algumas coisas que são importantes. Um exemplo é a recolha atempada de dados biométricos, que era uma questão que vinha de 2015 quando as pessoas estavam nos ‘hotspots’ na Grécia e em Itália e esperavam 2 anos para serem entrevistadas e recolherem os dados biométricos.

Ora, as pessoas não estavam em campos de concentração e, portanto, saíam. Ao sair, entravam na União Europeia. Isso criou uma sensação de insegurança. O Pacto, ao exigir e dar garantias de recolha de dados biométricos em tempo real, representa uma vantagem e os Estados vão ter de implementar. Aliás, um dos problemas que temos em Portugal neste momento é justamente saber se conseguimos atempadamente ter todos esses procedimentos em vigor.

Eu acho que o Pacto não vem torto, o Pacto é insuficiente.

Então, além de implementar o que já existe, é preciso uma abordagem em duas pistas em que o próprio Pacto tem de ser melhorado noutra via?

Claro, acho que é um processo em construção. É um ponto de partida.

Uma das questões mais polémicas tem a ver com a questão das crianças e a possibilidade de as crianças ficarem em centros de detenção após entrada ilegal na União Europeia, quando estão à espera do processo de asilo. Como é que vamos administrar isto na Europa?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que as crianças não são detidas, não há uma situação de detenção das crianças. Há obviamente ali uma questão complexa que tem a ver com a separação das crianças, das suas famílias. Mas essa separação ocorre para não colocar as crianças em ambiente de detenção.

É difícil, não tenho uma solução para isso. É difícil implementar isto, é difícil encontrar uma solução que seja simultaneamente satisfatória e humanitária. Por outro lado, parece-me que o Pacto procurou aí garantir os mínimos, que é evitar colocar as crianças num sistema de detenção.

Não têm razão aqueles que dizem que é nestes pontos que se jogam também os valores da Europa?

Acho que sim. Acho que aqui se jogam os valores da Europa, mas, sinceramente, não penso que seja nesse ponto que os principais valores da Europa estão postos em causa.

Onde é que estão então?

Considero mais grave - é isso resultava mais da ausência de um plano – terciarizarmos’ a nossa política migratória para outros países. Nós congratulamo-nos com a redução dos números de pessoas a chegar a Europa, quando elas estão em campos de refugiados na Turquia ou na Líbia e em outros países onde os seus direitos não são garantidos - apesar de tudo mais garantidos na Turquia do que na Líbia, mas com muito pouco controlo pela nossa parte - e achamos que tivemos sucesso na nossa política imigratória, porque em 2015 recebemos 1 milhão de pessoas e em 2017 recebemos 200 mil. Os números caíram a pique, porque as pessoas estavam retidas em países terceiros.

E agora há um acordo com a Tunísia também.

Exatamente e esse tipo de política parece-me altamente questionável. O mínimo dos mínimos era a Europa garantir as condições de vida e de cumprimento dos direitos humanos nesses locais.

Pagando a esses países?

Não, isso acho mal. Acho que devia fiscalizar as condições de vida e de cumprimento dos direitos humanos nesses locais.

Num país soberano?

Se não se não deixar, então a Europa tem de aceitar recebê-los. Aí é que não há compromisso nos valores. É que se quer colaborar com a Turquia, então garante que as condições nesses campos são iguais às que as pessoas teriam na Grécia ou em Itália. Se a Turquia não cooperar e não deixar, então essas pessoas têm de poder chegar à Europa. Aí não vejo compromisso possível. O Pacto tem uma série de compromissos difíceis, reconheço. Mas no cumprimento dos direitos humanos e na ‘terciarização’ cega dessas políticas, não vejo compromisso possível.

Vê suficiente solidez nas principais famílias políticas que aprovaram o Pacto para o ‘aguentar’, tendo em conta que o hemiciclo em Estrasburgo e Bruxelas poderá ser um pouco diferente a partir de julho?

