Renovar o contrato social para uma maior coesão e melhor democracia

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“Aproveitar os talentos de todos não é apenas uma questão de justiça; também é bom para a economia”, Minouche Shafik, ‘O que devemos a nós próprios – um novo contrato social’

As últimas décadas têm trazido enormes transformações demográficas, societárias e económicas no continente europeu. E as consequências destas transformações têm-se feito sentir de forma audível ao nível da qualidade de vida e aspirações das populações europeias, e criado danos significativos no que diz respeito à degradação da coesão social, ou no aumento dos diversos tipos de desigualdades.

A quebra dos laços entre decisores de políticas públicas e cidadãos europeus tem sido evidente no crescimento político do euroceticismo e do aumento da popularidade das posições anti globalistas a nível europeu. Acresce que, nos próximos anos, vários fatores poderão acentuar clivagens e divergências entre cidadãos – a inovação digital e a automação deverão criar melhores condições para as empresas, e para a sociedade em geral, mas também irão criar tensões e desequilíbrios no mercado de emprego no curto prazo que podem aumentar a desigualdade e, consequentemente, a insatisfação com o modelo geopolítico europeu.

Estes sinais são evidentes e não podem ser ignorados, sobretudo por países onde a resiliência financeira, económica e de competitividade comercial é mais frágil, como é, por exemplo, o caso português.

A nova dinâmica da demografia é uma das principais razões por detrás da erosão da perceção positiva do modelo social europeu

Uma das principais razões está relacionada com o inverno demográfico que se vive atualmente nos principais países desenvolvidos, e que na União Europeia não é exceção.  De acordo com os números da Organização Mundial de Saúde para a região europeia, a população com 60 anos ou mais está a crescer rapidamente, e deverá atingir, em 2030, os 247 milhões de pessoas (15% acima dos cerca de 215 milhões registados em 2021), sendo que, em 2050, deverá superar os 300 milhões de pessoas.

Em Portugal, de acordo com os últimos censos, a população sénior atinge já os 23,4% da população total do país, número que, em 2050, poderá representar 40%. Ou seja, esta profunda mudança demográfica terá inevitável impacto nos cuidados de saúde, no planeamento urbano e habitação, ou nas soluções de mobilidade, exigindo respostas adaptadas aos idosos para permitir que pessoas de todas as idades tenham uma vida saudável e plena.

Sobretudo, estas transformações colocam pressão estrutural financeira sobre o modelo tradicional europeu, onde o papel social do Estado é vincadamente interventivo, colocando em causa a sustentabilidade operacional – como já é visível – dos serviços públicos (saúde, cuidados e bem-estar, entre outros), assim como coloca mais carga fiscal sobre a população ativa que está, cada vez mais, a diminuir.

Tensões relacionadas com problemas de desigualdade alimentam o descontentamento e fragilizam a coesão social

O mundo posterior à pandemia trouxe ao de cima e agravou uma série de feridas que tardam em cicatrizar. Por exemplo, no que diz respeito ao diferencial dos salários entre homens e mulheres – apesar da estratégia da União Europeia neste campo, que pretende avanços significativos até 2025, no sentido de uma Europa que garanta condições de equidade, no âmbito das quais existe a necessidade de incluir medidas vinculativas em matéria de transparência salarial, que permitam uma acentuada redução do diferencial de salários entre homens e mulheres.

Também se está a abrir uma potencial fricção entre gerações – as gerações jovens enfrentam maiores incertezas quanto ao seu futuro, devido a mudanças estruturais no sistema produtivo e a carreiras profissionais mais instáveis. Em Portugal, mais de 850 mil jovens que têm hoje entre 15 e 39 anos deixaram o país e residem atualmente no exterior, isto de acordo com o Observatório da Emigração. Já as gerações seguintes debatem-se com a menor qualidade das condições dos empregos e das condições de trabalho, além de as disparidades salariais estarem a aumentar, mesmo nos países mais ricos da União Europeia.

Por último, mas não menos importante, também as comunidades de imigrantes – importantes para contrariar o envelhecimento da população – enfrentam cada vez mais dificuldades para serem aceites nos mais diversos sectores da sociedade, e poderem ser devidamente integradas na sociedade, evitando assim situações de exclusão ou de queda em situações de pobreza extrema ou redes de exploração de tráfico humano.

As falhas do modelo global tradicional existem e precisam de ser colmatadas

Há uma série de catalisadores que, ao longo dos anos, têm sido apontados como fragilidades e para as quais as instituições não têm apresentado soluções eficazes. À cabeça, as consequências não intencionais da globalização, com impacto no que diz respeito, por exemplo, à deslocalização da indústria, à acelerada disrupção tecnológica e respetivo impacto da transição digital. Estes são apenas alguns dos exemplos mais visíveis que têm afetado rendimentos e aspirações de vida e mexido com o sentimento das populações, sobretudo com os sectores sociais mais fragilizados da sociedade europeia.

O que parece evidente é que o modelo de resposta tradicional europeu se encontra obsoleto. O contrato social europeu, ao abrigo do qual o conceito de Estado Providência foi construído no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, precisa de ser revisto tendo em conta as transformações das últimas décadas, abraçando o novo ecossistema que enquadra os valores e novos princípios da economia, das populações e restantes atores da sociedade, assim como os principais anseios e desafios das próximas décadas.

A verdade é que a integração europeia atual não se encontra devidamente organizada nem parece ser capaz de contrariar as tendências de erosão social provocadas pelas transformações e desafios globais demográficos, geopolíticos e tecnológicos. As ferramentas existentes não são suficientemente relevantes para produzir efeitos significativos a nível europeu. Acresce que a maioria dos instrumentos de política social está sob a responsabilidade dos Estados-membros, cuja capacidade depende em muito da economia de cada país.

Para além disso, a política de coesão ao nível da União Europeia também não está preparada, um pouco à imagem do que aconteceu com a crise das dívidas soberanas, para corrigir as fraquezas relativas de alguns Estados-membros, onde a condição periférica acentua uma situação de divergência, criando uma espécie de beco do qual não consegue sair por si própria.

‘Bottoms’ up’: agir agora para criar mais coesão e melhorar a democracia

As crescentes tensões sociais e desafios que se colocam atualmente à Europa não podem continuar a ser ignorados. O regresso dos conflitos militares no continente europeu, a persistência das assimetrias económicas entre países da periferia e centro europeu em contexto de inflação, assim como a manutenção de situações de desigualdade, estão a condicionar cada vez mais o planeado percurso de crescimento sustentável e inclusivo, e a alimentar o descontentamento das populações, visível no acentuado crescimento da polarização política, assim como dos movimentos populistas eurocéticos radicais, que encontram na falta de capacidade das instituições nacionais, para melhorarem os níveis de bem-estar das populações, oportunidades para captar o apoio dos cidadãos.

É, por isso, urgente agir para criar uma proposta de renovação do contrato social europeu, que devolva a esperança nas instituições e providencie respostas para os anseios e ambições de bem-estar dos indivíduos, idealmente compatível com um mundo mais digitalizado e comprometido com os desafios globais da nossa era, como a descarbonização e combate às alterações climáticas.

Esse contrato social não poderá estar divorciado de uma estratégia e reposicionamento da Europa relativamente à crise demográfica e ao crescimento e competitividade das economias num contexto de maior protecionismo, devendo antes criar condições estruturais de integração que permitam maior eficiência de resposta por parte dos governos locais, complementando as mesmas com soluções concretas em prol da coesão europeia.

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