Stalker napolitano: chantagem e traição no inferno dantesco de Quagliarella

9 meses atrás 78

Que fácil é para os adeptos, observadores impassíveis, a arte de julgar. Mesmo longe dos holofotes que capturam a genialidade e os erros, há deslumbramento de quem, alheio à complexidade geral das personagens em causa, insiste em rotulá-las.

Fabio Quagliarella é um dos grandes nomes do futebol italiano no século XXI - ou foi, já que se reformou no último mês, aos 40 anos -, mas é também exemplo das batalhas internas, silenciosas, que tantas vezes definem o que será, aos olhos distantes, um certo futebolista profissional. «Craque» ou «flop», «herói» ou «traidor»?

Envelheceu como os bons vinhos, num jeito por essência tão transalpino. Brilhou em vários clubes e chegou a ser, mesmo dois anos mais velho que o concorrente Cristiano Ronaldo, artilheiro da Serie A em 2018/19. Construiu um belo currículo, mas nele deixou, também, uma mágoa: a infeliz passagem pelo Napoli, clube do coração.

Por lá durou apenas um ano, até ser emprestado à Juventus. O que então pareceu mera dificuldade na adaptação a uma nova equipa, foi afinal, segundo a história que anos mais tarde abalou Itália, um inferno para o avançado, que se viu perseguido e chantageado por quem estava encarregue de o proteger...

2009/10, sonho que virou pesadelo

Fabio nasceu e cresceu em Castellammare di Stabia, uma pequena comuna costeira na baía napolitana e, tal como para a esmagadora maioria dos miúdos da região, o sonho era simples: ser futebolista e vestir a amada maglia azzurra. Por ser tão mais talentoso que esses outros miúdos, o sonho do Fabio realizou-se.

Quando assinou pelo seu Napoli, que no verão de 2009 investiu 18 milhões de euros para o comprar à Udinese, já não era miúdo nenhum. Tinha 26 anos, nove internacionalizações por Itália e mais de 80 golos como sénior, ainda assim, encarou a transferência com quem encara uma chamada à equipa principal.

qUm stalker atormentou-me durante cinco anos. Ninguém imagina a tensão, mesmo quando estava em casa

O regresso a casa, o bis na estreia caseira para o campeonato e acima de tudo a sensação de que os adeptos se reviram nele e o amaram de imediato, apelidando-o de Masaniello (líder da revolta popular de Nápoles no século XVII) e dedicando-lhe uma canção, algo que não faziam por ninguém desde Maradona.

Que incrível existência, a de quem se prova jogador de futebol ao serviço do clube predileto. Vita verdadeiramente dolce, até à reviravolta do destino lhe trocar os sabores...

A vida azedou rápido, pelo caos que assombrou e dominou Quagliarella durante anos sem que ninguém soubesse, até o próprio revelar a história, em 2017, numa entrevista ao jornal Le Iene. «Um stalker atormentou-me durante cinco anos», disse então, antes de detalhar a história que o zerozero, em Nápoles para o jogo do SC Braga, procura recordar.

Carreira internacional foi de 2007 a 2019: oito golos em 28 jogos pela squadra azzurra @Getty / Valerio Pennicino


Tudo nasceu de um aparentemente inócuo problema no computador - tinha sido hackeado -, resolvido com a ajuda de um polícia que se especializava em fraude e cibercrime.

Chamava-se Raffaelle Piccolo e parecia merecer toda a confiança de Quagliarella. Não só por ser um agente da lei, mas por ter sido apresentado pelo melhor amigo de infância e por ter, de facto, resolvido a tal questão. Daí nasceu uma amizade, celebrada com a oferta de camisolas e autógrafos, em jeito de agradecimento.

Foi por essa altura que o vírus começou a infetar o quotidiano do futebolista. 

Centenas de mensagens e até cartas anónimas começaram a chegar. Primeiro acusavam-no de ser camorristi, ou seja, pertencer à infame organização criminosa «Camorra». Depois, de participar em apostas ou usar drogas. Por fim, «o pior»: as cartas começaram a multiplicar-se e a trazer fotos de crianças nuas, alegando que Quagliarella era pedófilo.

Fabio Quagliarella
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37 Jogos  3040 Minutos

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Para que não lhe afetasse tanto o rendimento desportivo, os pais começaram a esconder a maioria das cartas, em jeito de proteção, até estas passarem a ser endereçadas ao próprio pai com ameaças. O teu filho está aqui, o teu filho está ali... O teu filho vai morrer. Receberam até um caixão com a fotografia do filho, caso a mensagem não estivesse clara o suficiente.

O caso estava entregue a Piccolo, que por essa altura já era parte da família. Profissional neste tipo de questões, pediu que não contassem a mais ninguém, nem sequer ao resto da família, e foi dando garantias de estar cada vez mais próximo de encontrar o culpado.

Quagliarella cumpriu. O sofrimento foi silencioso e prolongado, sempre na esperança de que este polícia amigo voltaria a ser a salvação. 

Enquanto isso, Piccolo sabia muito bem a identidade do misterioso perseguidor. Era ele mesmo.