É mais uma razão para nos congratularmos com este Pacto. Pelo menos este Pacto nós temos. Se o vamos conseguir melhorar ou não, reconheço que há uma incógnita e vai depender da composição do próximo Parlamento. Pode não ser possível melhorá-lo - eu gostava muito que fosse - tendo em conta a composição do Parlamento, mas pelo menos este já existe. Está aprovado, vai entrar em vigor e já não pode ser posto em causa, a não ser que haja um retrocesso enorme, mas que também não estou a ver que aconteça.

O facto de Itália ser um país central neste processo e de, apesar de tudo, estar numa posição um pouco diferente em relação a alguns outros países, independentemente da natureza do governo, é um ponto que agarra o Pacto à vida?

Num certo sentido, sim. A Itália tem oscilado muito nesta matéria. Relembro que Itália foi o primeiro país a ter uma política de salvação de pessoas no Mediterrâneo, o chamado ‘Mare Nostrum’. Foi o primeiro país a ir salvar vidas para o Mediterrâneo, quando a Europa dizia que isto não é um problema europeu.

Depois teve Silvio Berlusconi, depois teve Mario Draghi com uma política completamente diferente. Depois teve Salvini e agora tem Meloni, que procura equilibrar as coisas. Portanto, é um país que tem tido alguma oscilação. É evidentemente um país que está na primeira linha e nós temos de compreender isso.

A Itália está na primeira linha, tem recebido muitas pessoas, mas quero alertar que essa pressão migratória sobre a qual Itália esteve muito tempo, começa hoje a sentir-se em Espanha e vai sentir-se em Portugal, porque esses acordos com países terceiros têm levado a que as procuras de entradas têm vindo para a chamada Rota Oeste do Mediterrâneo.

Os números de hoje são completamente diferentes do que eram em 2015. Há muito mais entradas pela chamada Rota Ocidental e, portanto, o problema não vai estar só em Itália. É um país muito exposto, mas também vai ocorrer em Espanha e também eventualmente em Portugal.

Fala-se pouco sobre o alargamento nesta perspetiva. Também há uma mudança a prazo que atira o eixo da Europa um pouco mais para leste e para rotas que também são conhecidas, como, por exemplo, os Balcãs. Que impacto poderá ter o alargamento neste dossiê?

O alargamento é absolutamente indispensável para a sobrevivência da União Europeia e penso até que pode ter um efeito positivo nesse aspeto, porque há alguma pressão migratória que vem de países a Leste e que vai reduzir-se a partir do momento em que há o alargamento.

Esta visão do medo do alargamento pela pressão migratória não faz nenhum sentido. Em 86, quando Portugal aderiu à União Europeia, esse medo existia em França e na Alemanha, para onde os emigrantes portugueses iam. Nós já vivemos isso, já passámos por isso do outro lado. Portanto, devíamos estar em condições privilegiadas para perceber que essa não é uma questão a partir do momento em que nós trabalhamos a favor da redução das assimetrias, do desenvolvimento das economias e do desenvolvimento de um mercado único de circulação de pessoas.

O alargamento pode ajudar nesse aspeto. Mas esses países do alargamento que vão ter novas fronteiras externas da União Europeia têm evidentemente de ter um compromisso com a garantia da segurança das fronteiras externas da União Europeia.

Mas não tenho dúvida que nós hoje temos uma consciência em relação a essa realidade que vai imperar. Também tudo isto é feito de forma faseada. Os países podem entrar na União Europeia e não entrar imediatamente em Schengen e isso dar ali algum tempo para prepararem esse controlo fronteiriço. Portanto, vejo como muito positivo esse alargamento também da perspetiva da imigração.

Transitando para a questão social nesta perspetiva, a Fundação Francisco Manuel dos Santos, internacionalizando-se, está também preocupada com o debate europeu a todos os níveis. Existe, por exemplo, algum estudo, alguma verdadeira estimativa da necessidade de força migrante na Europa do ponto de vista estritamente económico?

