Em janeiro deste ano, quatro meses antes de colocar um ponto final numa longa carreira ao mais alto nível, João Pereira passava por uma das etapas mais complicadas do ponto de vista profissional. O antigo internacional português tinha sido colocado a treinar à parte pelo treinador do Trabzonspor, sem qualquer explicação, e viu-se forçado a rescindir contrato com o clube onde estava há cinco anos e tinha inclusive estatuto de capitão de equipa.
A luz apagou-se à beira de completar 37 anos, mas o Sporting, mais uma vez, apareceu para o início de um «conto de fadas». João estava prestes a comprometer-se com outro clube turco quando recebeu a chamada de Alvalade e do outro lado uma proposta para regressar pela segunda vez ao clube do «seu» coração. Os leões seguiam na liderança do Campeonato e assim continuaram até ao fim, permitindo ao defesa conquistar o título de leão ao peito. Um final perfeito. Ou quase perfeito.
19 de maio de 2021. Data do último jogo. Dia da despedida dos relvados. E o pontapé de saída para uma nova etapa na vida do agora treinador adjunto da equipa de sub-23 do Sporting. Um passo que contou com o apoio incondicional da família. «É como se estivesse a começar nos escolinhas», conta.
Numa das primeiras entrevistas após o final de carreira, João Pereira recebeu o zerozero na Academia de Alcochete para contar como está a correr a transição de jogador para treinador. Vamos a isso, mister!
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«De vez em quando bate aquela saudade do balneário»
zerozero (ZZ): 622 jogos como profissional. 40 internacionalizações. Sete clubes. Uma carreira que chegou ao fim no passado dia 19 de maio de 2021 ao serviço do «clube do coração». Como está a ser o virar de página?
João Pereira (JP): Ao início foi complicado. Tudo novo para mim. Entrar às 8h30 e sair às 18 horas, sem sair do gabinete nas duas primeiras semanas de preparação da pré-temporada. Para quem estava habituado a passar muito tempo ao ar livre, foi um bocado agressivo estar fechado entre quatro paredes. Além disso, fui absorvendo muito informação de uma vez, mas tive a sorte de ter uma equipa técnica que me ajudou bastante.
ZZ: E saudades?
JP: Pensei que ia ser pior. Não sei se por ter a sorte de poder entrar um bocado nos treinos quando falta um jogador num exercício. Isso vai tirando o bichinho que ainda cá está. Foram muitos anos a fazer o mesmo e de vez em quando bate aquela saudade do balneário e do dia do jogo.
ZZ: Foi uma época de emoções fortes. Estavas na Turquia há cinco anos, num clube onde eras visto como um ídolo para muitos adeptos e de um momento para o outro és privado de fazer o que mais gostas… E depois aparece o Sporting. Se alguém te falasse deste cenário no início da época, acreditavas que seria possível?
JP: Não! Nem de perto, nem de longe. Por muitos motivos. Primeiro, a minha idade. Segundo pelo momento que o Sporting estava a atravessar, pois já estava em primeiro lugar no Campeonato. Em terceiro pelo jogador [Porro] que estava na minha posição, que estava a voar e continua a voar. Nunca me passou pela cabeça. Quando rescindi com o Trabzonspor não fazia intenção de voltar a Portugal e estava tudo encaminhado para continuar pela Turquia e de um momento para o outro a vida deu uma volta de 180 graus. Aconteceu um conto de fadas.
ZZ: “Não voltes a um lugar onde já foste feliz”. Voltaste duas vezes. Foi o final perfeito?
JP: Perfeito, não foi, por um único motivo: não havia público nas bancadas. Esse foi o único motivo pelo qual não foi perfeito. Ainda tive a felicidade da minha família estar presente no camarote, e ter sido campeão com o meu filho é uma alegria. Ter o meu pai… [pausa] Conseguiu ver o filho campeão no clube do coração dele ao fim de tantos anos. No primeiro ano não ganhei nada, no segundo voltei e conquistei a Supertaça e consegui conquistar finalmente o Campeonato. Não foi só importante para mim, mas muito mais importante para o Sporting.
