T2, Ep. 17 | «Saí muito fragilizado do Benfica, mexeu bastante comigo»

8 meses atrás 62

O futebol é muitas vezes um elemento de memória coletiva de uma família, de um país, do Mundo. É por isso que o zerozero, em associação com Rui Miguel Tovar, criou o DESTINO: SAUDADE. Este é um espaço onde vamos recordar histórias e momentos do desporto que nos apaixona. Haverá tempo também para lembrar jogadores de outros tempos, aqueles que nos encantaram e que nos fizeram sonhar. 

Vítor Paneira é o convidado de honra do Destino: Saudade para este Especial de Natal. Oportunidade única para revisitar uma das mais brilhantes carreiras do futebol português nos anos 80 e 90.

Três vezes campeão nacional pelo Benfica, vice-campeão europeu, 44 vezes internacional português com direito a chamada ao Euro96.

Um dos grandes futebolistas portugueses em entrevista ao zerozero. Tantas estórias e personagens em 90 minutos de conversa. Com muitas fintas curtas, sempre à procura da linha de fundo. 

Natural de Calendário, em Vila Nova de Famalicão, Vítor Paneira tem 57 anos e um percurso invejável. Um génio. No Benfica e Vitória SC, até à despedida com todo o encanto em Coimbra. 

«O Chalana já estava com algumas dificuldades, mas ainda fazia coisas incríveis»

zerozero: Todos temos na cabeça a sua finta curta. Como é que a aprendeu a fazer tão bem?

Vítor Paneira: Toda a gente dizia que a conhecia, era a única que tinha, mas era com ela que eu conseguia fugir uns centímetros, meio metro, ali na linha de fundo (risos). A famosa finta curta. Era uma imagem de marca. Essa e também a capacidade de ler o jogo. Fui durante muitos anos o rei das assistências em Portugal e isso não era fácil.

zz: Nesta caderneta o Vítor surge entre os cromos da Seleção Nacional. Fez 44 jogos por Portugal, quatro golos e esteve no Euro96. Ao ver esta imagem, o que lhe surge na mente?

VP: As minhas memórias de menino. Acho que acertei no Euromilhões da minha carreira desportiva. O meu sonho era jogar no Benfica, porque sou benfiquista, e o meu sonho era chegar à seleção portuguesa. E cheguei. Não queria mais do que isso. Hoje os clubes grandes parecem um ponto de passagem, mas para mim o limite era chegar ao Benfica e à seleção. Eram os objetivos máximos.

zz: E foi convocado para o Europeu de Inglaterra.

VP: Mas não joguei (risos). Fui o único a não jogar, o que para mim foi um bocado incompreensível. Tinha sido considerado um dos melhores do campeonato e acabei por nem fazer um minuto. Fiquei feliz por lá estar, mas triste por não ter jogado nem um bocadinho.

zz:Temos uma pergunta guardada há alguns anos. O Vítor foi o ‘7’ nesse Europeu e o Figo ficou com o ‘20’. Houve algum debate sobre o número ou o Vítor já era uma instituição e prevaleceu a sua vontade?

VP: Havia lá alguns ‘7’s’. O Sá Pinto, eu e o Figo. O Figo teve uma atitude muito correta e nem sequer quis competir pelo número. Tinha havido uma situação muito triste na final da Taça de Portugal, com a morte de um adepto por culpa do lançamento de um very light, e nós quisemos ajudar a família do falecido através do leilão de camisolas. Quem queria um número, oferecia dinheiro. O Figo desistiu logo, disse que não ia lutar pela ‘7’, mas o Sá Pinto ainda tentou algumas vezes. Também sentiu que o único verdadeiro ‘7’ era o Paneira (risos). Tanto no Benfica como na Seleção, já há muitos anos.

qPressão na Luz? O nosso treinador rodou a equipa e colocou um jogador que normalmente não atuava. Pediu para ser substituído, não conseguia fazer um passe. Nunca tinha visto uma coisa assim no futebol. Bloqueou. E acabou por morrer ali enquanto jogador do Benfica

Vítor Paneira

zz: Antes de chegar ao Benfica já vestia a ‘7’?

