T3, Ep. 6 | «Tinha o dom de marcar ao Benfica»

2 horas atrás 19

O futebol é muitas vezes um elemento de memória coletiva de uma família, de um país, do Mundo. É por isso que o zerozero, em associação com Rui Miguel Tovar, criou o DESTINO: SAUDADE. Este é um espaço onde vamos recordar histórias e momentos do desporto que nos apaixona. Haverá tempo também para lembrar jogadores de outros tempos, aqueles que nos encantaram e que nos fizeram sonhar.

Campeão nacional no Sporting em 2000, lateral marcante no Vitória SC dos anos 90, reforço do Benfica em 2001. Quim Berto, o «Mosquito» celebrizado pelo saudoso Marinho Peres, é o convidado especial deste DESTINO: SAUDADE no zerozero. 

Dos dias de trabalho numa fábrica de têxteis, ao topo do futebol nacional, sempre rodeado de personagens maiúsculas do futebol nacional. Em Alvalade, aperfeiçoou a arte do livre direto e adquiriu o hábito de marcar ao... Benfica. 

Peter Schmeichel, mediático colega de equipa, perseguiu-o certo dia até ao balneário e a cena acabou com uma ameaça meio a sério-meio a brincar. «Never do that again!» 

Esta é a PARTE I de uma visita bem humorada do lateral que pesava 57 quilos e vestia camisolas XXL. O «Mosquito» de seu Marinho. 

[A PARTE 2 DA ENTREVISTA DE QUIM BERTO SERÁ PUBLICADA ÀS 15 HORAS]

zerozero – O Quim Berto é uma figura histórica do Vitória e titular nas melhores equipas do clube nos anos 90. Fez lá a formação, mas já não estava em Guimarães no ano do título nacional de juniores.

Quim Berto –

É verdade, nesse ano estava emprestado ao Benfica Castelo Branco. Fazia sete horas de camioneta, 300 quilómetros. Não tinha carta de condução, nunca tinha saído da minha cidade. Já havia um leque de jogadores sinalizados pelo Vitória para assinar contrato profissional e eu não era um deles. Entretanto, num jogo da segunda fase do Nacional de Juniores, o dr. Pimenta Machado viu-me a fazer dois golos, desceu e falou diretamente com o professor Manuel Machado. Disse-lhe que queria formalizar contrato comigo, um menino que ainda trabalhava durante o dia para ajudar a família. Esse era o sustento de todos nós.

zz – Deixou de trabalhar nessa altura?

QB – Sim, foi uma alegria enormíssima. Além de ter deixado de trabalhar, que era aquilo que eu queria, pude seguir a minha carreira como futebolista. Tive essa oportunidade dada pelo doutor Pimenta Machado, que teve a visão de olhar para mim com olhos de ver. Um menino com cinquenta e tal quilos (risos). Olhou para ele e disse ‘há algo que eu vejo aqui e que ninguém está a ver’. Deu-me essa oportunidade e eu felizmente assinei contrato profissional pelo Vitória nesse ano de 1990.

zz – Quando o Vitória foi campeão de juniores, o destaque era o Geani. Ainda foi seu colega de equipa.

QB - Sim, o Geani foi meu colega, mas era mais novo. Ele estava a jogar um patamar acima. Era juvenil e já jogava nos juniores e a geração dele acabou por ser campeã de sub19. Um ou dois anos depois de já estarmos a jogar nos seniores. Eu já estava em Castelo Branco.

zz – Como era o ambiente na formação do Vitória nessa altura? Foi o primeiro clube a ter uma academia em Portugal. Viviam mesmo lá, tomavam lá o pequeno-almoço?

QB – Não, não tínhamos essas regalias. Mesmo nos seniores, não tomávamos lá o pequeno-almoço, não almoçávamos. Nós entrávamos à hora que devíamos entrar, para o treino, e depois do treino acabar cada um ia para as suas casas. Não havia essas mordomias todas, mas não me queixo rigorosamente de nada porque o Vitória já nos dava excelentes condições naquela altura.

zz – Mas o futebol mudou.

QB – Mudou. É claro que os jogadores hoje têm condições que no passado não tínhamos.

zz – O Quim Berto estava a dizer que trabalhava quando jogava nos juniores do Vitória. Que profissão tinha?

