"Não há nada que possa ser mais transformador do que a nossa verdade"

1 semana atrás 32

Dez anos depois do seu disco de estreia, a cantora e compositora Joana Espadinha lançou o seu novo disco 'Vergonha na Cara', numa fase da vida em que considera sentir-se "muito encontrada".

Com uma visita à adolescência, Joana revela a timidez que sentia naquela fase da vida e resolve-se com "os fantasmas do passado". Para a cantautora, "os discos são sempre terapêuticos porque vão resolvendo estas questões interiores".

Neste que é o seu quarto álbum de originais, a conhecida artista pop "alarga o espectro" ao incluir baladas e canções mais melancólicas, porque "só canções felizes" não estariam de acordo com a sua "verdade".

Joana aproveitou ainda, em entrevista ao Notícias ao Minuto, para expor um tema que a "preocupa", alertando que a "'fome' de validação" que existe em torno do uso excessivo das redes sociais "cria monstros".

Sobre a hipótese de voltar às origens em breve, Joana deixa poucas dúvidas no ar, esclarecendo que o jazz "não faz muito sentido" no trabalho que agora desenvolve. Mas, para o futuro, deixa essa hipótese em aberto.

Neste novo álbum ‘Vergonha na Cara’ a Joana viaja para dentro de si própria, à adolescente que foi e à adulta mais madura que é. Por que razão sentiu necessidade de explorar isto e compô-lo?

Na verdade não foi um processo muito consciente. Começo a escrever as canções e depois começo a perceber que há um fio condutor. Acho que o regresso à adolescência é significativo porque é uma fase que é depois definidora da nossa personalidade. Há muitas coisas que depois nos acompanham ao longo da vida, muitas memórias.

Somos muito nostálgicos em relação à adolescência mas também em relação às coisas ou que não correram tão bem ou que gostávamos que tivessem sido diferentes. Ou características que, no meu caso, eram alguma timidez ou alguma vergonha em me expressar que, mais tarde - décadas depois - ainda sinto necessidade de abordar e de resolver em mim.

Por isso é que acho que a adolescência é um tema que acabou por vir ao de cima em algumas destas canções que eu escrevi - e que dariam depois um bom mote para o título do álbum.

Todos os seus discos foram muito diferentes, embora do segundo ['O Material Tem Sempre Razão', de 2018] para o terceiro ['Ninguém Nos Vai Tirar O Sol', de 2021] tenha havido uma lógica de continuidade. O que a fez recomeçar, por assim dizer?

Para já, há uma questão prática. Esses dois discos marcaram a parceria com o Benjamim enquanto produtor. Agora, o novo disco, teve outros produtores. Há uma música produzia por Ben Monteiro - que foi a primeira a ser gravada - e depois o resto do disco foi produzido por António Vasconcelos Dias.

Isso logo marca uma diferença, apesar de haver muitas coisas em comum porque o Benjamim e o António trabalham juntos e temos aqui algum universo estético em comum. Isso é logo uma razão de ordem prática.

Depois, houve uma fase em que estive mais parada, estive com muitas dúvidas artísticas de que caminho seguir e acho que esse tempo, para mim, foi essencial para tomar as rédeas de novo à artista e compositora que sou e recuperar algumas coisas que tinha perdido no caminho.

Tenho sido fascinada pela busca da canção pop no seu equilíbrio - que perfeito nunca é - do que é doce, do que é amargo, mas que cria no ouvinte uma energia mais contagiante e mais positiva.

Mas também tinha algumas saudades de abordar temas mais melancólicos, mais sombrios - isso também faz parte de mim - e em que a voz pudesse ter mais espaço para me expressar. Com mais baladas, um registo mais acústico.

Quis que este disco condensasse estas duas atmosferas. E, portanto, tenho claramente um lado A e um lado B e o álbum é um resumo bom da artista e compositora que eu sou.

Os meus discos são sempre terapêuticos para mim porque vão resolvendo estas questões interiores

Disse já, anteriormente, que este disco “foi mesmo do início ao fim aquilo que desejava”. Foi por isso que trabalhou com os novos produtores, António Vasconcelos Dias e Ben Monteiro?

O Benjamin fez uma pausa no trabalho de produtor, por isso é que também não me seria possível - mesmo que quisesse - continuar a trabalhar com ele como produtor. Mas acho que também já era hora de procurar novas influências e novos parceiros para trabalhar.

“Foi mesmo do início ao fim aquilo que desejava” porque tive espaço para ter as músicas mais felizes, para as músicas mais introspetivas e, às vezes, até melancólicas. Era uma coisa que eu queria fazer há muito tempo.

Depois porque, enquanto adolescente, ouvi muita música norte-americana - gosto muito de folk, de rock - e queria encontrar a minha forma, na língua portuguesa, de trazer essas influências dos meus gostos musicais. E acho que consegui pôr isso em prática.

Além disso, queria tomar as rédeas do processo, e trabalhar com o António permitiu-me realmente ter esse espaço. Sempre tive a sorte de trabalhar com pessoas que me deram espaço criativo, mas agora, neste momento, também sei mais o que quero. E isto também ajuda muito.

