Tom Holland. ‘Para Roma, a paz é um estado mantido pelo monopólio da violência’

4 meses atrás 70

É um dos mais populares e respeitados historiadores da Roma Antiga. A propósito do seu novo livro, Pax, fala-nos sobre a Idade de Ouro do império, um período rico em conspirações, revoltas e banhos de sangue.

A década e meia que antecede o ano 80 da nossa era foi rica em acontecimentos prodigiosos: o grande incêndio de Roma, em 64; a morte de Nero, em 68; a guerra civil que levou a uma rápida sucessão de quatro imperadores em 69; a conquista de Jerusalém por Tito, em 70; a erupção do Vesúvio, em 79; e a inauguração do Coliseu de Roma, em 80. Seguiu-se um período de relativa acalmia – para os padrões romanos, claro – com revoltas ocasionais despontando num pano de fundo de estabilidade.

Tom Holland, que há cerca de 20 anos iniciou a sua marcha triunfal pela História de Roma com Rubicão – O triunfo e a tragédia da República Romana (ed. Alêtheia), dá-nos agora Pax – Guerra E Paz na Idade de Ouro de Roma (ed. Vogais), onde descreve esses anos de consolidação do império, entre Nero e Adriano.

Em conversa por Zoom a partir de Londres, o popular historiador falou sobre imperadores traídos, legiões implacáveis, espetáculos de gladiadores e uma riqueza como o mundo nunca tinha visto.

Este seu livro sobre a idade de ouro de Roma começa com as exéquias fúnebres de Popeia Sabina, a mulher de Nero. Muitos de nós vemos Nero como um símbolo de decadência, não como iniciador de uma era dourada. Esta perceção popular de Nero como um imperador decadente deve ser revista?

Alguém que acaba derrubado por um golpe e obrigado a suicidar-se é claramente um fracasso como imperador. A grande desgraça de Nero, penso, foi ter apelado diretamente às massas sem ligar às elites tradicionais. E são as elites tradicionais que escrevem a História, logo as opiniões sobre ele vão ser sempre muito, muito negativas. Além disso, perseguiu e mandou executar cristãos – e os cristãos também acabaram por escrever a história [risos]. Ninguém desejaria ter contra si uma combinação de Tácito com o Novo Testamento. Mas, independentemente disso, ele era claramente uma pessoa monstruosa. Sobre isso não há qualquer dúvida. Outra razão para começar a minha narrativa com ele foi que, em certo sentido, a época de ouro se caracteriza pela capacidade dos imperadores assegurarem uma sucessão efetiva. Um dos problemas que Nero enfrenta é precisamente não o conseguir fazer, porque eliminou todos os seus parentes. Possivelmente Popeia incluída, isto se os boatos que circulavam eram verdadeiros. Nero é o último da linhagem de Augusto a morrer, depois dele não resta nenhum descendente direto de Augusto, o grande fundador do sistema imperial, um homem cujo sangue tinha um toque divino. Quando Nero desaparece e essa linhagem acaba, coloca-se a questão do que virá a seguir. O resultado disso é um ano de guerra civil. Mas há outra consequência: o fim da linhagem de Augusto significa que a experiência e o talento passam a pesar mais na escolha do imperador, o que já se verifica com Nerva, Trajano e Adriano. As épocas de ouro emergem frequentemente de períodos de crise. E este é um exemplo clássico disso.

Fez-me confusão que o imperador de Roma – estou a pensar em Nero, mas também em Galba, Vitélio e Domiciano – pudesse ser tão facilmente derrubado e, nalguns casos, morto. Não era suposto o César ser uma figura de certo modo sagrada, um pouco como o faraó? Alguém para quem quase não se podia olhar de frente, quanto mais tocar ou ameaçar…

