Portugal tem 1 085 472 de pessoas com alguma incapacidade ou deficiência. O impacto político e social vai além destes 10% da população. Vamos assumir que cada pessoa com deficiência impacta a vida de outras duas. Falamos então num universo de 3 256 416. Mais de 3 milhões de pessoas, 30% da população, um terço do eleitorado. A questão que se impõe é: que medidas são propostas pelos partidos com (provável) assento parlamentar nas eleições legislativas 2024 para as pessoas com deficiência?
Comecemos por quantificá-las: Iniciativa Liberal (IL) apresenta 0 propostas; Chega 5 medidas; Aliança Democrática (AD) 10; Coligação Democrática Unitária (CDU) 14; Partido dos Animais e Natureza (PAN) 16; Partido Socialista (PS) 19; Livre 25; Bloco de Esquerda (BE) 32.
A vida democrática e participativa é um conceito recente no dia-a-dia de muitas pessoas com deficiência, uma miragem para outras tantas. Precisamos manter-nos vigilantes, saber que o nosso voto e o daqueles que fazem parte da nossa vida importa. É preciso votar com consciência das propostas para estimular o desenvolvimento, a dignidade e a autodeterminação das pessoas com deficiência.
Não temos necessidades diferentes de qualquer outra comunidade – a deficiência é interseccional. Precisamos de soluções no emprego, educação, saúde e cultura. Também enfrentamos uma crise na habitação e no custo de vida. Aliás, a nossa vida é um permanente estado de crise. Crise e gestão de dívida, porque somos colocados na posição de devedores. Somos um custo e não um investimento (como escreve a socióloga Ana Catarina Correia).
Existimos politicamente porque foi criado o estado social. Temos 50 anos de democracia mas apenas 9 de representatividade parlamentar. Até 2015, as respostas que tive foram dadas pelo Serviço Nacional de Saúde – era através do hospital que se pensava a minha inclusão na sociedade. Era lá que obtinha produtos de apoio, como a minha cadeira de rodas.
Em 2015, comecei a trabalhar e a procurar soluções, junto do IEFP para a inclusão laboral. Pouco depois, surge a Prestação Social para a Inclusão (concedida mediante o nosso grau de incapacidade). Com 85% de incapacidade, o Estado permite-me ter a Prestação Social para a Inclusão independentemente dos meus rendimentos. Acreditem que para quem assume despesas médicas no valor de uma renda mensal, ter uma prestação social faz a diferença no orçamento.
Desde 2023 que sou destinatário do Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI). A filosofia de vida independente promove o emprego de assistentes pessoais para pessoas com deficiência, estimulando a sua autonomia em áreas tão vastas como higiene, alimentação, apoio doméstico, laboral ou cultural. No meu caso, não consigo fazer qualquer transferência sozinho - não me levanto da cama sem apoio. Até então eram os meus pais quem me assistia. Com a assistência pessoal, a minha vida metamorfoseia-se todos os dias. É a maior conquista da democracia para as pessoas com deficiência.
A descrição das medidas que integram a minha vida não é uma apologia de um futuro governo liderado pelo PS – é, apenas, uma exposição. Nenhuma destas políticas é perfeita, todas precisam de trabalho contínuo e o que funciona para mim fica aquém para milhares de pessoas. Proponho um exercício de análise sobre que panorama queremos ter nos próximos anos quando formos às urnas em Março.
Os orçamentos sempre foram escassos no que concerne às pessoas com deficiência; esperamos anos por um produto de apoio ou por entrar no MAVI. É preciso um choque económico, educacional e cultural. Não podemos continuar a ser sujeitos passivos economicamente. É certo que, em 2022, dois terços (62,3%) das pessoas com deficiência com mais de 16 anos enfrentavam risco de pobreza antes de transferências sociais (segundo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos): então como vamos combater este risco?
Precisamos de medidas económicas inteligentes, articuladas com as políticas criadas para a educação, o emprego e a segurança social. A economia é o elemento regulador da sociedade e enquanto encararmos as pessoas com deficiência como indivíduos submissos, unicamente dependentes de subsídios de combate à pobreza e medidas de apoio ao emprego que só beneficiam as empresas na sua contratação, não vamos empoderar a comunidade.
