"Se os radares não os detetam, não os vemos mais." Reportagem nas Canárias, a principal rota migratória da Europa

2 horas atrás 22

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Reportagem em vídeo: El Hierro transformou-se numa ilha de voluntários, que se sente abandonada pelo governo central espanhol

O molhe do porto de La Restinga, na ponta sul da Ilha de El Hierro, nas Canárias, está agora ocupado por tendas e contentores. É ali, onde antes estavam atracadas embarcações de pesca, que são inicialmente acolhidos os migrantes que chegam, às centenas por dia, recorrendo à conhecida rota Atlântica.

Um dos navios do Salvamento Marítimo recebe o alerta, segue as coordenadas e vai buscar mais um “cayuco” com subsaarianos — uma embarcação a motor, de madeira ou de fibra de vidro, repleta de pessoas que terão passado entre sete a doze dias em viagem, consoante as condições do mar.

Como se de um espetáculo se tratasse, do outro lado da entrada do porto, num pequeno pontão onde atracam poucas embarcações de recreio, muitos assistem às chegadas. Vieram quase sessenta migrantes desta vez, incluindo mulheres grávidas, crianças e adolescentes. Muitos acenam e dizem as primeiras palavras em castelhano, como "hola" ou "adios".


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Ouça a reportagem em El Hierro, onde começam a faltar lugares para enterrar migrantes

Há quem se mostre chocado com o que acaba de presenciar.

“O que estas pessoas estão a fazer, percorrer 1500 kms para chegar aqui... Se os radares espanhóis não os detetam e se os motores param, não os vemos mais", suspira Roberto Garcia, que vive numa outra ilha das Canárias e está a passar uns dias em El Hierro. "Acabo de assistir a isto, em direto.”

A redução do número de migrantes na rota mediterrânica, em conjunto com o aumento da vigilância policial aos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, terá feito aumentar o fluxo migratório na chamada rota da África Ocidental. É a única a fazer-se pelo Oceano Atlântico e passa principalmente por países como Marrocos, Sara Ocidental, Mauritânia, Gâmbia e pelo Senegal. Os barcos afastam-se dezenas de quilómetros da costa, para evitar os controlos de imigração. E só depois de estarem bem longe é que rumam a norte, em viagens que podem chegar aos 1500 km, até atingirem as ilhas Canárias.


Em 2023, foram mais de 39.900 os migrantes a completar esse percurso. Este ano, estão a bater-se todos os recordes: só nos últimos 15 dias de setembro, entraram mais de 4 mil migrantes nas Canárias — uma média de 270 por dia.

De janeiro a outubro chegaram ao arquipélago mais de 32.800 pessoas — um aumento de cerca de 40% em relação ao período homólogo do ano passado.

A pequena ilha de El Hierro, a mais ocidental do arquipélago, é o primeiro pedaço de terra espanhola que os barcos avistam. Residem ali pouco mais de 11.500 pessoas. Até 1 de outubro deste ano, o porto de La Restinga acolheu 191 embarcações, com mais de 15 mil migrantes.

No final de setembro, uma embarcação com 90 pessoas, vinda da Mauritânia, naufragou. Foram recuperados nove corpos, mais de 50 desapareceram. Foi o maior naufrágio de que há registo naquelas águas — mas não se sabe quantas desaparecem sem que os radares alguma vez as detetem.


Sempre que um pequeno barco é resgatado pelo Salvamento Marítimo e se aproxima do porto, a tripulação vai avisando, por gestos, que todos devem permanecer sentados até atracarem. Só depois de concluída a operação é que se levantam e desembarcam, para serem acolhidos por elementos dos serviços de saúde das Canárias e por voluntários da Cruz Vermelha espanhola.

“O primeiro momento, que parece muito normalizado, é um momento delicado", explica Alexis Ramos Fernandez, porta-voz da Cruz Vermelha nas Canárias. Todos os operacionais envolvidos "têm de ter muito cuidado, para que a ânsia de saírem não faça com que a embarcação se vire”, acrescenta.

O protocolo seguido no acolhimento prossegue com a triagem e encaminhamento de casos para um posto médico, se for caso disso. "E depois, claro, extrair os menores de idade, as crianças e as mulheres", especifica Alexis Ramos Fernandez.

