Sylvie Courvoisier & Cory Smythe e Bill Orcutt Guitar Quartet no Jazz em Agosto’24: a natureza dos espantos

1 mes atrás 78

O terceiro dia do festival que acompanha os primeiros 11 dias de Agosto na Gulbenkian volta a receber a música no amplo leque que dá pelo nome jazz. Os nomes programados para o concerto de final de tarde e princípio de noite desafiam os limites das definições, e espantam e atraem em simultâneo. É como olhar pela janela e dar conta que, afinal, os estalidos metálicos que se ouvem, são de facto emitidos pelo duo de corvos que exibem capacidade canoras que desafiam a fonte de emissão dos sons — espantoso. Serve isto para esperar num ciclo de jazz que pode (e deve) nos dias de hoje ser feito de espantos vários — tanto melhor. Os momentos de improviso no decurso da música justificam o enquadramento, afinal no jazz a construção surpresa dos sons é um mote vital. 

O duo de pianistas Sylvie Courvoisier e Cory Smythe apresentam-se no Grande Auditório da Gulbenkian, pleno de público que demonstra tratar-se de uma das maiores afluências vistas no decurso do Jazz em Agosto. Sinal de espanto — talvez — e de uma enorme satisfação. É também um sinal de que as áreas limites da música (neste caso) são tão ou mais interessantes, pois agregam ambos os lados, são as fronteiras que se atenuam e que não separam. Courvoisier é uma pianista com robusta trajectória inscrita no jazz nas últimas quatro décadas, que vão dos começos com Sylvie Courvoisier Quintetto e em duo com o baterista Lucas Niggli — músico presente nesta edição do Jazz em Agosto liderando uma formação alargada — às mais recentes colaborações, junto ao palhetista Ned Rothenberg (Crossing Four, Clean Feed 2023), às electrónicas de Ikue Mori (Tracing The Magic, Tzadik 2022), ao violinista Mark Feldman (Sounding Point, Intakt 2021) ou ao trompetista Nate Wooley para Mutual Aid Music lançado pela Pleasure Of The Text Records (2021) onde os pianos de Courvoisier e Smythe se encontram. 

O encontro do presente palco parte de uma vontade que despontou de outros palcos, aqueles durante o tempo passado com o bailarino Israel Galván que as levou a trabalhar nos campos da obra revolucionária Sagração da Primavera de Stravinsky. Foi um percurso longo para aqui chegar — inicialmente a solo — como dá conta a história associada, uma vez que “a família de Stravinsky não permitia arranjos independentes da obra — apenas uma versão para piano apresentada, que deveria ser a versão original do mestre para dueto de piano e nada mais.” Reagiu melhor Courvoisier com The Rite of Spring – Spectre d’un songe que apresenta junto a Cory Smythe e está editado pela Pyroclastic Records, para retomar sempre que se queira. Dois piano justapostos, que se encaixam no palco com o jardim em “pano” transparente de fundo, e na música. A peça contando com Smythe por “também ter uma grande capacidade de improvisação, porque o plano era agrupar The Rite [de Stravinsky] com uma obra original que ela criaria como uma espécie de resposta à mesma.” A perseverança e o improviso a trazerem tudo o que há para ouvir em palco. 

Há a possibilidade de ver de perto o efeito espelho da tampa das cordas do piano — permite ver o som, como a alusão feita ao corvos vistos da janela. Permite saber que som é este que se ouve — o espanto. Uma bola de silicone na ponta de uma baqueta permite ressurgir um respirar profundo de um ser telúrico, era o mote para a primeira das partes da Sagração da Primavera — a adoração da Terra. É uma obra que em muito assenta na natureza do espanto, na admiração que vem do ritmo e das harmonias que desafiam com frequentes dissonâncias, que levam até à percussão das teclas num todo maior marcante. O duo tem um rigor pleno de encaixe, que leva à impercetível separação de quem faz o quê em tantos trechos. Uma maquinal percussão é brilhantemente permeabilizada por requintes tímbricos, que denotam a descrição melódica de adoração. Há um piano preparado de forma dinâmica, pequenos magnetos são ora colocadas sobre as cordas ora retirados para a moldura metálica. Dessas intervenções sonoras vem o melhor dos dois mundos que estas mãos servem, do pianismo clássico ao modernismo que Stravinsky introduziu até ao fundamental improviso inscrito nos domínios do jazz. Essa transição é feita com a passagem da segunda metade da Sagração da Primavera — O Sacrifício, plena de cadências marcantes e pesadas — para Spectre d’un songe. Aqui chegados espera-nos a desenvoltura do universo onírico do pianismo de Courvoisier de que nunca se dissocia o de Smythe. É uma progressão feita de modernismo e com muito espaço dado ao espanto pelo inesperado. Aqui as ligações a Stravinsky passam à ordem da inspiração, como de tantos outros, que vão de Messiaen a Ligeti, por um lado, e a Monk ou a Craig Taborn por outro. São frases próprias que vão construindo uma ode por triunfos que se sucedem no tempo e fazem deste espaço um sonho tornado agora colectivo. Os elementos ondulantes que saem dos dois pianos revelam-se feitos do vivido acumulado entre a clássica, o jazz e o espaço improvisado que os liga. Ter-se-á escrito deste espanto de concerto uma página importante da história do Jazz em Agosto que nos liga a um futuro.