Na Fundação fizemos um estudo sobre a evolução demográfica portuguesa há alguns anos e mostrámos que Portugal era, do ponto de vista demográfico, absolutamente insustentável sem imigrações - aliás, sem um número muito elevado de migrações. Nós fizemos várias projeções e num cenário sem imigrações, Portugal poderia reduzir a sua população em cerca de 20% e tornar totalmente insustentável o nosso Estado social. Com imigração moderada, íamos perder cerca de 10 a 15% da nossa população e continuávamos num cenário de insustentabilidade. Só com uma imigração acentuada é que temos hipótese de manter a sustentabilidade do nosso Estado social.

Essas projeções são muito claras e, aliás, são muito exigentes e coloca uma grande pressão sobre o nosso sistema migratório.

Quanto à questão da sustentabilidade da segurança social, também lançámos um estudo aqui há alguns anos, liderado pelo Amílcar Moreira e que mostrava que a sustentabilidade da nossa Segurança Social é totalmente impossível sem um cenário de migrações, também porque o envelhecimento da população associado à redução da natalidade, no rácio entre cidadãos ativos e cidadãos que vão passar a beneficiar do sistema de segurança social, pode chegar a 1,5 ativos por cada inativo.

O panorama europeu é muito diferente do português?

Não é muito diferente. Apesar de tudo, é melhor. Por exemplo, nesse estudo que fizemos sobre a sustentabilidade da segurança social, comparamos o nosso sistema com o sueco e chegámos à conclusão que o sistema sueco funcionava melhor e que respondia melhor, porque era um sistema que não apenas de distribuição e, apesar de tudo, há sistemas um pouco mais resilientes que o sistema português.

Portugal é um dos países com maior problema de envelhecimento a par da Itália e, portanto, quanto maior for o problema de envelhecimento, maior é o problema. Mas é evidente que este é um problema geral na Europa. A quebra da natalidade e o envelhecimento da população são um problema geral europeu, mas mais grave em Portugal, o que nos deve levar a preocupar-nos ainda mais.

E faz sentido que haja um aprofundamento das competências europeias em matéria social?

Acho que é muito importante. Acho que alguns passos foram dados. Temos, por exemplo, a Carta com os pilares sociais, alguns direitos sociais que estão na Carta dos Direitos Fundamentais.

Não é apenas retórico?

Admito que sim, mas é como se dissermos agora que a nossa Constituição portuguesa é retórica. É importante estarem nos textos fundamentais. É importante estar na Carta, haver os pilares sociais, uma crescente incorporação na Carta de Direitos Sociais. Isso tudo parece importante como ponto de partida. E depois é preciso executar isso tudo, com medidas concretas para executar isso tudo.

Não acho que seja pura retórica, porque senão então dispensávamos aquilo que fez a humanidade ser o que é hoje, que foram os textos proclamatórios.

Na saúde foi uma ação europeia concertada que ajudou a travar a pandemia. Na imigração estamos a debater um pacto europeu. A demografia é um problema europeu. Não faz falta aqui uma ‘caixa de ferramentas’ mais europeia para lidar com esta questão?

Estou de acordo com isso e penso que a Europa tem aprendido com isso. Quando começa a pandemia, a primeira resposta que a Europa dá é que não tem competências em matéria de saúde.

Quando começa a crise migratória, com os primeiros casos em Lampedusa, a primeira reação da Europa, era que a Europa não tem competências em matéria de imigração. E depois foi encontrá-las, descobri-las e construí-las.

Foi possível a compra conjunta de vacinas e foi isso que tirou o mais rapidamente possível a Europa da pandemia. Foi possível encontrar competências em matéria de imigração para chegar a alguns resultados também na questão do Pacto migratório. Portanto, mesmo quando elas não estão nos tratados, por vezes com alguma imaginação, é possível encontrar soluções para as crises. Acho que é justamente isso que a Europa tem de fazer neste momento.

Em relação à Ucrânia, justifica-se o prolongamento ‘sine die’ do estatuto de proteção temporária, porque a guerra está longe de estar terminada? Deve a Europa garantir de uma forma mais firme que esse estatuto existe e subsiste enquanto a guerra não estiver totalmente clarificada no seu destino?