"O dispositivo existente no porto é reflexo de uma necessidade de recursos. Senão colapsava o resto", sublinha o porta-voz. "Por isso, temos esse posto sanitário que evita o colapso do hospital.”

Findos estes passos no processo de acolhimento mais emergente, todos os que chegam passam ao posto de mediação. “É ali que lhes é explicado onde se encontram, qual vai ser o seu itinerário e, muito importante, onde detetamos vulnerabilidades. Temos tradutores e especialistas em mediação que executam essa função”, explica.


 João Cunha/RRAté 1 de outubro deste ano, o porto de La Restinga acolheu 191 embarcações, com mais de 15 mil migrantes. Foto: João Cunha/RR
 Gelmert Finol/EPAA Cruz Vermelha está presente na chegada, na triagem e nas transferências entre ilhas, para o centro existente em Tenerife. Foto: Gelmert Finol/EPA João Cunha/RRO posto sanitário colocado no porto de la Restinga "evita o colapso do hospital" com tamanho número de chegadas, afirma o porta-voz da Cruz Vermelha nas Canárias. Foto: João Cunha/RR

Os técnicos têm uma especial atenção a elementos “que pertençam ao grupo LGBT ou pessoas com vulnerabilidades — físicas ou outras — que necessitem de uma atenção especializada", assegura o porta-voz. "Isso é muito importante para prestar uma atenção humanitária digna.”

Mas o trabalho da Cruz Vermelha não se fica por aqui. Também é responsável pelas transferências entre ilhas para o centro existente em Tenerife — o de maior capacidade entre os 81 existentes. E em toda esta atividade contínua, “estas pessoas não deixam de ser pessoas”, sublinha Alexis, e os socorristas vão acumulando uma coleção de olhares assustados que “chegam à alma”.

Foi o que aconteceu com Ommar Kebbeh, um jovem de 18 anos natural da Gâmbia, quando em agosto do ano passado chegou a El Hierro. Dos seis dias que passou no mar, em metade deles não havia comida, recorda, e a água acabou ao final do quarto dia.

“Todos os dias dizia ao rapaz sentado ao meu lado que se ontem não morri, hoje morro de certeza”, conta Ommar, que não se alonga no relato — pouco credível — de como planeou a vinda para a Europa.


 João Cunha/RROmmar Kebbeh, de 18 anos, entrou num barco no Senegal e demorou seis dias a chegar a El Hierro. Foto: João Cunha/RR
 João Cunha/RRCabem cerca de quinhentas pessoas no Centro de Acolhimento Temporário de Estrangeiros (CATE), em San Andrés, El Hierro. Foto: João Cunha/RR João Cunha/RROs migrantes são depois transferidos para outros centros no arquipélago, antes de seguirem para Espanha continental. Foto: João Cunha/RR

O jovem garante que decidiu ir de férias para o Senegal, país vizinho da Gâmbia, "com uns amigos". E que certo dia, numa praia, ouviu "um grupo de rapazes próximo a falar de um barco que ia sair nessa noite para Espanha". Interessado, diz que meteu conversa e se ofereceu para comprar parte da comida, se o levassem também. E que isso, aliado à sua simpatia e bondade, terá bastado para ter um lugar garantido a bordo.

O mais provável, contudo, é que uma rede de traficantes de seres humanos o tenha obrigado a pagar para fazer a viagem — como acontece na esmagadora maioria dos casos.

Uma ilha de voluntários

Quando chegam ao porto de La Restinga, depois da verificação inicial, os adultos são transferidos para o CATE (Centro de Acolhimento Temporário de Imigrantes), localizado em San Andrés, a 20 km do porto. Fica numa das zonas mais altas da ilha, acima dos mil metros de altura, onde a névoa e o frio são comuns.

Na prática, não é mais do que um campo de deslocados com capacidade para cerca de quinhentas pessoas, criado pela Polícia Nacional para realizar as identificações dos migrantes, antes de serem transferidos, no prazo máximo de 72 horas, para outros centros no arquipélago, e daí, depois de devidamente documentados, para Espanha continental. Só que a legalização em território espanhol complica-se quando os migrantes admitem ter documentos falsos, eventualmente comprados ás redes de tráfico humano, como revelou à Renascença fonte ligada ao processo.