QB – Olhe, foram quatro anos de aprendizagem e quatro anos de vida que não foram desaproveitados. Comecei a trabalhar com 14 anos, porque era de uma família numerosa, com cinco irmãos. O meu pai e a minha mãe trabalhavam muito, os meus irmãos também, para que não nos faltasse nada. Os estudos não eram obrigatórios e a dada altura tive de optar: ou estudava, ou contribuía com dinheiro para casa.

zz – E foi trabalhar.

QB – Exatamente, a maior necessidade era levar dinheiro para casa. Houve essa possibilidade e encarei-a como um objetivo de vida. Trabalhei numa fábrica de têxteis, primeiro a aspirar com um robô. Aspirava a fábrica toda. Depois passei a ser marcador de malha. Fiz dois anos no turno normal e depois passei a trabalhar das seis da manhã às duas da tarde. No início fazia das oito ao meio-dia e das duas às sete da tarde. Ia a correr para chegar a tempo ao treino.

zz – A vida era muito diferente.

QB - Completamente diferente, porque nós tínhamos mesmo de nos fazer à vida. E depois havia um objetivo muito claro na minha consciência, que era ser jogador de futebol. E essa oportunidade eu tinha de agarrar. A minha maior alegria foi chegar à fábrica e comunicar que me ia despedir, que ia dar aqueles dois meses - para não faltarem com os meus direitos, que eles faziam falta -, e foi uma alegria, não só para mim, para a minha pessoa, como para todos os outros meus colegas que trabalhavam comigo.

«O Schmeichel? Vi aquele grandalhão a vir direto a mim...»

zz – Temos aqui duas camisolas suas. Uma do Vitória e uma do Sporting.

QB – Ficavam-me larguinhas (risos). A do Vitória era XXL, não havia S’s, M’s, L’s, era tudo a mesma medida. Eram de manga curta, mas a mim ficavam de manga comprida. E nos calções tinha de dar quatro ou cinco dobras, mas era o que era.

zz – Hoje é tudo slim fit.

QB - Tudo à medida, as camisolas apertadinhas ali ao corpo. O futebolista até se sente outro tipo de jogador. Mas era o que havia na altura, e nós tínhamos de sujeitar-nos. Nós o que queríamos era uma camisola para jogar. Desde que fosse do 1 ao 11, para mim estava sempre bom.

zz – Costumava ir ver o Vitória ao estádio quando era miúdo?

QB – Claro, sempre. Recordo aquela equipa maravilhosa, com o trio de ataque formado por Roldão, Ademir e Paulinho Cascavel. Nunca tive a oportunidade de jogar com ou contra o Paulinho Cascavel, mas hoje tenho o prazer de dizer que jogo com ele nos veteranos do Vitória, sempre que ele vem cá. Porque ele passa praticamente a época toda no Brasil. Eu era miúdo e ia ao estádio ver aquela famosa equipa, aquela equipa do Marinho Peres. Jesus na baliza; Costeado, Nené, Miguel e Carvalho; Ndinga Nascimento, Ademir, Roldão e Paulinho Cascavel. Falta aqui um…

zz – Caio Júnior, talvez?

QB – O Caio era mais suplente nesse ano [Chegou apenas na época seguinte, na verdade]. Ah, faltava-me o Adão.

zz – O Quim Berto era especialista nas bolas paradas.

QB – Gostava muito de correr e de marcar livres (risos). E cruzava bem. Eu hoje, enquanto treinador, prefiro que um lateral vá lá poucas vezes e, nas poucas vezes que lá vai, o faça com critério.

zz – Há uma época no Varzim com dez golos e uma no Vitória com cinco. E aqui nos registos temos quatro golos marcados ao Benfica.

QB – Ao Benfica era sempre. Tinha o dom de marcar ao Benfica.

zz – Porquê?

QB – Era coincidência, saía-me tudo bem. Lembro-me de um célebre jogo na Luz, o Artur Jorge era o deles, se não me engano, e ganhámos lá 3 a 1. O Vitória era treinado pelo Quinito, e eu fiz um golo de livre. O Benfica naquela altura tinha um guarda-redes que tinha sido considerado o melhor do mundo, o Michel PreudHomme.

zz – Temos aqui quatro golos ao Benfica nos nossos registos.

QB – Dois de penálti e dois de livre. Um deles num jogo realizado em Campo Maior, um golo meu e outro do Vítor Paneira. E pelo Varzim numa vitória por 2-1, de penálti. Estava o Moreira na baliza e o Jesualdo era o treinador do Benfica. Foi-se embora duas semanas depois. Ao FC Porto nunca marquei e ao Sporting marquei uma vez. Em Alvalade, ao De Wilde. Estávamos a ganhar 0-1 e perdemos 4-1

zz – Batia os livres mais em força ou em jeito?