O emprego das pessoas com deficiência é um tema que contempla medidas nos programas da AD, PS, CDU, PAN, Livre e BE. Todos estimulam a aplicação e monitorização da lei n.º 4/2019 que fixa quotas de emprego em empresas com um mínimo 75 colaboradores.
A AD defende a criação de um “programa de treino de competências em contexto laboral”; um “plano nacional de transição escolar para o mercado de trabalho”; “incrementar vantagens fiscais às empresas que contratem pessoas com deficiência acima da quota” e “promover o acesso a empregos sustentáveis e de qualidade”.
É essencial que tudo isto aconteça sustentado em políticas de educação inclusiva: por isso, também defendem “que todos os alunos tenham acesso ao currículo e a materiais adaptados e progridem nas aprendizagens” bem como “assegurar que escolas públicas têm professores de ensino especial em número suficiente”.
O programa esgota-se depois numa proposta vaga que defende “uma lei de bases para a deficiência e inclusão que sistematize a principal regulamentação existente”. Sobre este tópico gostava que a AD nos esclarecesse sobre o conhecimento que tem do decreto-lei 163/2006 (que estabelece condições de acessibilidade ao espaço público) e a lei 46/2006 (que proíbe e pune a discriminação de pessoas com deficiência). São leis fundamentais que carecem, desesperadamente, de fiscalização e revisão, mas criam as bases dos direitos que temos hoje.
PS, CDU, PAN, Livre e BE - todos defendem medidas semelhantes à AD no emprego e na educação. Se esta realidade for trabalhada com estas forças políticas unidas teremos, certamente, uma realidade diferente daqui a quatro anos. Problema? Como é que se chega à escola ou ao mercado de trabalho quando o risco de pobreza está acima dos 60% e temos mais de 12 mil desempregados com deficiência (inscritos no IEFP)?
Precisamos de apoios sociais que sustentem estas medidas - mas essas propostas não são mencionadas pela AD ou pela IL (que, aliás, não refere uma única vez a deficiência no programa). É preciso combater os estágios precários, estimular melhores rendimentos para as pessoas com deficiência e o empreendedorismo.
O Chega quer “operacionalizar programas de vida independente” mas não desenvolve um plano. Quer “melhorar o regime de horário para famílias com crianças com deficiência”, um conjunto de medidas para combatentes de guerra, aumento de pensões e isenções de IRS - medidas inconsequentes. Ignora o emprego, o ensino inclusivo e a Prestação Social para a Inclusão (PSI).
O próximo governo precisa adereçar a PSI. Foi uma medida criada pelo PS com três fases de implementação e continua por completar. A componente base tem vindo a aumentar e faz a diferença na vida dos beneficiários - onde me incluo. Mas é preciso ter em conta que o valor máximo só é atribuído a partir dos 80% de incapacidade, quando existe uma franja enorme da população que se situa entre os 60% e os 80% - esses continuam a receber um valor residual.
Isto leva-nos ao problema dos Atestados Multiusos de Incapacidade e às avaliações médicas que conferem os graus de incapacidade, problema central a ser enfrentado pela literacia da comunidade médica e de profissionais do sector social sobre a diversidade de pessoas com deficiência. Com mais ou menos pormenor, esta temática encontra-se nos programas do PS, CDU, Livre e BE.
Olhemos para o Modelo Apoio à Vida Independente. Num país com 10% da população com alguma incapacidade, existem pouco mais de 1000 destinatários. A portaria que fixou o modelo, publicada no fim de 2023, vai alargar os destinatários e isso representa progresso. Ausente nos programas da AD, IL e PAN. O Chega é vago no que defende.
O PS quer “aprofundar o MAVI, reforçando mais Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI), maior cobertura de pessoas e aumentar o número de horas de apoio”; CDU e Livre têm propostas semelhantes; já o BE defende a “criação de uma prestação social universal para a autogestão da Vida Independente (...) cumprindo princípios básicos como o pagamento direto aos destinatários” bem como a “criação e regulamentação da profissão de Assistente Pessoal”.
