"Se não fizermos isto, não há floresta". Expedição indígena procura estabelecer fronteiras no seu território

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 Adriano Machado/REUTERSJuarez Saw, chefe de uma aldeia em Munduruku, segura numa placa que vai afixar para marcar a fronteira de Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Seis metros de largura, é o tamanho do caminho que 50 indígenas do povo Munduruk abrem com catanas pela vegetação densa e muitas vezes escurecida pelo dossel da floresta - camadas sobrepostas de ramos e folhas das árvores. A cada quilómetro, os Munduruku param e afixam nos troncos das árvores placas, onde se pode ler: "Governo Federal, Território Sawre Muybu, Terra Protegida".

É um ato silencioso, mas desafiante, de um povo que luta há décadas para exigir ao governo brasileiro o reconhecimento das suas terras - uma medida que garantiria proteção legal contra lenhadores, mineiros e até contra projetos de infraestrutura do próprio governo.


 Adriano Machado/REUTERSUm indígena Munduruku carrega um sinal de marcação durante uma expedição do povo Munduruku para marcar a fronteira terrestre de Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSAntonio Akay Munduruku carrega para afixar nos troncos das árvores. Foto: Adriano Machado/REUTERS

"Isto não é o nosso trabalho. É obrigação do governo demarcar as terras indígenas, mas eles não fazem isso", disse Juarez Saw - chefe da Sawre Muybu, uma aldeia Munduruku - depois dos seus homens afixarem a 20.ª e última placa da caminhada de oito dias, no mês passado.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que é responsável pelos assuntos indígenas no Brasil, diz estar com pouco pessoal, mas a trabalhar para estabelecer os limites das terras - um processo interrompido durante o último governo de Jair Bolsonaro.


 Adriano Machado/REUTERSEdmar Munduruku carrega o filho durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSIndígenas Munduruku na floresta amazónica durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Durante a expedição, os homens Munduruku são acompanhados por mulheres e crianças da aldeia. No acampamento comunitário na floresta, as camas de rede balançam entre as árvores e as mulheres preparam a comida: arroz e farinha de mandioca. Quando os caçadores não conseguem encontrar um porco selvagem para o jantar, comem macacos. Enquanto cozinham, os jovens Munduruku brincam no rio.

A última vez que os Munduruku desbravaram as fronteiras do território foi há uma década, tempo suficiente para que a maior floresta tropical do mundo apagasse essas marcas com o crescimento da vegetação.

"Há 25 anos que lutamos para proteger esta terra. Continuamos a limpar as fronteiras para as manter vivas", disse o chefe. "Se não o fizermos, lenhadores e mineiros vão invadir".

 Adriano Machado/REUTERS Dimas Boro, indígena Munduruku, e a sua família. Foto: Adriano Machado/REUTERS
 Adriano Machado/REUTERSIndígenas Munduruku preparam farinha de mandioca na aldeia Koro Muybu.Foto: Adriano Machado/REUTERSAdriano Machado/REUTERSCrianças Munduruku nadam num afluente do rio Tapajós durante a expedição. Foto:Adriano Machado/REUTERS

 Adriano Machado/REUTERSUma criança Munduruku nada num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSGraciete Waru recupera numa rede depois de ter sido picada por um escorpião durante uma expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS

O território Sawre Muybu representa cerca de 1.780 km2 da floresta e está localizado nas margens do rio Tapajós, um afluente do rio Amazonas muitas vezes chamado de “rio intocado” por ser um dos únicos grandes rios do Brasil sem uma barragem hidroelétrica.

Esse território tem sido surpreendido por invasões crescentes de lenhadores ilegais e mineiros que poluem os rios e envenenam os peixes que alimentam os Munduruku com níveis de mercúrio elevados que ameaçam a vida do povo.

A luta dos Munduruku para defender o seu território também faz parte da batalha para impedir que a Amazónia atinja um ponto sem retorno, de acordo com ambientalistas O conhecimento, as práticas e o estatuto legal dos povos indígenas do Brasil torna-os nos guardiões ideais da floresta: a chave para desacelerar o aquecimento global, garantem ambientalistas.

A marcação formal de um território indígena é um passo fundamental para garantir as proteções garantidas na Constituição brasileira. Lula da Silva, Presidente do Brasil, assumiu o cargo no ano passado e prometeu retomar o reconhecimento das terras indígenas, processo que o seu antecessor Jair Bolsonaro interrompeu.


 Adriano Machado/REUTERSJuquita Akay, indígena Munduruku. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSUm motor usado na exploração mineira ilegal abandonado próximo da terra indígena durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS

 Adriano Machado/REUTERSUma visão de drone mostra uma área de exploração de minerais clandestina ao lado de uma terra indígena. Foto: Adriano Machado/REUTERS

A CAÇA DA ANACONDA

Para delinear as suas terras a expedição dos Munduruku começou por navegar lentamente com cinco longos barcos a motor entre a densa vegetação de rios sinuosos.