O ministério espanhol do interior não autorizou a Renascença a visitar este centro de acolhimento. Só os agentes policiais, os profissionais de saúde, os elementos da Cruz Vermelha e os voluntários da organização não governamental Corazón Naranja podem entrar no recinto.


 João Cunha/RRYan Darwin Rivas (em cima), Francis Mendoza (em baixo à esquerda) e Gabriel Hernandez são voluntários na ONG Corazón Naranja. Fotos: João Cunha/RR

Gabriel Hernandez, um dos três padres da ilha, integra essas equipas. Ajuda na hora das refeições, nas idas às casas de banho dos que não o conseguem fazer sozinhos e distribui roupas e produtos de higiene pessoal.

“Na verdade, foi uma chamada pessoal, como parte do ministério”, explica o pároco, sentado frente ao altar da igreja de San Andés. “Sinto que Jesus me pede que dê de comer, de beber e que dê uma manta a quem tem frio. Por isso, ao fim e ao cabo, é algo pessoal e de fé”. Antecipa que todas estas experiências "vão ficar gravadas na memória” e agradece poder ser voluntário.

“Sou um pequeno grão de areia nesta situação. Mas fazem-se grandes montanhas com muitos grãos…”, sublinha.

Os outros dois padres da ilha também arregaçaram as mangas e passaram a fazer parte dos voluntários da Corazón Naranja. Yan Darwin Rivas, administrador paroquial de El Hierro, sorri sempre que fala desta experiência, que diz ser “fabulosa” e uma oportunidade.

“Às vezes a solidariedade mede-se, de forma errada, pelo que damos. A solidariedade também é do muito que recebemos”, acredita o voluntário, que é também delegado da Cáritas Diocesana de Tenerife.

O facto de a grande maioria dos migrantes que chegam serem muçulmanos não representa qualquer entrave para os voluntários católicos. “Deus não tem fronteiras, nem limites, nem apelidos ou cor de pele, não tem condição sexual nem económica ou cultural. Porque Deus é para todos”, sublinha Yan Darwin Rivas.

"Quando acreditas nos outros e o manifestas, não podes ficar de braços cruzados", defende. "O caminho está cheio de incertezas e certezas, acertos e desacertos, de escuridão e de luz, mas estou contigo. E se estamos juntos, se estou contigo, essa fé tem um maior significado”, sustenta o sacerdote, antes de se preparar para mais um dia de voluntariado no CATE.

Sempre a correr de um lado para o outro, numa constante azáfama, está Francis Mendoza, antigo treinador das camadas jovens de voleibol de um clube de La Frontera, na zona ocidental da ilha. A vida mudou quando viu pela primeira vez a chegada de uma embarcação cheia de imigrantes.

“Impressionou-me a forma como chegavam: esses meninos, essas mulheres, de olhos perdidos. A partir daí, fui-me envolvendo cada vez mais.”

Mendoza abandonou os treinos e dedicou-se de corpo e alma ao voluntariado. Hoje, acumula a profissão de consultor imobiliário com a presidência da Corazón Naranja, além de coordenar a Proteção Civil de toda a ilha.


“Fazemos de tudo. Mas ajudamos sobretudo a polícia, no sentido de avançar com o processo de cada migrante. E, mesmo não tendo essa responsabilidade, identificamos os que estão mal para serem tratados pelas equipas médicas”, explica.

Mas mais importante, salienta, é procurarem ouvir os migrantes, porque “cada um é uma pessoa com a sua história”.

E pelo que se apercebe, haverá cada vez mais histórias para ouvir. "Pelo que eles nos dizem, vamos ter três meses bastante duros, porque vão chegar muitos migrantes à nossa ilha. Muitos mais do que os que chegaram até ao dia de hoje.”

Até atingirem a maioridade e serem transferidos para outros centros de acolhimento nas Canárias, muitos desses migrantes, incluindo vários menores, tentam integrar-se num meio e numa cultura que lhes é completamente estranha. A maioria não fala espanhol, francês ou inglês. Mas nem isso incomoda os “herreños”, como Maria Mela.

“Dá-me muita pena. Ajudei um, que agora é maior de idade e teve de ir para outra ilha. Hoje mesmo escreveu-me. Chama-me mamã. E na verdade, sinto... não sei se culpa ou empatia, não sei”, revela Maria.