QB - Era sempre em jeito, com a parte de dentro do pé. Nós sabemos que temos ali uma barreira e a bola tem de fazer o arco e baixar. Às vezes o treino acabava, os meus colegas iam embora e eu ficava a bater livres. Às vezes sozinho, sem guarda-redes, metia um colete ‘onde a coruja dorme’ de um lado e do outro, e batia para ali a bola. Metia só a barreira e aquele era o objetivo. Tínhamos de meter ali a bola. Depois até tenho uma passagem com um especialista de grande renome, que era o André Cruz, no Sporting.

zz – Que colegas apanhou a bater bem os livres diretos?

QB - O melhor que eu apanhei foi o André. O André era impressionante com o pé esquerdo. Mas o André era com a parte dentro e com a parte fora do pé. Dava-lhe bem de qualquer maneira. No meu tempo no Sporting, não era fácil ser eu a marcar livres.  Tendo o André Cruz dentro do campo, vais fazer o quê?

zz – Ele nunca lhe passou a vez?

QB - Acho que das poucas vezes que o fez, porque o André realmente era fantástico a bater, foi num jogo em Faro. Estava o André e eu para bater o livre, e fui eu que o bati. Por acaso o guarda-redes fez uma grande defesa. Eu tenho isso até nos meus melhores momentos, no DVD clássico (risos). Eu já tinha o dom para bater bolas paradas, mas ainda me aperfeiçoei com a vinda do André. Vou contar até um episódio fantástico, porque isto é bonito.

zz – Ainda no Sporting?

QB – Isso, com o Schmeichel na baliza. O Schmeichel não gostava de ter bolas dentro da baliza, tirava-as sempre. A primeira coisa que ele fazia era tirar as bolas da baliza. E um dia apanhou o André e o Quim Berto num dia inspirado.

zz – A treinar livres?

QB – Sim (risos). Lembro-me que comecei eu a bater do lado direito e o André do lado esquerdo. O Schmeichel na baliza, a primeira bola passou por cima da barreira e… saco! O Schmeichel começou logo a falar sozinho. Eu disse logo não ia acabar bem. Do outro lado o André... saco! E o Schmeichel começou outra vez a falar sozinho. No segundo livre, ele meteu-se mais para o meio. Quando ele estava ali assim, eu fui bater e meti a bola do lado dele. Ele olhou para mim, eu virei costas e, quando dei por ela, vi aquele grandalhão a vir direto a mim (risos). Pernas para que te quero! Ainda bem que eu era mais rápido do que ele.

zz – O Schmeichel a perseguir o Quim Berto.

QB - Claro, e só parei no balneário porque ele ficou com uma azia do c******. Mas são aquelas brincadeiras que o Schmeichel tinha na altura. É engraçado, porque depois chegou ao balneário, com aquela mão assim, bateu-me na cabeça e disse em inglês: ‘Nunca mais faças isso!’.

«'Não te vou chamar mais Quim Berto, agora és o Mosquito'»

zz – O Vitória nesses anos 90 era o quarto maior de Portugal?

QB - Em número de adeptos, o Vitória foi sempre o quarto maior clube. Este ano as médias rondam os 20 mil espetadores no estádio. Mais ninguém consegue isto, além dos três grandes. Agora, nós éramos o quarto maior clube, porque realmente o Vitória era muito respeitado em campo, as equipas jogavam sempre na retranca contra o Vitória, porque onde entrássemos íamos para ganhar, sem dúvida.

zz – As coisas mudaram muito, o sucesso desportivo tem sido irregular.

QB - Com todas estas mudanças, com a saída do Pimenta Machado, estabilizar o clube não é fácil e nos próximos tempos não vai ser fácil. A grande diferença é que o António Salvador deu essa estabilidade ao SC Braga. Já estamos bastante distantes deles na organização, o que é o clube e quais são os objetivos desportivos, porque não podemos agora estar a comparar uma coisa com a outra. Tenho de dar os parabéns ao presidente Salvador, porque fez crescer muito o clube nos últimos 20 anos. Tem faltado essa estabilidade diretiva ao Vitória.

zz – A melhor época em Guimarães acabou com um quarto lugar em 94/95. Nos dois anos seguintes acabaram na quinta posição. Quão especial era o Quinito?

