Ricardo Soares na Ásia: «Disseram-me 'Estás a pôr em causa a tua permanência na China...'»

7 meses atrás 64

Depois de 17 anos a treinar em Portugal, Ricardo Soares decidiu aventurar-se no estrangeiro e, no espaço de um ano, trabalhou no Egito e na China, país onde está atualmente. O técnico, de 49 anos, esteve no Algarve a fazer um estágio de pré-época e, antes de regressar a território asiático, passou pela redação do zerozero para uma longa entrevista. O futebol foi, de forma natural, o ponto de partida da conversa, mas houve ainda tempo para se falar de família e de Portugal, país que o treinador leva sempre no coração.

Na primeira parte da entrevista, Ricardo Soares explicou-nos como se processou a mudança para a China, em junho do ano passado, bem como as adaptações que teve de fazer a uma cultura totalmente diferente. Os objetivos são ambiciosos no que à temporada de 2024 do Beijing Guoan diz respeito.

Nota: a segunda parte da entrevista será publicada ainda esta sexta-feira.

Zerozero: Olhando para o facto de ter passado os últimos meses bastante longe de Portugal, quão importante foi ter tido a oportunidade de estar cá nestas últimas semanas? É certo que foi no Algarve- não tão perto de Felgueiras como gostava, certamente-, mas deu para aproveitar nesta vertente mais pessoal? Com a família até...

Ricardo Soares: Antes de mais, quero cumprimentar os nossos ouvintes/leitores e mandar um abraço para todos. Não deu muito para estar com a família porque estamos em trabalho, na pré-época trabalhamos sempre mais porque há sempre coisas a fazer. No entanto, estando no meu país, com umas condições fantásticas como as que encontrámos no hotel Pine Cliffs, deu para fazermos umas boas semanas de treino. Houve muitas coisas positivas, de forma natural foi importante eu conhecer o país e as condições. Eu gosto muito de Portugal e estar cá é sempre um motivo de grande felicidade.

ZZ: É comum ouvirmos os treinadores dizerem que a pré-época é uma altura muito importante para a construção do grupo. Tendo em conta que chegou ao Beijing Guoan a meio da temporada passada, esta pré-época assume uma importância ainda maior? 

Técnico em ação na China @Beijing Guoan

RS: Sim, claramente. Agradeço ao Beijing Guoan por ter confiado em mim e por me ter permitido fazer este estágio em que nada nos faltou. Quisemos trazer os jogadores para cá para criarmos laços importantes para o futuro e um modelo de jogo. De resto, estes dias sem competição são altamente produtivos, até numa perspetiva de conhecermos o perfil dos jogadores e para eles me conhecerem a mim e às minhas ideias. Estavam reunidas todas as condições para termos uma evolução dentro do que estava planeado e, felizmente, foi uma excelente pré-época.

ZZ: O Beijing Guoan terminou a última edição do campeonato chinês no sexto lugar. Este resultado foi ao encontro das expectativas da direção e do treinador? Quais são os objetivos para a temporada que se avizinha?

RS: Nós queremos sempre mais, o sexto lugar para um clube como o Beijing Guoan não me parece que seja suficiente. O objetivo é fazermos as coisas de forma diferente, mas [o período na China em 2023] foi importante. Entrámos numa altura difícil da equipa, mas a situação foi evoluindo e fizemos coisas importantes. Fundamentalmente, preparámos bem o futuro, estes cinco meses foram importantes não só para mim, porque conheci melhor a liga, as tradições, os jogadores, a cultura e o clube, mas também porque os jogadores me conheceram a mim. Houve este conhecimento de parte a parte que, espero eu, fará a diferença no futuro para os objetivos que queremos alcançar nesta época.