Reconhece que a capacidade, por vezes, "transborda" e que "os serviços de saúde e os voluntários também se cansam", mas defende que se continue a investir no acolhimento. "É um drama que nos afeta a todos e temos de os acolher da melhor maneira possível”.


 João Cunha/RRMaria Mela não sabe se sente "culpa ou empatia", mas defende que se invista mais no acolhimento. Foto: João Cunha/RR João Cunha/RR"Alegra-me os olhos quando os vejo a jogar futebol no campo, com os miúdos daqui", assegura Rodrigo Quintero. Foto: João Cunha/RR

 João Cunha/RRJovens migrantes no campo de futebol de Valverde, em El Hierro. Foto: João Cunha/RR

Ali ao lado, sentado num banco de jardim de Valverde, a capital de El Hierro, Rodrigo Quintero defende que a convivência com os que chegam não podia ser melhor. “Para mim, é fabulosa. Alegra-me os olhos quando os vejo a jogar futebol no campo, com os miúdos daqui. Quando vão à escola e se integram.”

Já a falta de soluções é uma preocupação para Guillermo Sanchez, residente na ilha. “Eu sou muito emocional e dá-me pena, porque todos neste mundo fomos imigrantes noutros países, também. Vejo que as coisas estão a complicar-se cada vez mais, e não sei que medidas podem ser tomadas”, desabafa, antes de interromper a conversa para ir atrás do neto, com pouco mais de três anos, que insiste em fugir do avô e dos pais.

Mudar a lei para distribuir os menores?

A distribuição de migrantes menores não acompanhados desencadeou uma enorme luta política entre o governo das Canárias e o governo de Espanha. Roberto Garcia, residente na ilha de Gran Canária, não compreende.

“Sentem-se no Parlamento e debatam isto. Se tiver de ser durante 12 horas, que seja. Encontrem uma solução", pede. "Às vezes não estão de acordo para angariar e somar votos? Pois que solucionem este problema.”

Já Rodrigo Quintero considera que é tempo de acabar com discussões “que não levam a lado nenhum”.

“Que é competência da comunidade autónoma das Canárias a questão da imigração? Sim”, acredita este “herreño”. Mas dado o fenómeno que se está a produzir, “devem mudar essa competência”, defende, confessando-se triste com o espetáculo a que tem assistido. “Eu acompanho as notícias e o que vejo são políticos a discutir uns com uns outros, no Parlamento e no Congresso, a insultarem-se. 'Tu fizeste melhor ou pior, não foi culpa minha, não é minha competência…' A competência é do ser humano”, entende.

Sentado numa esplanada de um café de Valverde, o joalheiro artesanal Mário Comas toma o pequeno-almoço sob o olhar atento do seu cão Majorero, raça nativa das Canárias.

“Incomoda-me que a Europa não tome conta do assunto, sendo estas ilhas tão pequenas", atira. "Que a Europa não seja capaz de dizer 'vamos repartir todos, dar-lhes asilo'”, explica, enquanto dá mais um gole num café com leite.

“Chegam aqui muitos europeus e não incomoda. Porquê? São loiros, branquinhos, de olhos claros. E estes são todos negros.”

O joalheiro questiona: “Quando começou a guerra na Ucrânia, quantos foram recebidos na Europa, sem problema? Porque não se recebe de igual forma os africanos?”

A “hipocrisia política face à questão da imigração nas Canárias tem aumentado”, afirma Alpidio Armas. É presidente do Cabildo de El Hierro — uma instituição governamental e administrativa, existente em cada uma das ilhas do arquipélago, em que o presidente eleito tem um nível de autoridade entre a ilha e a comunidade autónoma das Canárias.

“Os grandes partidos nacionais, e em particular o Partido Popular, está a obstruir a aprovação de uma lei para que se possa abordar a transferência dos imigrantes menores. E isto não é compreensível”, sustenta o presidente do Cabildo, eleito pelo PSOE.


 Gelmert Finol/EPAUm barco com 67 migrantes foi resgatado a 16 de setembro, em El Hierro, com duas crianças a bordo. Foto: Gelmert Finol/EPA

A lei em causa, a da Imigração, tem um artigo que muitos reclamam que urge ser alterado, por uma questão de equidade e proporcionalidade.