VP: Não, não, no Vizela usava a ‘10’. No Benfica comecei a vestir essa camisola e gostei. Na altura não era fácil manter os números. De ‘1’ a ‘11’ eram rotativos e ninguém tinha números fixos. Felizmente sempre tive poucas lesões e fui mantendo essa camisola.

zz: Quem era o ‘7’ do Benfica antes do Vítor chegar ao clube?

VP: Chegou a jogar o Abel Campos, quando ele jogava de início. Lembro-me disso. Mas depois fiquei eu.

zz: O Paneira era o ‘7’ do Benfica, como o Jaime Magalhães era o ‘7’ do FC Porto.

VP: Sim, ficámos com essa marca, eu e o Jaime.

zz: Quem foram os laterais esquerdos que lhe deram mais problemas e dificuldades nos treinos do Benfica?

VP: O Schwarz era mauzinho (risos). Passava a primeira, na segunda levava ‘fruta’. O Álvaro Magalhães também, mas já estava numa idade mais avançada. O mais difícil foi o Schwarz, preparava-nos para o que vinha nos jogos.

zz: Vamos a isso, então: e nos jogos, os mais difíceis?

VP: A nível nacional, pela forma aguerrida como defendia, o Laureta. Não sei se se recordam dele. Recordo-me de um duelo com ele, no antigo estádio do Gil Vicente. Bola ao centro, apito inicial e o passe é colocado na direita, para mim. O terreno estava empapado, os relvados não tinham a qualidade de hoje. A bola chegou-me, levantou um bocadinho e o Laureta deu-me um carrinho. Não acaba aqui. A bola subiu, ele levantou-se e deu-me mais um carrinho, pumba. Logo duas para me marcar ali (risos). Normalmente ele até era expulso a jogar contra mim. Depois eu ia para cima dele e acabava na rua.

zz: O Laureta ainda chegou ao FC Porto.

VP: Chegou, chegou. Jogou com o Futre. Mas o mais difícil de todos foi o Paolo Maldini. Era um caso à parte. Posicionamento, inteligência, qualidade, agressividade, foi um dos melhores de sempre. Duro, mas leal. Tive com ele alguns confrontos na seleção de Itália e no Milan.

zz. E o Branco, do FC Porto?

VP: Era durinho, mas não era um jogador que defendia muito bem. Destacava-se mais pela qualidade a jogar e pela forma como batia as bolas paradas. Tinha, sim, algumas deficiências defensivas.

zz: Nos anos 80 e 90, qual era o conhecimento prévio que tinham sobre os adversários? Está a dizer-nos que o Branco não era bom a defender, isso era sabido antecipadamente?

VP: Não era tão bom a defender, sim. No Benfica já trabalhávamos com essas dinâmicas. Era o professor Jorge Castelo que estudava os adversários. Recordo-me de uma eliminatória europeia contra uma equipa modesta. O Jorge Castelo a falar sobre eles, bem… ‘o lateral direito é muito agressivo e rápido’, ‘dois centrais fortes no jogo aéreo, intransponíveis’, ‘o lateral esquerdo é o melhor deles todos’, ‘no meio-campo dois russos a jogar com qualidade’, e foi por ali fora. ‘Bem, mas nós vamos jogar contra o real Madrid, professor?’ (risos). 

Vítor Paneira em luta com Balakov num dérbi lisboeta @Getty /

zz: A primeira caderneta que temos com o Vítor é esta de 88/89, possivelmente já com o ‘7’ nas costas e ainda cara de menino.

VP: Pela imagem, diria que é o meu primeiro jogo. É em Portimão e jogo com o número ‘11’. Não havia nenhuma preparação, os fotógrafos apareciam e tiravam a foto para a caderneta. O Capela, o Nuno Ferrari, gente espetacular, de bom trato. Esta do Veloso, por exemplo, é tirada no nosso campo de treinos. A do Mozer também.

zz: Valoriza esta ‘memorabilia’ ou é mais a sua família que guarda estas coisas?