Um imperador que descendesse de Augusto talvez pudesse reivindicar essa natureza divina. Mas daí em diante já não. E mesmo no caso de Augusto e dos seus herdeiros é precisamente por eles não serem reis ou faraós que a sucessão é sempre tão tensa e problemática. Governam o que supostamente continua a ser uma República. E portanto há esta sensação de haver um cuco de autocracia no ninho de um sistema republicano. Tibério, que era um general brilhante e salvou Roma por duas vezes, disse que ser imperador de Roma era como cavalgar um lobo segurando-o pelas orelhas. A qualquer momento ele podia atirar-nos ao chão e devorar-nos. É uma tarefa muito, muito dura. A morte de Nero mostra que, em última análise, Roma é uma autocracia militar e que um imperador que governe sem o apoio dos militares não tem qualquer hipótese de sucesso. A seguir à morte de Nero, há quatro imperadores sucessivos que lutam para obter o poder, e o elemento determinante é o sucesso militar. Nero não conseguiu manter os militares do seu lado. E por isso foi atirado borda fora. Em vários sentidos, isso também se aplica a Galba e Vitélio. Ser imperador é um cargo incrivelmente duro e difícil. E paga-se o insucesso com a vida.

O facto de não existir um exército unificado, mas apenas legiões, cada uma com o seu chefe, poderá ter contribuído para essa instabilidade e lutas pelo poder?

Quando não há um candidato óbvio à sucessão, esse é claramente o caso. É isso que 69 AD [o ano dos quatro imperadores] demonstra. Numa situação em que não é claro quem deve ser o legítimo governante, a resposta é: ‘o que for mais forte’. E por isso dá-se especial importância a quem comande o melhor exército.

É a lei do mais forte.

Em sentido inverso, antes do ano 69 vive-se um período de paz de cerca de um século, e depois de 69 a mesma coisa, durante um século e meio. Claro que há revoltas, motins pontuais, ‘operações militares especiais’, como diria Vladimir Putin. Mas, em geral, o império mantém-se em paz. Esses exércitos, num período de crise, podem ser letais. Mas também servem de garante de paz numa escala a que nunca antes se tinha assistido.

Por falar em paz, à medida que ia lendo no seu livro esta sucessão de traições, revoltas, cercos, massacres pensei se o título não seria uma espécie de trocadilho ou de brincadeira.

Sim, é. Há muita guerra para um livro que se chama Pax, mas, como espero ter conseguido demonstrar, a palavra latina para paz é muito mais ‘ativa’ do que nas nossas línguas atuais. Poderia traduzir-se também por ‘pacificação’. É algo que se impõe, algo que se defende com a ponta da espada. Os primeiros capítulos estão cheios de derramamento de sangue não apenas por causa da guerra civil em curso, mas também devido à repressão da rebelião na Judeia. O castigo para os rebeldes é mortífero: se insistires, acabarás por perder as tuas metrópoles, os teus templos serão queimados, o teu povo será escravizado. Essa é outra lição a retirar. Para Roma, a paz é um estado mantido pelo monopólio da violência.

Uma espécie de paz putinista?

Suponho que sim. Com a diferença de que as coisas não estão a correr a Putin como ele gostaria.

Falou da rebelião na Judeia. Durante este período assistimos a vários levantamentos em diferentes partes do império. As províncias não sentiam que era um privilégio pertencer ao Império Romano?

Penso que sim.

Porque isso dava-lhes acesso a melhores estradas, a melhores edifícios, a produtos mais requintados.

Certo. As pessoas têm consciência de que o império romano, mesmo sendo mantido coeso pela violência – e isso é algo que eu nunca menosprezaria –, gera riqueza numa escala que nunca se viu antes e que, segundo algumas estimativas, não voltaria a ser vista até ao século XVII. E a razão para isso é que Roma é um vasto mercado único, que se estende por todo o Mediterrâneo. Isso significa que existe um único poder que controla as rotas de navegação e que assegura o transporte terrestre. Claro que há bandidos ocasionais, mas se forem apanhados são crucificados. A pirataria foi eficientemente varrida dos mares. Os mercadores podem viajar de um extremo para o outro do Mediterrâneo e sabem que as leis que se aplicam de um lado também se aplicam do outro, que as molduras administrativas são as mesmas, que há um entendimento uníco e coerente do direito comercial. E a consequência disso é que as pessoas se podem especializar. O Egito pode especializar-se na produção de papiros, a baía de Nápoles pode especializar-se na produção de um molho de peixe repugnante… [risos]

O garum.