Um dia, a expedição encontrou uma anaconda no rio e preparou-se para matar a cobra, cuja gordura é usada pelos Munduruku por ter propriedades anti-inflamatórias. A cobra estava tão inchada por ter engolido a presa recente que não conseguiram tirá-la da água.


 Adriano Machado/REUTERSOs indígenas encontraram uma grande anaconda num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSIndígenas Munduruku no rio Tapajós durante expedição que marca a fronteira da Terra Indígena Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS

 Adriano Machado/REUTERSIndígenas Munduruku assam porcos selvagens, que caçaram durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Quando no dia seguinte os caçadores voltaram com um macaco-prego, um rapaz Munduruku correu para salvar dois macacos bebés que se agarravam à mãe. Ele ficou encarregue deles e carregou-os durante o resto da caminhada de 36 quilómetros.

Durante a expedição, os Munduruku, que estavam armados com velhas espingardas de caça, também se depararam com acampamentos ilegais de minas de ouro - encontros que foram tensos mas pacíficos.


 Adriano Machado/REUTERSBoro Bijmepu está a segurar um macaco-prego bebé na floresta amazónica Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSO rapaz Munduruku salvou dois macacos bebés. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Desde que assumiu o poder, há mais de um ano e meio, Lula da Silva já reconheceu dez novos territórios. Ainda assim, há 62 terras indígenas à espera de uma assinatura e mais de 200 com fronteiras definidas, mas desprotegidas pelo governo, o que as torna vulneráveis a invasões.

Embora os defensores dos povos indígenas queiram que o governo acelere o processo, as promessas de Lula da Silva têm sofrido reações contrárias de um congresso conservador, de grupos agrícolas e de alguns aliados políticos, que dizem ser necessárias mais estradas, caminhos de ferro e centrais elétricas na Amazónia para gerar empregos.

O esforço dos Munduruku para delinear a terra dos Sawre Muybu tem como base o plano de construção de uma barragem hidroelétrica que pode vir a inundar grande parte do território. O projeto de 8.000 MW foi arquivado em 2016 pelo Ibama por não ter consultado os Munduruku ou não ter feito estudos de impacto adequados.

Em maio, a recém-privatizada Eletrobras pediu a atualização desses estudos, segundo a agência reguladora Aneel. A Eletrobras não respondeu nenhum pedido de comentário.

"Isso mostra que eles não desistiram do projeto", disse Suely Araújo, que arquivou o plano quando era presidente do Ibama.


 Adriano Machado/REUTERSOs indígenas Munduruku pintam-se uns aos outros com tinta de urucum, como parte de uma prática cultural. Foto: Adriano Machado/REUTERS
 Adriano Machado/REUTERSRobson Paes sentado na floresta da Amazónia durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSDaniela Waru sentada numa rede a durante expedição do povo Munduruku. Foto: Adriano Machado/REUTERS

O território Sawre Muybu também enfrenta uma ameaça indireta de planos do governo para construir uma ferrovia de 1.000 km para exportar grão de Mato Grosso para um porto no Tapajós, onde barcaças transferem as colheitas para navios maiores.

Os líderes indígenas temem que o projeto ferroviário, apoiado por agricultores e multinacionais de cereais para reduzir os custos de transporte, possa facilitar o acesso de lenhadores e mineiros às suas terras.


 Adriano Machado/REUTERSUma criança Munduruku nada num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSUma criança indígena Munduruku olha para a aldeia Karo Muybu durante uma expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS

 Adriano Machado/REUTERSDeka Munduruku pinta o rosto de Mondria Munduruku como parte de uma prática cultural em que os Munduruku se pintam para a guerra e defendem o seu território. Foto: Adriano Machado/REUTERS
 Adriano Machado/REUTERSMondria Munduruku indígena Munduruku durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS Rodrigo Machado/REUTERSIvanice Parawa, é chefe da aldeia Karo Muybu, a nadar antes da expedição do povo Munduruku. Foto: Rodrigo Machado/REUTERS

Hoje em dia, cerca de 13 mil indígenas pertencem ao povo Munduruku que vive há milhares de anos ao longo do rio Tapajós. Dos 11 territórios onde habitam apenas dois têm pleno reconhecimento e proteção legal do governo.

Em 2013, a Funai concluiu um estudo que confirmou a terra Sawre Muybu como território dos Munduruku, mas o governo não deu o passo seguinte de estabelecer oficialmente as fronteiras do território.

Alessandra Munduruku, membro da tribo e ativista, disse no acampamento que a falta de fronteiras marcadas encorajava mineiros e lenhadores à “invasão das nossas terras".

"Não estamos a pedir esmola, estamos a defender os nossos direitos", disse. "E não vamos desistir".

 Adriano Machado/REUTERSUm indígena Munduruku assiste a uma reunião na floresta amazónica. Foto: Adriano Machado/REUTERS Adriano Machado/REUTERSIndígenas Munduruku pintam-se uns aos outros com tinta de urucum.Foto: Adriano Machado/REUTERS

 Adriano Machado/REUTERSDavison Munduruku observa a floresta da Amazónia. Foto: Adriano Machado/REUTERS
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