VP: Valorizo muito e guardo bastantes coisas. Eu tinha uma enorme amizade com o Nuno Ferrari, antigo fotógrafo d’A Bola, e ele estava sempre nos nossos treinos. Ele trazia-me imensas fotos de jogos e treinos, coisas muito bonitas de jogos nacionais e internacionais. Às vezes bate-me a nostalgia e gosto de rever tudo isso.

zz: Este senhor aqui, o Fernando Chalana, era um dos seus ídolos de infância.

VP: Os meus ídolos de infância foram o Chalana, o Carlos Manuel e o Diamantino. Conheci o Chalana na fase em que ele regressou ao Benfica. Houve um jogo em Braga, no final do campeonato, e o clube anunciou com pompa e circunstância esse regresso e um tal de Vítor Paneira (risos). Estava toda a gente entusiasmada com o Chalana, estamos a falar se calhar de uma das maiores referências do Benfica, logo a seguir ao Eusébio. Estive com ele dois anos. O Chalana já estava com algumas dificuldades, mas ainda fazia coisas incríveis e tinha uma humildade enorme. Foi um privilégio ter jogador com ele. Além disso, ele está ligado ao nascimento do meu filho Vitó. Nesse dia fomos jogar a Belém, ganhámos 1-0 e o golo foi marcado pelo Chalana. De penálti.

zz: Quando o Vítor era ainda juvenil e júnior, que jogos costumava ir ver?

VP: Ia ver todos os jogos do Famalicão. Sou famalicense. Mas lembro-me de ir ver um Vitória-Benfica, a Guimarães. Eu teria 13/14 anos, fui com um senhor amigo, e andei lá no meio com uma bandeirola do Benfica. Hoje era impossível. Não se passou nada, mas podia-me ter metido em problemas (risos). Também me recordo de ir ver os treinos da seleção a Guimarães, com esta equipa do Carlos Manuel, esta gente toda do Euro84. Há outra memória muito forte. O Benfica estagiava em Braga no Bom Jesus e num domingo de manhã o meu pai levou-me lá. Aquilo era uma romaria, mas os jogadores não andavam cá fora. E tenho bem presente a imagem do Moinhos estar à janela (risos). Vejam bem como eu era, a idolatria. Mas há uma ainda bem pior.

zz: Com o Benfica?

VP: Por acaso, não. Fui a Lisboa de automóvel, com a minha mulher, de repente olhei para o lado e estava o falecido Vítor Damas. ‘Ui, está ali o Damas, não pode ser ele. Não é possível’. E a minha mulher: ‘Não pode ser, porquê? Também não estás aqui’? Ele era uma grande personagem.

zz: Dizia-nos que os treinos do Benfica eram abertos aos adeptos. Qual era a pressão boa e má nessa abertura, que agora não existe?

VP: Só para o campo de treinos principal é que tínhamos um túnel de acesso, privado. Para os outros campos tínhamos de passar pelos meios dos sócios, atravessávamos a rua. Tinha coisas boas, principalmente antes daqueles jogos grandes. Havia muita, muita gente connosco, duas/três mil pessoas. Havia gente que fazia daquilo a sua vida. Passávamos por eles, incentivavam-nos. Mas depois, nos jogos maus… aquilo fazia-nos crescer, obrigava-nos a isso.

zz: O Vítor foi obrigado a crescer depressa.

VP: O Toni protegia-me muito. E eu fui percebendo essa proteção. Ele dizia-me que o primeiro jogo podia ditar a nossa carreira no Benfica. ‘Ou gostam de ti ou odeiam-te. Se te correr mal, dificilmente vais dar a volta’. Fomos empatar 2-2 a Espinho, empatámos 0-0 contra o Vitória de Guimarães e o Silvino defendeu um penálti. Eu estava a aquecer para entrar, estava todo o entusiasmado, ainda não tinha noção do que simbolizava jogar na Luz. Vi muita gente a cair ali. Não era fácil.

zz: Em off, o Vítor contou uma história impressionante sobre um colega seu e que simboliza bem a pressão de jogar na Luz.

VP: Só não vou mencionar o nome do atleta por respeito ao meu colega. Num jogo europeu de baixa dificuldade, o nosso treinador rodou a equipa e colocou um jogador que normalmente não atuava. Pediu para ser substituído, não conseguia fazer um passe. Nunca tinha visto uma coisa assim no futebol. Bloqueou. E acabou por morrer ali enquanto jogador do Benfica.

zz: E nos treinos esse jogador mostrava qualidade?