QB – Ele era conhecido pelo ‘Velho do Rio’. Na altura dava uma telenovela chamava ‘Pantanal’ e uma das personagens tinha esse nome. Por causa das barbas. O Quinito tinha um dom com ele de saber lidar com os jogadores, mas também tinha um homem atrás dele, que era o braço direito dele, e que era muito importante nas escolhas, no projeto, nas equipas e na forma do Quinito liderar. Chamava-se Manuel Ribeiro e foi dos melhores adjuntos, dos melhores treinadores e dos melhores homens com quem trabalhei. Mantenho uma grande amizade com ele.

zz – No Vitória, as coisas correram-lhe bem. A si e ao Quinito.

QB - Ele chega ao Vitória e diz-me assim: ‘Eu sou o fulano, sou o tipo de treinador assim, assim e assim, e quando escolho um '11', para mim é esse '11' e vamos com esse '11' até ao fim. Nós começámos a olhar uns para os outros. ‘Os que ficarem no '11', esses vão estar porreirinhos, porque joguem mal, joguem bem, vão até ao fim’. Ele disse mesmo assim. Vinha ainda com aquela cultura do ‘Gomes e mais dez’, do FC Porto.

zz – E como se muda isso?

QB – Têm de ser os jogadores a mudar, o plantel. Tivemos de mudar o chip ao Quinito e isso aconteceu. Começámos a olhar desconfiados uns para os outros e conseguimos fazer isso. Tínhamos um grande plantel.

zz – Pedro Martins, Pedro Barbosa, Zahovic.

QB – E tínhamos o Dane, um dos melhores jogadores que vi. Era um craque e teve o infortúnio de se aleijar contra o FC Porto, numa porrada do Aloísio. Teve uma rotura de ligamentos total, entrou numa fase descendente e nunca mais foi o mesmo. Mas até aí era um monstro a jogar futebol.

zz – E o Ziad?

QB – Internacional tunisino, era um ‘9’ mesmo, era só cruzar para ele, porque na área ele sabia tudo, movimentava-se bem e era forte no jogo aéreo.

zz – E o N’Dinga, que tal?

QB - Era o nosso capitão. É um ícone de Guimarães, é um símbolo, é um capitão e eu fui substituir esse mesmo capitão, porque o N’Dinga era um jogador fabuloso. Cresci muito, de Castelo Branco a esse Vitória. Sabem quantas vezes fui o 17º no meu primeiro ano em Castelo Branco, na altura na II Liga? O mister Bernardino Pedroto deixou-me 17 vezes de fora. Convocava-me e eu ia para a bancada. A vítima era o miúdo, era o mais fácil. Só nos últimos cinco jogos é que comecei a jogar e a minha vida mudou. Depois fui o melhor lateral da II Liga e voltei ao Vitória.

zz – Com o Marinho Peres.

QB – Foi ele que me batizou como «Mosquito» (risos). Na pré-época, eu a pesar 57 quilos. ‘Que porra é essa? Não te vou chamar mais Quim Berto, agora és o Mosquito’ (risos). Ele podia chamar-me o que quisesse, eu queria era jogar e estar lá dentro. E fui titular logo no primeiro jogo do campeonato, contra o Beira-Mar. O Marinho, quando ele diz o meu nome… ‘O Mosquitinho na lateral direita’. Eu a passar à frente do Nando e do Basílio, dois históricos. Fui o melhor em campo, mas logo no fim desse jogo tive de ir para a tropa. Eu e o Pedro Barbosa. O Pedro já estava com o cabelo rapado e tudo. Acabou o jogo e alguém do Vitória foi-me levar a Lisboa. Neste caso, ao quartel da Carregueira, em Sintra. Mesmo assim fiz 25 jogos.

zz – Quem é que o passou para lateral esquerdo?

QB – Foi o Quinito. Eu fiz a minha carreira quase toda depois nessa posição. Tornei-me um titular indiscutível no Vitória, até sair para o Sporting em 1997.

zz – E sempre com o mesmo peso?

QB – Acho que o máximo que atingi foi 61 ou 62 quilos. Hoje não ando longe, estou nos 67. Ainda faço a diferença nos veteranos do Vitória (risos). Também jogam lá o Miguel, o Soeiro, o Madureira que é o guarda-redes, o falecido Carvalho também jogava connosco. tenho um orgulho enorme. Dá-me um grande prazer vestir aquela camisola, a camisola do Vitória, ao serviço dos veteranos. É um orgulho gigante, levo aquilo muito a sério e consigo matar as saudades.

[A PARTE 2 DA ENTREVISTA DE QUIM BERTO SERÁ PUBLICADA ÀS 15 HORAS]


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