Tive muito espaço para experimentar, para escolher os instrumentos, para fazer arranjos. Por exemplo, o tema 'Bala Perdida' tem um arranjo de cordas que queria fazer e acabei por fazer a quatro mãos. Acabei por fazer com o Filipe Melo, que é um músico, artista e cineasta incrível.

Também foi um álbum muito meu por causa dos assuntos que falo no álbum, que me preocupam muito. A nova era digital e as implicações que tem para a saúde mental das pessoas - sobretudo nos adolescentes - a questão das aparências, deste paradoxo em que parece que estamos todos mais ligados mas também estamos mais distantes porque nem tudo o que vemos nas redes sociais é verdade. Era um tema que também queria muito falar e falo na 'Álibi'.

E, acima de tudo, porque também falei sobre este meu 'grito do ipiranga', em que assumi quem sou e quem quero ser, sem 'vergonha na cara', que também tem a ver com o universo feminino e os constrangimentos que nós mulheres temos.

Às vezes ainda há uma pulga atrás da orelha a limitar-nos os movimentos e os pensamentos, mesmo quando achamos que está tudo a nosso favor, como uma dúvida autoinflingida constante ao não acreditarmos no nosso valor.

Os meus discos são sempre terapêuticos para mim porque vão resolvendo estas questões interiores.

Acho que não há nada que possa ser mais transformador do que a nossa verdade

Músicas como 'Vergonha na Cara' ou 'Vestir a Camisola' têm versos fortes e mostram uma Joana a afirmar-se, a assumir o que sente e pensa. Considera que estas letras a libertaram de uma Joana que não se mostrava por completo, na sua plenitude? Que se quis resolver com os fantasmas do passado?

Sem dúvida. Isto é a minha forma de resolver os fantasmas do passado. Obviamente que a nossa personalidade é a nossa personalidade. Vou ter sempre um bocadinho de timidez, vou ter sempre coisas para resolver - isto não pretende resolver a minha personalidade - mas acho que não há nada que possa ser mais transformador do que a nossa verdade, o que é verdadeiro e genuíno. 

Isto é a minha verdade, é a minha luta, são os meus conflitos, e também aquilo que me apaixona. Os meus discos são sempre autobiográficos. Mesmo quando não quero que sejam, acabam sempre por ser.

'Alibi' ou até 'Será o que Será' são canções que falam do desconforto que sente em relação à plasticidade que existe nas redes sociais e nos meios digitais. Porque sentiu necessidade de expor a sua opinião em relação a este assunto? 

Porque eu própria me sinto muito incongruente, com pensamentos muito divididos sobre a necessidade - que é normal - de comunicar através das redes sociais, tanto a título pessoal como a título profissional, para as pessoas conhecerem aquilo que eu faço, o meu trabalho.

É impossível não ter presença nas redes. Mas depois sinto sempre que devia publicar mais, mas que não quero publicar mais porque preservo a minha vida privada e não quero que esteja nada cá fora que não seja algo que realmente eu defenda ou que acredite. É muito fácil sermos levados por esta necessidade de alimentar o algoritmo. 

Acho que daqui a uns anos vamos olhar para isto de uma forma diferente. Sou muito cautelosa com aquilo que publico. No entanto, se tivesse uma presença mais ativa nas redes sociais, seria benéfico para a minha carreira, portanto fico sempre um bocado dividida.

Não estou a diabolizar as redes sociais mas acho que, cada vez mais, temos de pensar sobre isto porque as implicações para a saúde mental são enormes e basta pensar que todos nós gostamos de agradar, todos nós gostamos que gostem de nós. As redes sociais capitalizam essa 'fome' de validação - como digo na letra - e isso cria monstros.

Para um adolescente estar a ver que só tem dois 'likes' numa foto e um comentário negativo são novas formas de bullying que eu não tinha quando era adolescente e, ao mesmo tempo, publicar uma coisa e estar à espera da validação dos outros é tudo aquilo de que nos queremos libertar.

Isto é, de facto, muito perigoso. Achei que era importante falar.

No entanto, estes meios são essenciais para divulgar o trabalho de artistas como a Joana. Como aprendeu a lidar com isto e que impacto tem na sua vida?

Acho que toda a gente acaba por ter de tomar algum tipo de posição sobre o assunto e essa posição tem consequências. Quando eu escolho estar ausente das redes sociais, se calhar a minha qualidade de vida melhora, mas as pessoas vão ouvir menos a minha música porque eu os direcionei menos para a minha música com esta presença.

Tem consequências. Hoje em dia não é mesmo possível estar a divulgar um trabalho sem recorrer a estes meios, mas acho que cada pessoa tem de encontrar a forma que faz mais sentido para si e encontrar esse equilíbrio, que é pessoal e intransmissível.

No meu caso cria-me conflitos. Tento ser presente mas tento só partilhar aquilo em que acredito realmente e aquilo que tem a ver com o meu trabalho. Se as pessoas quiserem saber quem sou, a melhor forma é ouvirem as minhas canções e aquilo que escrevo porque quem eu sou está lá.