VP: Sim, tinha talento, qualidade. Mas chegou ali… a Luz tinha sempre muita gente na bancada, mesmo em jogos desses. Lembro-me que frente ao Riachense para a taça tivemos 47 mil pessoas no estádio.

zz: É o jogo dos seis golos do Ricky. O que correu mal com ele no Benfica?

VP: Lembro-me que fomos fazer uma pré-época aos EUA e de vê-lo a fazer uma lesão grave num sintético. Aquilo era mais alcatifa do que relva. Perdeu tempo com essa lesão. O Ricky era muito forte fisicamente, rápido, podia ter sido importante no Benfica. Mais tarde haveria de ser uma grande figura no Boavista.

«Fiz 15 golos no pelado mais pequenino da 2ª divisão e fui para o Benfica»

zz: A entrada do Vítor Paneira no Benfica, em 1987, é bastante estranha. Rara, pelo menos.

VP: Sim, os contornos são mesmo estranhos (risos). Acho que hoje não seria possível. Tudo começou num treino da seleção A. O Juca era o selecionador e o António Oliveira era o adjunto. A seleção veio ao Norte e fez um treino. Cada uma das equipas das 1ª e 2ª divisões enviava dois futebolistas e foram eles a formar esse conjunto adversário. O Braga mandava dois, o Porto dois, o Vitória dois… do Famalicão fui eu e o Ferrão. Ele até era mais promissor do que eu, era rápido, agressivo. Eu era o oposto: rápido, mas mais tecnicista. Eu acho que até fui mais a esse treino para apanhar uma camisola da seleção (risos). A verdade é que se lesionou um jogador do meio-campo e o Oliveira virou-se para o nosso banco: ‘Quem joga no meio-campo?’. Eles [os treinadores] nem sequer estavam documentados. E eu levantei o braço. ‘Aquece rápido e tal’. E lá fui.

zz: Correu bem o treino?

VP: Julgo que sim. Estava na bancada o Peres Bandeira, histórico observador do Benfica, que não perdia uma oportunidade para ver mais jogadores. Curiosamente, ele ficou sentado na bancada perto dos meus colegas do Famalicão. Bem, eu entrei e lá fui eu para cima. Ta, ta, ta, ta. E os meus colegas do Famalicão: ‘Ui, lá vai ele. Já vai começar’. O senhor Peres começou a ficar interessado. Eu lá comecei a entortar aquilo tudo e ele lá foi falar com os meus colegas. ‘Então, quem é este miúdo?’. E eles lá lhe terão respondido. ‘Este miúdo? Isto é o pão nosso de todos os dias, amigo. Vai rebentar com o treino todo’. E assim foi. O António Oliveira chamou-me e convocou-me para o Torneio de Toulon.

zz: Ainda como futebolista do Famalicão.

VP: Isso mesmo. Mas o Peres Bandeira já foi para Lisboa com essas informações. Eu tinha 20 anos, não era caro, jogava bem, já ia a uma seleção… e eu só tinha jogado nos juvenis e nos juniores. Entretanto, não cheguei a acordo para renovar com o Famalicão e surgiu o Vizela. Sinceramente, não sei se já combinado com o Benfica ou não. Isso foi a uma sexta-feira: o Vizela ofereceu-me o triplo que o Famalicão me dava e eu aceitei. Na segunda-feira a seguir, o Peres Bandeira telefonou para casa dos meus pais. Eu não estava, estava em casa da minha mulher, na altura minha namorada. O senhor Peres disse ao meu pai que voltaria a ligar às 20h30. E o meu pai ligou para mim. ‘Anda embora, era do Benfica e tal’.

zz: E o telefone lá voltou a tocar.