De cordas se continuou o programa do jazz, agora fora de portas, dentro do jardim, no Anfiteatro ao Ar Livre, para um homogéneo quarteto de cordas, de guitarras eléctricas. Os quartetos mono-instrumentais são pouco frequentes comparados com a abundância dos que agrupam diversas instrumentações, desde a música de câmara ao jazz. Sacrificam logo à partida o equilíbrio mais regular na condução musical e causam espanto. Pode ser como albardar um animal de carga só num lado e deixar esse o desafio do equilíbrio por conta da hábil condução das rédeas e das destrezas próprias. Bill Orcutt é um destemido e longevo dedilhador de cordas metálicas amplificadas. Fá-lo há muito, e desde a sua prática surge inscreve-se uma nova tradição, dentro da modernidade na abordagem da guitarra eléctrica. Da última passagem de Orcutt pelo festival em 2022 com Chris Corsano ainda hoje se ouvem chispas sonoras vindas do Auditório 2. 

Nesse mesmo 2022 grava em modo “one man band” Music For Four Guitars que edita em casa editorial própria — Palilalia Records. Num certo espanto escreve música para quatro guitarras que o próprio toca em estúdio e torna possível um quarteto no imaginário. A prova de que esse registo teria de extravasar de um exercício de estúdio foi o facto de logo depois ser convertido em música em palco. Para isso Orcutt recrutou voluntariamente duas distintas guitarristas, Wendy Eisenberg e Ava Mendoza e outro guitarrista mais, Shane Parish, e assim formalizando o ensemble para palcos. Pouco tardou para que desde um desses palcos se inscrevesse o registo Four Guitars Live, pela Palilalia num duplo LP, da prestação em novembro de 2023 em Utrecht, aquando do festival Le Guess Who? — onde tentámos estar, mas só garantimos lugar no programa paralelo do festival U?.

Neste palco o espanto era redobrado desde a hora que soubemos que poderíamos vingar a tentativa de ver e ouvir o quarteto de guitarras de Orcutt. O reportório é simples, eficaz na pretensão, alcance imediato e de consumo óbvio — muito na esteira punk, sem tretas pelo meio. Apresentam-se sentados, de guitarras assentes na perna e no colo como prefere Wendy Eisenberg. Imagem instantânea que podíamos colar na porta do frigorífico como bilhete postal da noite, com legenda da esquerda para a direita — Parish, Mendoza, Eisenberg e Orcutt. Os primeiros temas parecem servidos em modo “já está”, sem muito para explorar e em grande medida tocados em vozes uníssonas. Mostram nisso uma parede sónica, de som áspero e roufenho, mas onde a ligação é directa, sem manobras de processamentos em pedais. Não há lugar a apresentações das malhas, e por isso mesmo dão a impressão ainda mais homogénea da cena. Mas o primeiro espanto surge-nos ao quinto tema, onde há lugar para umas dissonâncias de escalas em modo de erro sublinhado a fluorescente. Para logo em seguida Mendoza — que ainda ontem parecia ter brilhado numa outra galáxia neste palco — avançar feroz para outra forma de “rifalhar” num mandar-se escala afora até perder o pé, num proto-solo que foi deixando outros como espectadores. Foi o caso de Parish, já que se preparava para entrar por veredas semelhantes em seguida, e em modo ainda mais exuberante e teatral. Há uma grande diversão em palco, desfrutam e muito sobretudo ao estarem a tocar com Orcutt os outros três. Voltam a ser quatro em sonoridades extensas que promovem o tema mais longo escutado de todo o repertório. “Enquanto os outros brilham eu faço ziguezague” bem podia ser o chapéu em muitos momentos dos solos à vez até aqui, agora era a vez de Eisenberg. Orcutt faz a primeira intervenção por palavras, e espera que o avião passe — agora sem guitarras os aviões voltavam a ter expressão sonora. “Temos um disco com 30 minutos e um concerto com uma hora, tem de haver lugar para a improvisação”, confessa quem idealizou um quarteto assim mesmo. A improvisação entra de forma assumida pelo próprio, num retomar de concerto que revela um momento belo e acolhedor, e por instantes sentimos o prazer de um quarteto a solo, como a gravação levada a cabo pelo compositor em estúdio e aqui a improvisar. No voltar efetivo a quatro mãos, passa-se de novo para as roupagens sonoras e suspende-se o detalhe da narrativa. Houve adiante um diálogo interessante em seguir que se estabeleceu entre Parish e Mendoza.  

A três músicas do desfecho, Orcutt volta a ser interlocutor por palavras e explica que “vão por as guitarras no estado primordial e afinar a primeira das cordas em Mi”. Para espanto, durante o concerto nem se reparou que Orcutt fosse tocar vez alguma na afinação da sua guitarra, algo frequente entre os restantes. Voltam os exercícios conjuntos em uníssonos com subtis e desejosos desvios à norma aplicada, que terminam num final pairante em estado autotrófico sónico, com as guitarras a soar sem lhes tocarem mais… Seria Bill Orcutt que voltaria em nome próprio, já que o repertório de quarteto estava gasto. Serve “The World Without Me”, que termina por ser redentor na beleza e por resgatar o melhor que havia a ouvir da noite, num registo solo entre um quarteto a (não) ouvir passar os aviões. Que esse mundo sem ti, Orcutt, esteja longe, bem longe deste. Ava Mendoza ainda fica para o dia seguinte onde se apresenta em duo para juntar a sua guitarra ao violino de Gabby Fluke-Mogul, no retomar do Jazz em Agosto no dia 4 do corrente mês.


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