Para além disso, foi importante mantermos uma base importante da época passada, para este ano só contratámos quatro jogadores: dois chineses e dois estrangeiros. É difícil contratar jogadores chineses e nós contratámos dois, sendo que adicionámos ainda ao plantel o Guga e o Mamadou Traoré, que eu conheço muito bem. São contratações da minha responsabilidade, agora temos de arregaçar as mangas e tentar fazer muito melhor. Os resultados na última época foram aceitáveis, poderíamos ter feito mais. Em termos exibicionais fizemos coisas interessantes para o tempo que estivemos lá e atendendo às condicionantes inerentes ao facto de ter chegado a um país e a uma cultura diferentes. Havia um desconhecimento total em relação ao campeonato chinês, mesmo tendo feito o meu trabalho de casa não é suficiente. Temos de pensar no futuro e temos vontade de fazer as coisas bem.

«Aqui fizeram-me sentir importante»

ZZ: Estamos a gravar a entrevista no dia em que a sua renovação de contrato foi anunciada, é também um sinal de que sente a confiança por parte da direção?

RS: Sim. A minha ida para a China proporcionou-se de uma forma que é motivante para qualquer profissional. Fizeram-me sentir importante e que eu era a pessoa certa para treinar o clube da capital. Nos últimos anos o clube tem tido dificuldades em atingir os seus objetivos, o sexto lugar que falámos foi a melhor classificação dos últimos anos e eu não acho que seja suficiente para um clube com a grandeza do Beijing Guoan. O clube também não o acha e fizeram-me querer experimentar o futebol chinês e aportar ao clube uma dimensão maior. Esta renovação surge porque o profissional Ricardo Soares está feliz na China e no Beijing Guoan e porque a administração acredita que sou a pessoa certa para dar um impulso novo ao clube. Espero estar à altura do desafio e responder com trabalho, ambição e resultados desportivos. 

Ricardo Soares
Beijing Guoan
2023

18 Jogos
10 Vitórias
3 Empates
5 Derrotas

33 Golos
19 Golos sofridos

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ZZ: Falou da importância que estes cinco meses tiveram para conhecer a cultura e o jogador chinês. Como descreve a realidade futebolística que encontrou na China? Como é que caracteriza o jogador chinês?

RS: O jogador chinês, até pela cultura, é muito respeitador e aceita as decisões que o treinador tenta implementar. É lógico que o futebol chinês pode dar um salto qualitativo, mas aí entra a responsabilidade dos treinadores e dos jogadores estrangeiros que lá chegam. Hoje em dia o jogador português é altamente profissional, penso que há uma grande influência do José Mourinho e do Cristiano Ronaldo nestas questões relacionadas com a forma de trabalhar. Os jogadores têm cada vez mais cuidados com o corpo, têm prazer em treinar e esforçam-se ao máximo. Não é por acaso que temos tantos jogadores fora. Com os treinadores acontece o mesmo, a «arrogância» do José Mourinho criou um impacto muito grande e fez com que nós quiséssemos ser melhores. 

ZZ: E para mostrar que não é caso único, que pode haver mais treinadores a chegar a um patamar semelhante...

RS: Sim, mas principalmente no despertar desta paixão... O mundo está sempre a evoluir, hoje já não existem os empregos para a vida. O mundo está muito rápido e quem não for competente fica para trás e tem dificuldade em construir uma carreira. A forma de trabalhar dessas duas personalidades foi importante para o nosso crescimento. Em relação às diferenças... Portugal tem cento e tal anos de história de futebol, a China... O Beijing Guoan tem 30 e tal anos de ida e é dos clubes mais antigos da China. Ainda há um longo caminho a percorrer, eles seguirão os seus passos de forma natural e serão melhores no futuro. Nós, até pelas vivências que já tivemos, temos a obrigação de ajudar o futebol chinês. Pela responsabilidade que tenho enquanto profissional, darei o meu melhor para ajudar o clube e para me ajudar a mim.

ZZ: O futebol chinês saltou para as luzes da ribalta ali por volta de 2016/2017, altura em que foi feito um grande investimento e em que grandes estrelas rumaram ao país. Entretanto esse investimento caiu e muitos clubes faliram. Para quem chega à China neste momento, esse desinvestimento é percetível?