Vítor Paneira
5 títulos oficiais

VP: Aí já fui eu a atender. O senhor Peres apresentou-se, disse-me que o Benfica me queria contratar e eu, a medo, lá lhe disse que tinha chegado a acordo com o Vizela. ‘Não se preocupe, nós resolvemos isso, temos boas relações. Quer vir para o Benfica?’. E eu disse que sim, claro (risos). Eles ficaram de entrar em contacto comigo, nem sequer negociei valores, eu queria era ir para lá. Mas fiquei na dúvida: será que são as pessoas do Famalicão a gozar comigo? Passados uns dias fui a Vizela, receber as ‘luvas’ que estavam prometidas, e foi um dirigente de lá chamado Jorge Oliveira a dizer-me que sim, era verdade a história do Benfica. ‘Está tudo resolvido, vais ser jogador do Benfica, mas ficas cá um ano connosco emprestado’. Assinei com o Benfica antes de ir para Toulon. Dei lá nas vistas, voltei para fazer uma época no campo pelado mais pequenino da segunda divisão (risos), fiz 15 golos e no fim da época fui para o Benfica.

zz: Quem fazia parte dessa seleção que foi a Toulon? 

VP: O Pacheco, que também jogou comigo no Benfica. Estava no Portimonense. Passámos à segunda fase. Eu ia-me casar e se fossemos à final teria de adiar o casamento (risos). Já nem sabia bem o que queria. Julgo que estava lá o Augusto também, outro atleta do Portimonense. No primeiro jogo não entrei [Brasil], foram só as 'cobras' (risos). Depois joguei contra Itália, Bulgária e Inglaterra. 

zz: Os guarda-redes eram o Lopes e o Sérgio Louro. Depois estavam João Festas, Basílio, Eurico Santos, Marito, Soeiro, Nelo, Nelinho, Rui Neves e Chico Nelo, que diziam ter um talento descomunal. 

VP: Jogou comigo no Famalicão. Ele foi emprestado pelo FC Porto, chega lá e o primeiro jogador que encontra sou eu. Eu vinha a sair do balneário, ele estava com a malinha e pediu-me para ir falar com os treinadores. O Chico Nelo apresentou-se, um talento notável, belo pé esquerdo e lá foi ele. Uns anos depois, e essa é a história, apanhei-o num União da Madeira-Benfica. Estávamos a ganhar 5-1, faltavam poucos minutos e o Chico não dava a bola a ninguém. Eu fui ter com ele e disse-lhe: 'Chico, passa a bola, pá'. E ele, com a lata do costume, 'isto é para a estatística da posse de bola, Vítor' (risos). Nunca mais soube dele, ainda comeu muitas vezes em minha casa. 

zz: Restante lista: Jorge Ferreira, Rui Manuel, Júlio Sérgio, Reinaldo e Pacheco. Voltando ao Benfica. Como foi o primeiro dia no clube? Abrir a porta e ver lá o ídolo Chalana e todos os restantes monstros sagrados. 

VP: Intimidador. Era intimidador. A personalidade ideal era estar discreto e quietinho (risos). Isso é que era ter personalidade. Em maio de 1987 fui convocado para ir à Luz fazer uns treinos. Eu, o Tiano e o Vitinha, um jogador do Moreirense muito rápido e baixinho. Ficámos numa pensão, íamos de táxi para o estádio e equipávamo-nos no balneário adversário. Não tínhamos nenhum contacto com a equipa. Só os víamos à ida para o treino. Só monstros ali à nossa frente. Envergonhadinhos, lá fomos. Corremos dez minutos à volta do campo, o treinador era o John Mortimore. Passados uns dez minutos, começámos a ouvir isto: 'ó John, ó John! Acaba com esta m****, pá', mas com mais palavrões. 'Ui, falam assim para o treinador?', pensei eu. Depois fizemos lá uns treininhos, vim-me embora, fiquei no Vizela uma época e o senhor Peres Bandeira acompanhou-me sempre. 'Olhem, mais um golo do menino. Olhem o menino'. E tive a felicidade depois de ter o mister Toni a apostar em mim. Fui ganhar 350 contos para o Benfica, tinha de pagar casa porque não me deram uma e as casas já não eram baratas. Tinha de gerir todas as despesas, outros colegas tinham casa do clube, mas era o querer ir para o Benfica. Isso valia mais do que tudo. E o Toni não me deixou sair, mesmo quando um clube português me ofereceu 1000 contos/mês. 'Podem levar todos, menos o Vítor'. 