Piccolo diavolo separou o amor perfeito

De pouco servia ser inocente, quando as acusações começaram a chegar à esfera pública. Os rumores foram plantados em fóruns online e por lá circularam. Alguns adeptos acreditaram, mas o problema maior foi quando cartas semelhantes chegaram ao correio do Napoli.

Nunca quis deixar o clube @Getty /

Pedofilia, máfia, cocaína... Nem o mais polémico dos presidentes, Aurelio De Laurentiis, quis esse tipo de caos em torno do seu clube! Como tal, Quagliarella foi despachado para a Juventus ao fim de apenas uma temporada, contra a sua vontade.

Seguiu-se a mudança de opinião napolitana, que viu ganância na mudança para Turim, de maneira que o rapaz local, amado de imediato, virou «traidor». Aceitou o ódio e os assobios, até porque não podia revelar os verdadeiros motivos da saída. Piccolo insistia que era melhor o sigilo, pois o contrário poderia comprometer a investigação. 

Resignado, Quagliarella seguiu carreira longe de casa. Continuou goleador, sem celebrar nas sete vezes que marcou à sua antiga equipa e até virou os adeptos do Torino contra si por ter pedido desculpas à Curva Sud, depois de um golo em Nápoles. 

Naturalmente, as peripécias não ficaram por aí. Já duravam mais de cinco anos quando o pai começou a suspeitar das intenções do polícia amico. Apesar da proximidade, foi diretamente à esquadra para saber o estado da investigação e assim descobriu que nenhuma das queixas tinha sido recebida de todo. 

Nunca mais voltou a vestir a camisola do Napoli @Getty /

A chocante descoberta não deu espaço a paz de espírito para quem passou anos a viver em desconfiança. Pelo menos não de imediato, já que o castigo do criminoso foi uma transferência para uma esquadra diferente, noutra zona. Por fim, as engrenagens da justiça rodaram e eis que Raffaele Piccolo, o stalker chantagista, foi condenado a quatro anos e oito meses de prisão. No fim de 2019, mais de dois anos depois, foi finalmente encarcerado.

Se desconhecia a história, é provável que o leitor esteja, pelo menos em parte, incrédulo, a pensar de que filme terá sido ela tirada. É perturbante, mas definitivamente real e conhecida em Nápoles, Itália e Mundo desde que o ex-avançado a levou e público em 2017. Ainda assim, caso prefira os filmes, existe um documentário: Quaglirella, The Untold Truth (2021).

Nápoles reconciliou-se com o seu «filho»

«No inferno que viveste... enorme dignidade. Voltaremos a abraçar-te Fabio, filho desta nossa cidade»

Assim responderam os tifosi napolitanos em março de 2017, com uma tarja pendurada na tal Curva Sud, quando finalmente souberam os verdadeiros motivos que levaram, sete anos antes, à despedida prematura. 

Quagliarella, que atribui aos 11 golos marcados pelo Napoli o valor sentimental de 100, respondeu a essa manifestação de amor azzurro no dia seguinte, a partir das redes sociais: «Ontem à noite uma felicidade histórica, hoje uma grande emoção. Obrigado, do meu coração».

Reconciliação entre homem e cidade @Facebook - Fabio Quagliarella

«Sempre me tinha imaginado como capitão do Napoli, a levantar troféus com eles porque já se estavam a tornar na grande equipa que são agora», disse em 2017, na explicação da saída.

Sabendo que o amor tinha sido até aí recíproco, não parece de todo irrealista que, sem a perseguição infernal que levou à saída, tivesse sido esse o desfecho. Não foi. Ainda assim, a mágoa do que podia ter sido ficou bem mais tolerável após recuperar o amor dos napolitanos.

Depois do reconciliar, marcou em três jogos consecutivos contra o Napoli e, no terceiro, fechou o 3-0 com um golaço monumental. Nem esse justificou celebração. Nenhum justificaria.

Recebeu o calor de um Napoli campeão @Getty /

Anos mais tarde, no dia 4 de maio deste ano, o Napoli conquistou o scudetto pela terceira vez na sua história. Precisamente um mês depois encerrou a campanha, na 38ª jornada, com a receção à Sampdoria, já despromovida. O quarentão Fabio Quagliarella emocionou-se durante o aquecimento, ao ver dedicada a ele uma tarja onde era descrito como «orgulhoso filho de Partenope», e chorou novamente aos 88 minutos, ovacionado na hora da substituição.

Mesmo campeões há mais de um mês, os tifosi voltaram às ruas essa noite. Mais especificamente à praia de Castellammare di Stabia, a tal comuna na baía napolitana. Na derradeira festa do título, o nome mais cantado não foi Kvaratskhelia, Osimhen ou Maradona, mas sim o de um miúdo local que, por circunstâncias fora do seu controlo, foi obrigado a ser adversário.

Ninguém o sabia na altura, até porque não estava nos planos do próprio, mas esse seria o último jogo da carreira de Fabio Quagliarella.

Um ciclo imperfeito, belo ao seu jeito.

@Italy

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