“O artigo 35 da Lei de Imigração obriga a comunidade autónoma onde chegam a acolher estes imigrantes menores, mas a sua transferência para outras comunidades autónomas é voluntária, dependendo da solidariedade delas. O que se pretende alterar é precisamente isso: que por lei, as comunidades tenham a obrigação de acolher um determinado número de menores”, deixando assim de ser uma questão de vontade, mas de aplicação da lei, explica Alpidio Armas.

O presidente do Cabildo recorda que “há 5200 menores nas Canárias, estando 300 deles em El Hierro".

"Percentualmente, temos mais do que em todas as outras ilhas. Se essa percentagem fosse aplicada em Tenerife, teriam de ter 30 mil menores para que a resposta fosse idêntica à nossa”.

A chegada quase diária de embarcações apinhadas de migrantes não dá tempo para debates e as decisões políticas tardam.

“A pressão que as Canárias estão a fazer junto do governo central e da Europa é importante, nós também a fazemos", admite o responsável, "mas entretanto, há que continuar a acolher bem estas pessoas. Se a Europa e Espanha não fazem caso, nós deixamos de os acolher? Não. Temos a obrigação moral e legal de os acolher", defende.

“Vai demorar muito ou pouco a encontrar uma solução? Não sei. Depende basicamente do Partido Popular, que não se deve opor às alterações do artigo 35 da Lei de Imigração, para que numa semana tenhamos uma solução”, acredita Alpidio Armas.

Há quem seja menos otimista e considere que vai ser necessário mais tempo. Javier Armas, irmão de Alpidio, é senador eleito por El Hierro. Faz parte do grupo parlamentar que inclui o Juntos pela Catalunha, a Coligação Canária, o Grupo Independente de el Hierro e o Bloco Nacionalista Galego.


"Se a Europa e Espanha não fazem caso, deixamos de os acolher?", questiona Alpídio Armas, presidente do Cabildo de El Hierro. Foto: João Cunha/RR"Se a Europa e Espanha não fazem caso, deixamos de os acolher?", questiona Alpídio Armas, presidente do Cabildo de El Hierro. Foto: João Cunha/RR João Cunha/RR“Se este problema ocorresse às portas de Madrid ou de Barcelona, já estaria resolvido”, acredita o senador Javier Armas. Foto: João Cunha/RR

O senador espera que em "três meses, antes que termine o final do ano" se comece a caminhar para uma solução. "Para que, pelo menos, a pressão existente nos centros de acolhimento nas Canárias, com 5400 crianças, passe a ser de 2 mil ou 1500, mais fáceis de gerir”, explica.

Quanto à situação concreta de El Hierro, a diminuição da pressão faria toda a diferença, defende. “Que não existam 300 crianças, mas sim 80, que assim poderão ir á escola, ser atendidos adequadamente, poderão continuar a jogar futebol com os miúdos daqui", sustenta. Com a pressão na casa das centenas, "será impossível de gerir, impossível de lhes dar o que precisam: cuidados de menores, independentemente da sua cor, do seu país ou da língua que falam”.

Javier Armas não tem dúvidas: “se este problema ocorresse às portas de Madrid ou de Barcelona, já estaria resolvido.”

“Esse é o grande problema das Canárias. Estamos a 2000 km de distância de Cádis e a 3000 de Madrid. Esse é o problema. Não o sentem, não o conhecem, e como tal, não há vontade em solucioná-lo”, acusa.

Até que se encontre uma solução, o orçamento de El Hierro está a ser direcionado para a situação de emergência.

“O Cabildo já gastou mais de um milhão de euros com a imigração. Não recebemos um cêntimo, nem do governo das Canárias, nem do governo espanhol nem da Europa. De ninguém”, revela Alpidio Armas.

“O dinheiro das contas não é do presidente, do Cabildo ou de quem aqui trabalha. É de todos os 'herreños', e foi esse dinheiro que permitiu que até agora se tenha recebido da melhor forma quem aqui chega", adianta.