«A maior deceção que tive com um treinador foi com o Artur Jorge»

zz: Como é que um futebolista com o seu peso, bem ilustrado em números, sai do Benfica com apenas 29 anos? 

VP: Eu estava para renovar por três anos, ainda com o presidente Manuel Damásio e o Artur Jorge como treinador. Entretanto, o Artur quis fazer a sua revolução em 1995 e a verdade é que foi despedido ao final da terceira jornada. Eu estava no Vitória e fomos empatar 1-1 à Luz. 'Despedi' três ou quatro treinadores no Benfica: o Autuori, o Manuel José e o Artur Jorge (risos). Saí-lhes caro. 

zz: O Artur Jorge tinha criado a expressão «limpeza de balneário» no FC Porto. 

VP: A deles nasceu na Madeira, quando o Fernando Gomes entrou em choque com o Octávio e foi dispensado. 

zz: O Artur tentou replicar isso no Benfica? 

VP: A intenção era quebrar ali um pouco com os jogadores que tinham peso e mística no Benfica. Tentar uma versão nova do Benfica, um Benfica diferente. Julgo que era isso. Acho que vou dizê-lo publicamente pela primeira vez: a maior deceção que tive com um treinador foi com o Artur Jorge. E foi meu treinador na seleção, joguei sempre com ele, mesmo na época em que fui dispensado fiz 26 jogos a titular. Foi uma iniciativa do clube. Dispensaram Isaías, Vítor Paneira, William, Neno, Paulo Madeira, foi uma limpeza de gente com seis/sete anos de Benfica. E o Benfica entrou num deserto de 11 anos sem ganhar nada. Foi a pior fase da história do clube, não sei se por causa dessas decisões. Que está tudo ligado, sim. Essa equipa segurava o balneário e foi partida. Claro que o Benfica continuou a ganhar mesmo depois do Eusébio, não ficou mal só com a saída do Paneira. Mas foram muitos jogadores. 

zz: O Vitória foi o único interessado nessa altura? 

VP: Houve uma série de clubes interessados. Tive várias opções e escolhi o Vitória. Saí muito fragilizado do Benfica, mexeu bastante comigo. Era o que eu queria, toda a vida, e tive de sair de lá aos 29 anos. Mas tive sempre uma réstia de esperança de regressar, não sei porquê. Tive uns pequenos problemas logo na primeira época do Vitória, até deixei de jogar. Entrei bem, depois tive uma quebra. Estamos a falar de estruturas e dimensões diferentes [entre Benfica e Vitória], e quebrei. O Jaime Pacheco entrou em dezembro, depois de o Vítor Oliveira sair e o Manuel Machado fazer uns jogos de transição. O Vítor era um grande homem. Nem convocado fui na fase do Manuel Machado. 

zz: Mas as coisas melhoraram com o Jaime Pacheco. 

VP: Ele chegou e disse: 'comigo, tens de jogar'. Assim foi. Nessa época ainda fui ao Europeu e acabei a ser considerado um dos melhores do campeonato. Em Guimarães desfrutei do jogo, do futebol, a jogar em zonas mais interiores. Vivia perto, estabilizei a todos os níveis e vivi grandes momentos no Vitória. Sentia prazer e a equipa acompanhava-me. Tinha um papel diferente, geria os tempos do jogo, era um 'box to box', um '8' organizador. Gostava de jogar nessas funções. Embora o Eriksson, uma vez, tenha dito que eu ia acabar a carreira a jogar a defesa central no Benfica (risos). 

zz: O Vítor Paneira a defesa central? Não é fácil imaginar. 

VP: Dizia que eu ia ser o líbero do Benfica, como o Franco Baresi. Ele também não era muito alto e rápido, mas lia o jogo como poucos e posicionava-se bem. O Eriksson achava que eu podia ser «o Baresi do Benfica». 

Portugal

Vítor Paneira

NomeVítor Manuel da Costa Araújo

Nascimento/Idade1966-02-16(57 anos)

Nacionalidade

Portugal

Portugal

PosiçãoMédio (Médio Direito) / Avançado (Extremo Direito)

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