RS: Claro que sim. [Nessa altura] Houve uma grande preocupação do governo chinês em dar um impulso ao futebol. As pessoas gostam muito de futebol no país e o objetivo era darem um impulso à modalidade. Foram contratadas grandes estrelas para que o produto e o jogador chinês se pudessem transcender e partir para uma dimensão superior. No entanto, no futebol, as coisas têm o seu tempo e o seu espaço. Acredito que esse desinvestimento teve a ver com a Covid-19, uma doença terrível que levou tanta gente de quem gostávamos. Na China isso foi muito evidente porque foi lá que tudo começou e houve uma paragem muito grande. De qualquer das formas, penso que a China vai voltar a investir nos próximos anos porque tem bases para atingir outro patamar, ainda que isso não aconteça de um dia para o outro. Há questões estruturais, como por exemplo o futebol de formação, que terão de ser feitas de outra forma. Há essa preocupação por parte dos governantes e acredito que, mais cedo ou mais tarde, vão dar esse passo.

ZZ: Até porque, olhando para essa questão do investimento, agora há a «concorrência» de países como a Arábia Saudita....

RS: A Arábia Saudita e outros países, como o Catar, têm investido muito. Levar para lá o Ronaldo é um sinal de que as pessoas querem protagonismo e que o futebol seja o desporto número um nesses países. A liga saudita é uma liga forte, mas a liga chinesa também é. É uma liga organizada, competitiva, com boas equipas e com bons jogadores. Claro que a organização em Portugal está numa dimensão alta, o Pedro Proença está de parabéns, assim como os nossos jogadores, treinadores, dirigentes e árbitros. Damos mais valor quando chegamos a outros lados e passamos a ter um termo de comparação. Aí percebemos que desvalorizamos muito o nosso produto, dizemos que se joga mal e que se fala muito de outras coisas. Até se pode falar, mas a liga portuguesa é uma grande liga, com grandes jogos e grande organização. A liga chinesa tem a preocupação de ir ver a outros lados porque quer seguir o caminho do sucesso e quer ter uma organização diferente.

«Mudámos a abordagem do clube ao mercado»

ZZ: Falou há pouco da relevância que os treinadores e os jogadores estrangeiros podem ter neste processo de implementação de ideias novas na China. Já tinha o Fábio Abreu no plantel, chegaram agora o Guga e o Mamadou Traoré... Para si, enquanto treinador, quão importante é poder contar com estes jogadores que conhece bem, até numa perspetiva de poder passar mensagens a outros atletas?

RS: É importante, até porque no futebol não há espaço para derrotas e é tudo para ontem. Perceber isso foi uma das coisas que me ajudou a chegar onde estou agora. Não foi, certamente, pelos meus lindos olhos, houve muito trabalho e uma grande ajuda de todos os clubes e jogadores com quem me cruzei. Aliás, tive a felicidade de encontrar muita gente que me ajudou pelo caminho. Não há espaço para perder jogos, caso contrário sabemos o que acontece aos treinadores. Ter esse conhecimento em relação a certos jogadores, que são extremamente profissionais e que podem ser um exemplo para o clube, é muito positivo. Defini, juntamente com o clube, mudar a abordagem ao mercado. Decidi apostar em jogadores jovens e não tanto em jogadores com 34/35 anos. Preferi ir buscar mais jogadores para que, embora o aspeto financeiro seja importante porque andamos todos à procura de melhorar a nossa vida, a paixão também estivesse presente.

ZZ: E que ainda tenham aquela dose de ambição...

RS: Claramente! Tenho 49 anos e ainda tenho muito anos de carreira pela frente. É importante que os jogadores também tenham esse pensamento. O Guga vai para a China, mas ainda tem 26 anos. Ou seja, ainda tem mais dez anos para jogar futebol. Eu não acredito que o Guga fosse lá só pelo dinheiro. Ele vai e quer fazer mais, conheço a personalidade dele e sei que é extremamente exigente com ele próprio e ambicioso. No entanto, tem de o ser porque com 26/27 anos ninguém faz reformas, joga-se até aos 34/35 anos. O caso do Mamadou é igual. Mudámos um bocadinho o conceito do jogador para o Beijing Guoan e estou satisfeito porque o clube aceitou as minhas sugestões. Estou convencido de que estão reunidas as condições para darmos um impulso forte ao clube.