ZZ: Passaste do 0 ao 100. Aquele momento de saída de Trabzon…
JP: Tinha sido titular nos meus anos todos, era capitão de equipa, toda a gente gostava de mim… Mas sem nenhuma razão que me fosse transmitida, deixei de fazer parte das opções do treinador, deixei de poder treinar com os meus companheiros, fui proibido de frequentar o clube e fui proibido de me despedir dos meus colegas de equipa. Encontrei-me numa situação com 36 anos, rescisão de clube e… sem saber o que era o futuro. Numa fase importante. E de repente o Sporting…
ZZ: Abriu-te novamente as portas…
JP: Uma varinha mágica que fez magia.
ZZ: Entraste no Sporting com o comboio a meio. Sentiste logo que havia algo de especial na equipa?
JP: O espírito de grupo. Falava-se muito nisso e não era brincadeira. Não é em todas, mas as grandes equipas conseguem ser campeãs quando têm um grande espírito de grupo. Nós tínhamos um grande grupo. O presidente, o [Hugo] Viana, o [Rúben] Amorim… Tiveram a capacidade para juntar vários elementos, onde todos trabalhavam pelo mesmo. Tudo com um foco: a equipa. Isso foi o principal pilar que levou a equipa ao título.
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«Rúben Amorim merece tudo o que está a ter»
ZZ: O mister Rúben Amorim surpreendeu-te?
JP: Sem dúvida! Éramos miúdos e íamos de férias juntos e era só rir com ele. Nunca pensei que ele viesse a ser treinador, pois nunca tínhamos falado disso. Agora estão à vista os seus trabalhos e, acima de tudo, a qualidade do trabalho. Merece tudo o que está a ter.
ZZ: Como está a ser acompanhar agora do lado de fora?
JP: Sofres mais um bocadinho. Quando estava lá dentro, nós acreditávamos e sabíamos que mais tarde ou mais cedo o golo ia aparecer. Por isso é que ganhámos muitos jogos perto do fim. Estávamos juntos e acreditávamos. Agora do lado de fora, não sei como é lá dentro, mas acredito que seja igual ou parecido.
ZZ: Falavas há pouco dos adeptos. Qual sentes que seja a importância do título para eles?
JP: Muito importante. Um clube grande como o Sporting não pode estar tantos anos sem ganhar o Campeonato. Não é bom para o clube e não é bom para o Campeonato. O Sporting conquistar este título, da maneira que foi, com muita gente nova, um treinador novo que muitos duvidaram… Foi um título contra todas as possibilidades. Chegamos a ver algumas estatísticas e o Sporting estava atrás do SC Braga. Fomos campeões e com muito mérito.
ZZ: “O Sporting é um clube que aprendi a amar”. Palavras tuas. Como é que o Sporting conquistou o teu coração?
JP: Foi no Sporting que consegui chegar à Seleção Nacional. Foi no Sporting que consegui fazer a transferência para o melhor campeonato do mundo, o espanhol, numa das melhores equipas do campeonato espanhol e onde tive a oportunidade de jogar contra a melhor equipa que praticou futebol, o Barcelona, de Xavi, Iniesta… Depois saí do Valencia, passei por Hannover, fiquei sem contrato, sem clube e apareceu o Sporting. Vim para cá e consegui relançar a minha carreira, ser quase campeão e arranjar transferência para a Turquia. Depois também não posso esquecer a parte humana. Passei por muitas casas, mas aqui fui tratado como em nenhuma… É um clube muito mais familiar, onde és muito mais acarinhado e acompanhado. As pessoas são mais dadas, há menos falsidade e menos inveja. Fiz muitos amigos aqui no Sporting e quando sais de um clube onde deixas amizades vais querer que esse clube continue a ganhar. E foi assim que aprendi a gostar do Sporting.
ZZ: Sentes que conseguiste dar tanto ao Sporting como o Sporting te deu a ti?
