Requiem pela Vida Privada do Ofendido

1 semana atrás 32

A regra de que o processo penal é público visou promover a transparência e o escrutínio da investigação e dos casos, bem como responder às duras e recorrentes críticas (não sem razão) de que o suspeito e o arguido não tinham acesso adequado aos autos antes da acusação.

Este princípio da publicidade do processo penal não é absoluto. Para além da possibilidade de determinação do inquérito a segredo de justiça, estão previstas restrições à publicidade, nomeadamente a restrição da livre assistência do público em geral a atos processuais quando assim for determinado pelo juiz e, em regra, quando estejam em causa crimes de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Além disso, o artigo 86.º n.º 7 do Código de Processo Penal determina que a publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova, os quais ficam sujeitos ao regime do segredo de justiça.

Coloca-se, então, a questão de saber como tratar, em termos de publicidade e acesso ao processo, as situações das vítimas de crimes contra a reserva da vida privada como sejam a violação de correspondência, a violação de segredo ou o acesso ilegítimo com tomada de conhecimento de segredo comercial, industrial ou outro protegido por lei.

Ilustrando.

Uma empresa que foi objeto de um acesso ilegítimo a dados que incorporam segredos de negócio, participa criminalmente às autoridades os factos de que foi vítima para que sejam investigados e apurado o autor do crime. Sendo o Ministério Público bem sucedido na descoberta do autor dos factos criminosos, e concluindo pela existência de indícios suficientes da prática ilícita pelo agente, será deduzida acusação que, obrigatoriamente, deverá conter uma descrição circunstanciada dos factos, alguns dos quais respeitantes à descrição dos segredos que foram acedidos sem autorização do titular, segredos que a vítima, certamente, não pretende que o público em geral conheça pois que são, precisamente, do domínio da reserva da sua vida privada e foi por terem sido acedidos sem a sua autorização que recorreu aos meios jurisdicionais para obter proteção.

O mesmo caminho será percorrido no caso da violação de correspondência: uma acusação por este tipo de crime, tendencialmente, incluirá a descrição dos factos que permitem caracterizar o comportamento de violação da correspondência (a abertura de uma carta fechada, por exemplo) e a identificação dos elementos que sejam correspondência de determinado tipo (i.e., a leitura da dita carta que estava fechada e não era pública).

Ora, voltando ao enquadramento introdutório, se a publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova, então, constituindo os dados relativos à reserva da vida privada meios de prova – como seria o caso daqueles dois exemplos – seria possível uma leitura no sentido de que tais dados seriam públicos, o que implicaria que o público em geral teria acesso ao segredo de negócio da empresa cujo sistema informático foi acedido ilegitimamente e às cartas abertas pelo agente do crime?

Uma tal solução, apesar de ter sido, de forma mais ou menos intensa, adotada nalguns casos, não nos parece ser a mais adequada do ponto de vista do Estado de Direito e do sistema constitucional que o conforma. Com efeito, se os ofendidos nos crimes contra a reserva da vida privada procuram a justiça para que os agentes sejam punidos, mas a sua vida privada ficar exposta por via de uma determinada interpretação das regras de publicidade do processo, estará a punir-se a vítima que procurou a ajuda das autoridades.

O direito constituído, em particular os artigos 86.º n.º 7 e 87.º a 90.º do Código de Processo Penal, permitem, a nosso ver, manter a salvo os dados acedidos de forma ilegítima se aplicados numa justa composição entre os direitos constitucionais à reserva da vida privada e ao acesso aos tribunais e a necessidade de transparência que a justiça penal reclama, nomeadamente, através da restrição de acesso ao conteúdo do que foi acedido ilegitimamente e através da restrição de assistência a atos processuais em que tal conteúdo seja objeto de prova ou simplesmente de referência.

Justificar-se-á, em todo o caso, revisitar os termos do artigo 86.º n.º 7 do Código de Processo Penal de modo que não deixe margem para interpretações que possam limitar o índice de proteção que merece a privacidade de uma vítima (pessoa singular ou empresa) de crimes cujo bem jurídico protegido seja, precisamente, a reserva da vida privada.

Este artigo é da autoria da VdA.

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