ZZ: Olhando de forma mais aprofundada para o seu plantel, conta com um jogador que tem uma passagem por Portugal, no caso o Yu Dabao. Ele chegou ao Benfica como avançado e agora joga a defesa-central, acreditamos nós. Como o descreve?

RS: Eu já o conhecia do Benfica, mas ele não está a jogar a defesa-central. Jogou nessa posição com o Roger Schmidt, em 2019, mas comigo joga como médio. Quando atuamos em 4-3-3 ele joga como 8 e, quando alinhamos em 3-4-3, é um dos médios que joga por fora. Estamos a falar de uma pessoa fantástica, alguém que teve uma influência muito grande na minha boa adaptação à cultura chinesa e ao jogador chinês. Cometi alguns erros no início, até porque nós, portugueses, por vezes somos muito emocionais a treinar. Há algumas expressões que uso aqui em Portugal, mas que não funcionam na China. Como ele esteve aqui, sabe como é que as coisas funcionam. Na China, um berro a um jogador não é aconselhável. Gesticular sem que eles percebam o que eu estou a dizer pode dar a entender que estou descontente com os jogadores quando não é o que acontece. Aliás, muitas vezes estou extremamente contente e faço muitos gestos porque sou assim.

No entanto, isso pode criar uma situação negativa devido à cultura dele. Ele, o Wang Gang, o Liyu e o Boxuan estiveram em Portugal e ajudaram-me bastante para que eu me moderasse e me adaptasse a eles de forma a que tivéssemos sucesso. O nosso conhecimento e a nossa competência não estão em causa, está sim o contexto. E nós temos de nos adaptar. Não acredito que um treinador da 1ª Liga, seja ele qual for, não seja competente. São todos competentes, depois depende da sorte e do contexto em que são inseridos. O Dabao é uma pessoa fantástica, uma referência no clube e na China. Ajudou-me muito em todas as vertentes.

ZZ: Como funciona o processo de ter de comunicar sempre com a ajuda de um tradutor? Não sente que parte da mensagem se perde? 

Yu Dabao, aqui com Schmidt, é um fiel escudeiro de Ricardo Soares @Arquivo Yu Dabao

RS: Acredito que sim, por muito bom que seja o tradutor, como é o caso. Penso que o Roger Schmidt pode ter tido alguma influência no que encontrei no Beijing Guoan. O Beijing Guoan é uma equipa muito bem organizada e estruturada, nós só mudámos coisas pontuais que cada treinador tem. O que está bem não faz sentido mudar e o clube é extremamente organizado e tem pessoas boas e competentes. Eu só tenho de me preocupar em treinar e é bom trabalhar desta forma. Não conheço o treinador do Benfica, mas, através de algumas informações que fui recolhendo, percebi que ele aportou essa organização ao clube. Nós estamos a acrescentar no que acreditamos que podemos acrescentar. Levámos um nutricionista porque é importante para nós termos pessoas nessa área que contribuam para os jogadores possam render mais. A minha equipa técnica veio toda comigo e estou muito feliz por tudo o que nos têm oferecido na China.

ZZ: Como é o seu dia a dia na China? Dá para aproveitar um pouco fora do contexto profissional? Como é feita toda a gestão familiar quando o fator distância está tão presente?

RS: Eu preparei muito bem a minha cabeça para este desafio. Aliás, posso partilhar com o zerozero que eu queria mesmo ir para fora. O Estoril sabia disso e eu fui sempre correto com a direção, até porque o clube marcou-me pela positiva e conheci pessoas fantásticas. Depois da minha saída do Gil Vicente fui para um grandíssimo clube no Egito [Al-Ahly], mas as coisas não correram de acordo com o que tinha perspetivado. Assim, eu tinha este sentimento de querer provar a mim próprio que tinha capacidade para estar num contexto diferente. Queria demonstrar a minha competência e atingir o que os clubes me pedem, essa é a minha função enquanto treinador. Ninguém gosta de falhar, mas senti que algo não correu bem no Egito e acabei por ir para a China.