Ter só canções felizes não estaria de acordo com a minha verdade

No álbum, Joana navega pela pop a que já tinha vindo a habituar o público, mas também passa pelo indie rock, e releva também um lado mais introspectivo com músicas mais melancólicas de baladas. Considera que foi uma forma de se ir distanciando aos poucos - ainda que sem cortar por completo - da pop e de explorar as suas potencialidades vocais?

Sim, sem dúvida. A primeira canção, a 'Será o que Será' permitiu-me logo explorar. Uma das coisas mais incríveis de trabalhar com o Ben Monteiro foi que ele puxou muito por mim e acreditou sempre que eu conseguia ir mais longe vocalmente.

Às vezes a cantautora tende a esquecer a cantora porque também há muitas canções que não precisam de uma Celine Dion a mostrar o que consegue fazer - que pode ser prejudicial para a mensagem. Em algumas canções minhas pop, acho que me limitei vocalmente, simplifiquei aquilo que estava a fazer vocalmente para servir a canção - porque acho que quem deve ser a rainha e senhora é a canção. 

No entanto, por vezes tenho pena disso e, de facto, as baladas permitem-me ganhar esse espaço.

A pop acaba por me encaixar bem porque é muito abrangente. A música pop pode ser muita coisa. Mas os rótulos incomodam-me porque são limitadores. Até porque alguém que vá ouvir uma canção minha pode dizer 'ah, isto não é pop' ou 'ah, isto é indie rock', ou 'isto é folk' ou 'isto é jazz', portanto acho que as etiquetas, no fundo, acabam por ajudar as pessoas a procurar os estilos de música de que mais gostam mas que podem ser limitadores.

Não é uma coisa consciente distanciar-me da pop porque acho que vou ter sempre canções pop, nem que seja a escrever para outros - e este disco tem canções pop - acho é que quis alargar o espectro porque ter só canções felizes não estaria de acordo com a minha verdade.

O que tento fazer é perceber e procurar dentro de mim as canções que eu ainda não fiz

Revelou também anteriormente, em entrevista, que um amigo lhe disse que "artista que é artista desilude os seus fãs". Porquê? Acha que é importante uma artista desdobrar-se noutros géneros?

No fundo, tem a ver com sairmos da nossa zona de conforto e não querermos estar sempre a repetir a mesma fórmula. Por exemplo, eu fiz uma canção, o 'Leva-me a dançar' - que foi um género de cartão de visita - e a maior parte do meu público conheceu-me através dessa canção. É uma canção que eu adoro. Por mais que tente repetir essa canção, é irrepetível, e isso vai tornar o processo de escrita das canções mais artificial.

Mas o que tento fazer é perceber e procurar dentro de mim as canções que eu ainda não fiz - sejam elas quais forem - e acho que isso vai desiludir os fãs. Ou não. Acho que as pessoas são todas diferentes e as canções apelam a cada um de forma diferente. Isso é uma das maiores riquezas em música - quando as canções deixam de ser nossas e passam a ser de quem 'as agarrou', como diz a canção dos Clã. Isso é mesmo maravilhoso.

O seu percurso pela música começou no jazz. Quão importante foi essa influência para o percurso discográfico que teve depois?

Foi muito muito importante. Eu ainda estou ligada ao jazz, ainda dou aulas de jazz no Hot Clube. Aquilo que para mim foi mais importante, foi o processo de aprender harmonia, ter de aprender a improvisar - e a improvisação é compor em tempo real. 

Isto deu-me alguma flexibilidade e deu-me muitas ferramentas para poder compor. Hoje em dia, há muita gente que me pergunta 'mas tu só escreves as letras?' e eu 'não, escrevo a letra e escrevo a música' e, para mim, facilitou muito esse conhecimento harmónico.

Componho de várias formas mas, uma delas, às vezes, é única e exclusivamente a imaginar. A ouvir uma melodia na minha cabeça e a cantá-la. Depois percebo qual é a harmonia que está implícita nessa melodia e vou procurá-la ao piano, etc.

Mas só sou capaz de o fazer porque ganhei essa ferramenta e o jazz foi uma escola fantástica.

Voltaria a compor um álbum só de música jazz? 

Eu nunca digo nunca porque gosto muito de jazz e tenho alguns temas jazz que revisito volta e meia.

Mas as canções que  escrevo, por norma, não precisam de grandes solos, não precisam de um cuidado na produção e no arranjo que, no caso do jazz, é sempre mais cru.

Portanto, para a música que estou a fazer agora, não faz muito sentido. Mas no futuro quem sabe mate as saudades.

Após 10 anos a mostrar ao mundo o seu trabalho, considera que a verdadeira Joana está a ser apresentada agora?

Acho que é sempre a verdadeira Joana. Acho que nunca consegui apresentar nada que não fosse a verdadeira Joana. Acho é que estou numa fase da minha vida em que me sinto muito encontrada e muito feliz no lugar em que estou. Isso faz com que talvez seja um álbum realmente revelador da pessoa que sou.

Mas isso está sempre a mudar. Se calhar, nos outros álbuns eu também achava a mesma coisa e, com o próximo, também vou sentir. E espero que sim, porque é suposto estarmos sempre a evoluir.

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