JP: Nem de perto, nem de longe. Há muita gente que diz que eu dei tudo o que tinha e o que não tinha. Mas isso não chega. Um clube como o Sporting precisa de títulos e eu não dei títulos suficientes ao Sporting. A maior mágoa que tenho no futebol é essa.
ZZ: Mas foi bom acabar com a conquista do Campeonato…
JP: Foi. Foram muitos anos a sofrer… Sofri muito também aqui no Sporting. Quando jogas num grande clube e não consegues conquistar títulos, tu sofres. E acabares dessa maneira, nada melhor.
João Pereira acompanhado pela mulher Natacha e o filho Gabriel ©Arquivo Pessoal
«Podem dizer que eu era mais ou menos ranhoso, mas não podem acusar-me de falta de profissionalismo»
ZZ: Ao longo de toda a carreira, acredito que a família tenha sido um pilar muito importante…
JP: A minha mulher ainda apanhou a fase em Valencia, a fase complicada em Hannover e mais recentemente apanhou a fase complicada no Trabzon. Ela estava lá… Esteve lá para mim.
ZZ: Ela investiu muito em ti para esta transição para treinador [risos]
JP: Eu levava grandes duras. Eu dizia-lhe que ia ser treinador e ela: “A minha vida vai continuar a ser a de andar de um lado para o outro” [risos]. As coisas foram passando, eu a dizer-lhe que não vivia sem isto, e ela de um momento para o outro começou a aparecer com livros em casa. Dizia que tinha de fazer mental-coaching, cursos de inglês, e que eu tinha de ser o melhor [mais risos].
ZZ: Ainda sentes que é como se estivesses a começar nos escolinhas?
JP: Sim, como se estivesse a aprender tudo de novo. Eu tenho equivalência para o nível I, estou agora inscrito para o nível II, vamos ver se me aceitam. Tu tens uma noção, mas não tens a mínima ideia de tudo o que esta por trás. Quando chegas aqui levas com tudo. Isto afinal trabalha-se mais um bocadinho.
ZZ: O que é que o futebol te ensinou e que tentas agora transmitir a estes jovens da equipa de sub-23?
JP: Primeiro, exigência máxima no treino. Tu jogas como treinas. Se não treinares no máximo, não vais jogar no máximo. Também têm de ter atenção à escola. Isso no Sporting é muito importante. Há treinos que temos de dar à tarde para que eles possam ir à escola. Como sabem o modelo do Sporting é focado no jogador. O foco é formar o jogador e o homem. Temos de ajudar nesse processo.
ZZ: O João jogador encaixava no estilo do João treinador?
JP: Encaixava, claro, titular indiscutível! [risos] Por todos os clubes por onde passei e podem ir perguntar a todos, podem dizer que eu era mais ou menos ranhoso, como dizia o mister [Amorim], mais ou menos chato, mas não me podem acusar de falta de profissionalismo. Em todos os treinos dei o meu 100%. Terminei a minha carreira perfeitamente tranquilo em relação a isso. Há coisas que fiz no futebol e que se calhar não me alegro, mas são coisas que aconteceram. Podem acusar-me de ter jogado mal, mil e uma coisa, mas não há uma única pessoa no mundo que pode por em causa o meu profissionalismo.
ZZ: Como tens construído o teu perfil de treinador?
JP: Fui retirando de todos os treinadores um pouco de cada um, uns melhores do que outros, tirei o bom e o mau. O mau para não fazer e o bom para fazer.
ZZ: Os sportinguistas podem estar descansados em relação ao futuro? Há algum jogador que possa aparecer brevemente na equipa principal?
JP: Há muita qualidade, se podem chegar ou não vai depender das condições. Vai depender da sorte. Vai depender de certos pormenores. E vai depender da estrutura para os ajudar, gerindo as expectativas. Hoje em dia têm uma realidade que mostra que é possível chegar lá cima. O mister Amorim trouxe isso para o Sporting. Apostou e aposta. Eles sabem que podem ir. Há muitos que são chamados à equipa principal. Eles sabem que estão constantemente em observação e que não podem facilitar.
©Sporting CP