Funerais sem nomes num cemitério a ficar sem espaço

A fatura não se limita às necessidades de quem consegue completar a perigosa viagem. Estende-se aos que já chegam sem vida a bordo dos “cayucos” ou que morrem no hospital. O município de El Pinar, a que pertence La Restinga, já procedeu a 31 funerais este ano, revela Juan Miguel Padrón Brito, o autarca.


“Vieram alguns companheiros de outras ilhas, muçulmanos, e fazem as cerimónias. Suportamos todos os funerais, que custam cada, 1450 euros", adianta o autarca, que explica que as estimativas de mortes e de lugares disponíveis no cemitério foram alteradas com a chegada de migrantes.

“Se tínhamos previsões de ocupar 12 ou 14 gavetões por ano, por cada munícipe que morre, essas previsões foram superadas. Em muito", acrescenta.

"Se alguns barcos com imigrantes chegam com mortos, não sabemos se teremos gavetões suficientes." O município lançou "um projeto para construir mais 80, orçado em 82 mil euros". Juan Miguel Padrón Brito quer acelerar a empreitada, para estar prevenido "se, por desgraça, nos chegarem mais migrantes falecidos.”

O autarca também acredita que a solução passa por mais "solidariedade de toda Espanha, de todas as comunidades autónomas", que permita "a repartição de todos esses menores pelas comunidades".

Desalentado, o edil de El Pinar desabafa: "Se estes menores pudessem votar, todas as comunidades passavam a ter competências para os receber. Mas como não votam, ninguém tem competências e todos esquecem este problema.”

Entre a comunidade, há quem procure chamar à atenção para que os que vão a enterrar não caiam no esquecimento.

Joke Volta é uma artista plástica, radicada há décadas em El Hierro, que decidiu contribuir para que estes imigrantes não caiam no esquecimento. Nas redes sociais, dá conta de cada saída do Salvamento Marítimo, o percurso que aquelas embarcações vão fazer e até onde, e partilha as notícias veiculadas pelos órgãos de comunicação social e o número de migrantes a bordo, o seu estado de saúde e a sua proveniência. E o número dos que chegaram sem vida.


 Borja Suarez/ReutersNove migrantes foram enterrados num cemitério de El Hierro, depois do naufrágio que fez mais de 50 desaparecidas, no final de setembro deste ano. Foto: Borja Suarez/Reuters

Sempre que há um funeral, Joke assiste à cerimónia. “Estás frente a um caixão, com um morto dentro. Não sabes o seu nome, apenas há um número. É uma pessoa com poucos anos, que podia ser teu filho. A família está do outro lado do Atlântico, não pode vir. Quer saber como faleceu e quem o chora. Um dia, quem sabe, com sorte, possam enterrá-lo com todas as honras na sua terra, quem sabe.”

Junto às placas de identificação dos gavetões, a artista coloca pequenos barcos de papel, lado a lado com arranjos de flores. “Os barquinhos de papel são um improviso. Eu sou artista e houve que improvisar”, explica.

“Há uma senhora que sempre vem com um ramo de flores, lindo, neste e em todos os cemitérios onde se enterram imigrantes. Eu venho com os barquinhos. Há uma senhora que vem do norte da ilha, que canta. Só canta. Para fazer alguma coisa, para que haja alguma dignidade para com esta vida, muitas vezes jovem. Foi um futuro que se perdeu nas ondas. Chegou a terra e podemos enterrá-lo. Quantos há no cemitério? Isto tem de parar", lamenta.

Além dos mortos que ali chegam, muitos mais são atirados ao mar, quando perdem a vida durante a viagem. Muitas embarcações ficam à deriva, nunca sendo localizadas ou ajudadas. E muitas vidas se perdem sem deixar rasto.

Ommar Kebbeh, o gambiano de 18 anos que chegou há pouco mais de um ano a el Hierro, teve mais sorte. E percebeu que a ilha que o acolheu precisava dele. Do seu domínio do inglês, de alguns conhecimentos de francês, mas sobretudo de alguns dialetos africanos. Agora, Ommar é voluntário na ONG Corazon Naranja e elemento da Proteção Civil de EL Hierro. Em seis meses aprendeu a falar castelhano e está perfeitamente integrado na sociedade “herreña”.

Agradece todos os dias a Deus por poder ajudar os seus “camaradas africanos”. Espera que um dia o pai lhe perdoe por ter abandonado a Gâmbia e a família.


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