Esse estatuto foi um grande sucesso para a Europa. E foi uma grande diferença em relação àquilo que nós vivemos em 2015. Tínhamos 1 milhão de pessoas.

Às portas da União Europeia sem conseguirem entrar e verem os seus pedidos apreciados. Isso gerou um enorme problema e depois uma enorme sensação de insegurança, porque as pessoas acabaram por entrar na União Europeia.

Não vivemos isso com a Ucrânia. Já integrámos hoje mais de 8 milhões de refugiados que vêm da Ucrânia de uma forma simples, porque foi ativado esse mecanismo, que, aliás, já existia desde 2001. Não foi uma invenção de agora e ao ativarmos esse mecanismo, conseguimos receber muitos milhões de pessoas num curto espaço de tempo e sem grandes problemas.

Portanto, parece-me claro que enquanto o conflito se mantiver nestas condições, temos de manter e ir prorrogando esse mecanismo. É pensado para períodos de 1 ano e renováveis e, portanto, vamos ter de manter esse mecanismo. Obviamente, as pessoas também podem pedir asilo, é um direito que lhes assiste. Esse mecanismo não impede o pedido de asilo, mas temos que manter o mecanismo.

Assim como temos de manter a solidariedade com a Ucrânia na frente de batalha, temos que manter a solidariedade com a Ucrânia na receção das pessoas. Aliás, no ano passado, o próprio Volodymyr Zelensky pediu aos seus parceiros europeus que mantivessem o apoio aos refugiados, porque a Ucrânia não tinha condições para os receber de volta pois a Ucrânia não tinha energia para garantir o aquecimento para a sua população.

É um esforço mínimo que a Europa também está a fazer, que é receber os ucranianos nos seus países, mantendo-os longe da guerra e com as condições básicas para a sua subsistência.

Por fim, uma pergunta específica para o jurista Gonçalo Matias. Toda a discussão sobre o Estado de Direito na União Europeia joga-se muito nestas matérias de imigração. É uma tendência evidente e que nos próximos anos vai intensificar-se? Como é que vê a ligação entre Estado de Direito e Imigração na Europa atual?

A questão do Estado de direito é uma questão muito séria na União Europeia. É

Identitária, não há União Europeia sem Estado de direito. É uma exigência que é feita a todos os países que entram. Há países que ainda não entraram porque há dúvidas sobre o seu cumprimento em relação ao Estado de direito. Portanto, isso parece-me uma questão absolutamente essencial.

É evidente que a imigração, porque tem a ver diretamente com direitos humanos, com respeito pela dignidade da pessoa humana, está intrinsecamente ligada à questão do Estado de direito. Se a União Europeia vacilar aí, se não houver respeito pelo Estado de Direito, se houver transigência europeia em relação ao Estado de Direito, é o próprio projeto europeu que está em risco.

Agora, o que é que se faz? Há vários mecanismos, alguns já foram ensaiados, nomeadamente a suspensão de acesso a fundos europeus até à suspensão.

E o que é que provaram esses mecanismos, na sua opinião?

Mostraram que a União Europeia e as suas instituições estavam a levar a sério esta realidade. Há imensas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia em relação a diversos Estados Membros sobre questões de Estado de Direito.

Não menosprezo nem as decisões políticas tomadas pelas instituições europeias, nem muito menos as decisões judiciais que são tomadas pelos tribunais europeus. Esse é o caminho. Depois, é preciso levá-lo à prática, evidentemente com ponderação e bom senso.

É mais importante levar os Estados a cumprir o Estado de Direito do que expulsá-los da União Europeia e deixá-los fora a não cumprir. Prefiro uma aproximação gradualista, procurar trazê-los para o Estado de direito a expulsá-los. Aliás, nem sequer temos propriamente mecanismos de expulsão e, portanto, acho que é preferível fazer esse caminho, mas eu acho que temos de ser absolutamente firmes e intransigentes na defesa do Estado de Direito, porque sem ele não há União Europeia.

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