Alargar o projecto é urgente, tal como regular a profissão. O meu assistente pessoal faz parte da minha intimidade, leva-me à casa de banho, ajuda-me a tomar banho, preparar a comida, acompanha-me no espaço público e tem isenção horária - o que significa que trabalha aos fins-de-semana e durante a noite. O horário é gerido por mim e muda semanalmente. Tenho apoio da equipa técnica e um assistente incansável que respeita o meu espaço. Mas não ganha um ordenado que corresponda ao esforço que faz. É uma profissão precária, com pouca protecção social, que não vai melhorar com uma bolsa de autogestão, e é fundamental rever as condições dadas a quem trabalha pela nossa liberdade.
É preciso adereçar esta medida com seriedade. A assistência pessoal permite-me desempenhar o meu trabalho diariamente. Sou sócio de uma empresa com cinco colaboradores, onde ninguém ganha o ordenado mínimo, que paga impostos mensais muito acima daquilo que o Estado aloca para o ordenado do meu assistente pessoal.
As propostas dos vários partidos ora recaem no trabalho, que é precário, com altas taxas de desemprego e abandono escolar, ora no estado social, sem uma estratégia sustentada para promover a autonomia financeira das pessoas com deficiência. Este paradigma tem de ser mudado e não vejo nenhum partido político a esforçar-se. Vejo o BE defender o “alargamento para 100% do financiamento em regime de crédito bonificado à habitação e criação de um contingente para pessoas com deficiência na oferta pública de habitação a custos controlados”.
Se queremos que as pessoas trabalhem, tenham uma vida independente e as mesmas condições de vida que outros contribuintes, precisamos de criar um ambiente sócio-económico favorável. Esse sistema tem de ser inteligente e pensado agora.
Nada disto deve ser feito sem a cultura e um imaginário de representatividade. Existem poucas medidas.O Livre defende a gratuidade de bilhetes para acompanhantes de pessoas com deficiência (depois de o último Orçamento de Estado ter contemplado a isenção de IVA nesse bilhete) - uma medida essencial na promoção da participação e redução da exclusão. Tanto o BE como o Livre sugerem mais conteúdos com Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição (com ambiguidade) e o PS propõe “uma quota fixa de livros em braille, livro digital e áudio-livro”. Fundamental para a literacia de pessoas com deficiência visual.
Apesar dos dados que o Observatório da Deficiência e Direitos Humanos recolhe anualmente sobre a população com deficiência e dos censos nos terem indicado mais de 1 milhão de pessoas com incapacidade, a verdade é que pouco sabemos sobre pessoas com deficiência. O maior paradoxo encontra-se no facto de entre 2011 e 2021 termos passado de 17% para 10% da população com incapacidade nos Censos. É tão contraditório que a Secretaria de Estado para a Inclusão chegou a mencionar a realização de um estudo alargado sobre a deficiência. Mas, entretanto, essa medida não se encontra no programa do PS, apenas é referida nos programas do Livre e BE.
Trabalhamos, maioritariamente, às escuras pela comunidade. O estudo deve ser uma prioridade de qualquer governo. É preciso mobilizar fundos e a academia. Como se criam políticas públicas sem dados concretos e qualitativos sobre os cidadãos? Este movimento vai representar uma quebra da passividade política e económica da comunidade.
Chego ao fim desta análise com poucas certezas, sem um caminho traçado - esse é um processo que devemos fazer individualmente, votando com consciência. Existe pouca coerência; arrisco, até, dizer que, por vezes, isto parece ter alguma aleatoriedade, escrevem-se medidas utópicas ou então desinformadas, tanto à direita como à esquerda. O panorama está a mudar, tenho esperança, mas continuamos a apanhar cacos de décadas em que a deficiência na política foi um vazio de convicções humanas.
Concluo com um desafio: deixarmos de ver as pessoas com deficiência como sujeitos passivos e devedores. Não devemos nada a ninguém. Em 2024, é possível constatar que somos contribuintes, eleitores e trabalhadores. A nossa força política é, pelo menos, de 30% do eleitorado. Somos comunidade, convosco, e somos credores no sistema social em que vivemos. É-nos devida a dignidade, liberdade e autodeterminação.