Há dias difíceis, não podemos esconder isso. A distância é terrível para quem, como eu, ama a sua família. A minha esposa e as minhas filhas são as coisas mais importantes de tudo, sem sombra de dúvidas. Nunca irei pôr nada acima da minha esposa e das minhas filhas. Para quem é tão chegado à família é difícil, mas a nível desportivo compensa porque estou num grande clube. Tenho sempre 50 mil pessoas, no mínimo, nas bancadas, mesmo que jogue contra o último. O clube fazer-me sentir bem e valoriza o meu trabalho, foi facílimo termos chegado a acordo [para a renovação] porque estou feliz. Não posso dizer que estou totalmente feliz quando não tenho lá a minha esposa e as minhas filhas, mas a minha profissão é assim e é para o bem de todos. Tenho de fazer este sacrifício agora para tentar que as minhas filhas e a minha esposa tenham uma vida melhor.

ZZ: Elas certamente reconhecem isso...

RS: Sim, seguramente que sim. É difícil para mim e é difícil para elas. É lógico que isto custa, mas penso que não seria correto lamentar-me do que quer que seja. Eu tenho de graças a Deus e às pessoas que me apareceram na vida por estar onde estou e por ter a vida que tenho. Uma coisa que me chateia muito é ver as famílias portuguesas a fazerem tantos sacrifícios e a terem uma vida stressada e desgastante. Eu tenho de continuar a fazer o meu caminho.

ZZ: E acaba por ser como disse, é para o bem comum. É um sacrifício no momento, mas no futuro vai trazer aspetos positivos...

RS: E em termos desportivos fascina-me. Eu começo a treinar o Taipas. Treinei o Taipas, o Torcatense, o Lixa, o Felgueiras... Estamos a falar da Divisão de Honra da AF Porto. Quando pensamos que estamos a treinar o Beijing Guoan, que era o que sonhávamos, sinto-me realizado. 

Técnico com a esposa e as filhas @Arquivo Pessoal

ZZ: É o passar de 50 pessoas na bancada para 50 mil, não é verdade?

RS: Sem dúvida, tenho de continuar a trabalhar para tentar ser a melhor versão possível de mim mesmo. É esse o meu objetivo de vida, que amanhã seja melhor do que hoje. Com honestidade e respeitando sempre toda a gente, o fundamental para mim é ter uma conduta da qual a minha família se possa orgulhar. Sei que não sou perfeito, que o futebol é um desporto emocional e que nós, por vezes, fazemos asneiras, mas que haja a coragem de pedirmos desculpa e a tentativa de não repetirmos os erros. Sabemos que devemos ser exemplos para outras pessoas e nem sempre o somos.

«Lá não é normal um treinador pedir desculpa»

ZZ: Já teve alguma história mais engraçada/caricata na China? Olhando até para esta questão das diferenças culturais...

RS: Temos sempre situações engraçadas... Eu tive uma que joga contra mim, mas não tenho problemas em dizer isso, mesmo tendo sido uma situação complicada. Eu tenho lá um jogador de quem gosto muito, acho que tem um potencial incrível. Eu achava-o muito importante para a equipa, mas a minha exigência é de tal ordem grande- nós portugueses somos muito exigentes- que achava que ele podia treinar melhor. Tentei mil e uma coisas para ver se ele melhorava, mas foram mil e uma coisas portuguesas e não chinesas.... Houve uma vez que o provoquei, de forma propositada, em frente a todo o plantel. Eu já tinha tentado algumas coisas e não estava a funcionar, então decidi pegar-me com ele para ver se lhe dava o 'clique'. Em termos de liderança tentamos de tudo porque o objetivo é sempre que o jogador renda mais e possa ser mais útil à equipa. Eu fiz algo que não deveria ter feito, isto num contexto em que eles têm muita educação. Ele só me disse «Não sei porque é que estás a falar assim para mim, eu nunca te pedi para jogar. Não me queres meter a jogar não metas, não sei porque é que estás a falar assim para mim».

