Publicar ou Perecer: o Código de Conduta Ética em Crise

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Instituições credíveis têm a responsabilidade de garantir que a investigação se processe de acordo com os mais elevados padrões. Reconhecendo o problema, as principais universidades começam a valorizar ambientes de trabalho saudáveis e o impacto social do conhecimento.

O aforismo “Publicar ou Perecer”(o famoso “Publish or Perish”) sintetiza a ideia de que quem não publicar os resultados dos seus trabalhos de investigação científica em número suficiente não será reconhecido e não progredirá numa carreira académica; “perecerá” profissionalmente. A pressão é mais sentida nas universidades em que a actividade de investigação é essencial, atrai financiamento, prestígio internacional e posicionamento nos “rankings”. Mas, sim, há que publicar, pois é vital para o desenvolvimento da ciência e uma prova de vida para qualquer investigador.Os artigos científicos são o principal meio de comunicação de resultados e novas descobertas a partilhar com a comunidade científica em todo o mundo, expandindo as fronteiras do conhecimento. Deste modo, os autores demonstram o seu talento como académicos, as publicações inovadoras valorizam as suas instituições, e a capacidade de investigação dos seus professores garante um ensino universitário digno desse nome. Por tudo isto, as instituições baseiam-se no número de publicações e suas citações (associado à “influência” do investigador pois significa que outros leram os seus artigos, os citaram, e estes influenciaram os seus trabalhos) como critério para avaliar o mérito de docentes/investigadores e para novos recrutamentos.

A incansável publicação a todo custo conduziu ao aumento das publicações de baixa qualidade, sem novidade ou interesse. As revistas científicas são inundadas de artigos que não são lidos e deu-se a ascensão da “fábrica de artigos”, uma indústria de  muitos milhões que, de forma mais ou menos encapotada, garante e vende autorias e publicações. As práticas duvidosas e mesmo antiéticas de investigação têm vindo a crescer: i) a partição dos resultados da investigação por vários artigos em vez da publicação de um único, completo e robusto, ii) o plágio, iii) o autoplágio (publicação duplicada), iv) a fraude (fabricação ou falsificação na realização da investigação e/ou na publicação de resultados), v) autores “fantasmas”(que assinam a publicação sem terem tido um contributo científico que o justifique ou mesmo nenhum, em troca de favores). A revisão por pares é a primeira linha de defesa contra estas práticas, mas mesmo essa cuidada e generosa revisão já não resiste bem à enxurrada de submissões.

Este assunto é socialmente importante como revela o tratamento que tem tido na comunicação social, do The Guardian ao Finantial Times. O Guardian de 9/08/2023 publicou um artigo de opinião intitulado “Há muito mais fraudes científicas do que alguém quer admitir” por ocasião da renúncia ao cargo do Presidente da Stanford University após investigação que expôs falhas nos padrões de rigor no processo científico, logo seguida da acusação de uma académica da Harvard Business School por falsificação. É discutida ainda a publicação, durante duas décadas, de resultados, muito citados, mostrando que um substituto do sangue usado em hospitais de toda a Europa estava a salvar vidas quando este estava associado a um aumento significativo do risco de mortalidade. Este exemplo soma-se a vários outros escandalosos que mostram bem que as fraudes científicas não são questões de mero interesse académico. A maioria dos casos são denunciados por “vigilantes” amadores (exemplos no website da Retraction Watch https://retractionwatch.com/) que têm contribuído para o aumento acentuado do número de artigos retratados (por ser reconhecida a falsidade do publicado) nos últimos anos. De acordo com artigo daNature de 12/12/2023, este número ultrapassou, em 2023, 10.000, muito para além do crescimento do volume anual de artigos publicados, mas considerado a ponta do iceberg. A Nature da semana passada (11/06/2024) revela que investigadores de elite na China (um dos países no topo da retratações) confessaram não terem tido escolha senão envolverem-se em comportamentos antiéticos para proteger os seus empregos. Durante muito tempo, as revistas científicas tentaram proteger a sua reputação e a dos seus autores em vez de assumirem os erros e as fraudes e a “omertà académica” foi permitindo aos investigadores fraudulentos escaparem pelas malhas da rede. Hoje, começa-se a entender que uma atitude relaxada relativamente a más condutas acaba por conduzir a situações desastrosas, incluindo o impacto das retratações nas carreiras de coautores e a credibilidade das instituições. De notar, contudo, que há retratações por autores honestos que descobrem erros, não fraudulentos, nos seus trabalhos.

Aqui chegados, são necessárias medidas urgentes num sistema em que a contratação, promoção e premiação, e o negócio das revistas científicas (de todas), está construído com base no publicar ou perecer. É, pois, demasiado forte para que qualquer académico o possa alterar e a vigilância não devia ficar entregue a denunciantes e a radicalismos. Instituições credíveis têm a responsabilidade de garantir que a investigação se processe de acordo com os mais elevados padrões. Reconhecendo o problema, as principais universidades começam a valorizar ambientes de trabalho saudáveis e o impacto social do conhecimento. Com elas, a Universidade de Lisboa assinou o Acordo sobre a Reforma da Avaliação da Investigação (https://coara.eu/) e o seu regulamento dos prémios científicos foi alterado. São agora consideradas para premiação apenas dez publicações, selecionadas das dos últimos cinco anos, em vez de todas. São sinais para novos lemas: não publique por publicar, publique para fazer avançar a ciência; a honestidade intelectual é um princípio básico de ética para qualquer académico.

Professora Distinta do Instituto Superior Técnico e Emérita da ULisboa.

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