Pela forma como ele reagiu- eles por norma não respondem-, tive noção de que o que fiz foi demasiado. Mal saí da palestra, o Wang Gang e o Yu Dabao vieram logo atrás de mim e disseram-me- eles falam português- «Mister, não podias ter feito o que fizeste. Estás a pôr em causa a tua permanência na China, aquilo é uma humilhação para a pessoa chinesa». E de facto era. Depois de as coisas me saírem, eu tive noção, pela expressão dele e de todo o grupo, que ninguém aprovou aquela situação. Nós [treinadores] somos muito observadores e eu senti à minha volta que algo me estava a escapar. Achei que não era importante falar logo na hora com o jogador, mas nessa noite nem dormi. No dia a seguir chamei-o, expliquei-lhe a situação e disse-lhe que vinha de outra cultura e que não me sentia bem com o que fiz. Para além disso, disse-lhe que lhe ia pedir desculpa em frente ao grupo. Ele ficou a olhar para mim porque lá não é normal um treinador pedir desculpa lá, o país funciona à base de hierarquias e o treinador está acima deles. Com a ajuda do tradutor ele disse «Não, não! Você não vai fazer isso. Está tudo resolvido, vamos mas é treinar». Eu respondi «Não, o que te disse a ti em particular vou dizer ao grupo». Fi-lo e aquilo foi o 'clique' para eu ser mais respeitado. Não interessa seres competente se não criares empatia e se não fores educado, responsável e autêntico. O que faz o sucesso não é o treinador, ninguém ganha sozinho. 

Técnico na redação do zerozero @Gonçalo Pinto/zerozero

ZZ: E entra aqui aquela ideia de que um treinador tem de perceber de futebol, mas que também tem de ser um gestor de homens e um gestor de balneário...

RS: Completamente de acordo e a vida vai-nos ensinando isso. Quando comecei achava que era tudo fácil, mas as vivências moldam-nos.

ZZ: Falou há pouco da experiência no Al-Ahly. Porque motivo esta experiência no Egito foi tão curta [dois meses]? Quão importante foi esta primeira experiência no Egito na adaptação à China? Pelo menos já sabia o que era estar fora de Portugal...

RS: Foi a primeira vez que saí de Portugal, mas sinto que não me preparei convenientemente para sair. A responsabilidade de as coisas não terem corrido bem é minha. Mesmo entrando numa altura conturbada do clube [mudança de direção], se fosse hoje acho que tinha feito muitas coisas diferentes. Acredito que teria tido um maior sucesso. Os resultados, atendendo a circunstâncias das quais não vale a pena estar a falar agora, até foram razoáveis, mas poderiam ter sido melhores se tivéssemos feitos certas coisas de outra forma. De qualquer maneira, estou grato ao Al-Ahly e gostei muito de lá estar. Trataram-me bem e foram muito corretos comigo, mesmo na hora da saída. Fiz boas amizades lá, mas a vida é assim. Lamento não ter dado mais porque acho que o poderia ter feito, mas o tempo não volta atrás e temos de olhar para a frente e aprender com os erros. Isto é tudo tão rápido que não há espaço para o erro. Um erro pode ser determinante para se deitar tudo a perder. Vamos tentar que isso não aconteça, mesmo sabendo que acontece.

ZZ: Como descreve os adeptos nestes dois países? Ou seja, quão diferente é o adepto egípcio do adepto chinês?

RS: São muito diferentes! Nós, portugueses, somos latinos, somos um povo muito emocional. O chinês é mais calmo e tem um apoio mais pensado, até pela educação que eles têm desde cedo. De qualquer das maneiras, gosto muito da forma como eles estão na vida, são muito educados e equilibrados na forma como apoiam. Aqui somos o 8 e o 80 e lá é diferente, mas gosto muito do meu Portugal e irei sempre dizer bem do meu país.

Portugal

Ricardo Soares

NomeJosé Ricardo Soares Ribeiro

Nascimento/Idade1974-11-11(49 anos)

Nacionalidade

Portugal

Portugal

FunçãoTreinador

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