E essa especialização inevitavelmente gera maior riqueza. Acho que as pessoas começam a apreciar isso, o que se vê logo em 69 AD, quando povos condenados por Vespasiano e pelos Flávios como rebeldes contra Roma, afinal são apenas gauleses que reivindicam o manto da romanitas, de serem romanos. É uma transformação espantosa que se deu no espaço de um século. As elites da Gália, que foi conquistada por Júlio César, agora dizem-se descendentes de César e alegam serem mais romanas do que os romanos de Roma. E no final deste período, com Adriano, não apenas os falantes de grego se identificarem como romanos, como o próprio imperador faz um enorme investimento de tempo, de prestígio e de riqueza a promover um sentimento de orgulho grego.

Durante este período – de Nero a Adriano – as fronteiras do império mantêm-se estáveis ou existem flutuações?

Existem flutuações. Há duas tentativas óbvias de anexação territorial, uma resulta e outra não. A que não resulta é a tentativa de conquistar toda a Grã-Bretanha. A província da Britânia tem um governador muito capaz, chamado Agricola, que força a conquista até lá acima às regiões selvagens do que é hoje a Escócia. Os legionários montam um gigantesco forte não muito longe da atual Perth, ou seja, a norte de Edimburgo. Mas só lá ficam durante cinco anos. Registam-se grandes problemas no Danúbio, que é muito mais importante, e a Escócia é sacrificada para reforçar a fronteira nos Balcãs. Tudo isto se passa no tempo de Domiciano. Quando Domiciano morre e lhe sucede Trajano há uma concentração enorme de homens nas margens do Danúbio. E do lado de lá, a Norte, encontra-se o reino riquíssimo e agressivo dos Dácios, que tantos problemas tinha causado durante o reinado de Domiciano. Trajano conquista-o, o que exige um esforço enorme. Isto faz com que o povo sinta que Roma ainda é Roma, que é digna dos seus antepassados, que continua a conquistar os povos bárbaros. A Dácia é tão rica que Trajano traz enormes despojos de guerra, que gasta a embelezar Roma, manda construir enormes termas e centros comerciais. Ao mesmo tempo que sentem que ainda possuem a sua velha veia marcial, os romanos sentem que são a capital da potência mais rica que alguma vez existiu. Têm direito à sua fatia do bolo e estão a comê-la. A Trácia mantém-se parte do Império Romano durante um período bastante razoável. A outra aventura em que Trajano se mete é a conquista do Iraque. E isso nunca é boa ideia…

O dinheiro tinha uma importância enorme na sociedade romana. E parece-me revelador que os romanos desprezassem os mendigos e os falhados, que curiosamente é o tipo de pessoas que o Cristianismo vai defender. Será exagerado falar-se de um capitalismo implacável no Império Romano?

Implacável é. Mas não é capitalismo no sentido em que não há mercados de capitais, bolsas de valores e por aí fora. Estes são uma invenção dos holandeses no século XVII – obviamente com muita ajuda dos judeus portugueses. Nesse sentido, a economia romana não é capitalista. Penso que seria mais adequado dizer que se trata de uma meritocracia implacável. Uma das vantagens do entendimento romano do estatuto é que há sempre alguém para quem se pode olhar de cima para baixo. Os senadores tinham abaixo de si os equites [cavaleiros], os equites tinham abaixo de si os decuriões regionais, epor aí fora. Mesmo na base da escala social, os trabalhadores à jorna, que eram livres, podiam olhar de alto para os escravos. E, ao contrário do que acontecia com os escravos das plantações nas Caraíbas ou nos Estados Unidos em períodos mais recentes, os escravos nem sempre tinham espaço no mercado. Cria-se a noção de que os escravos existem para respaldar o estatuto dos muito ricos. Por isso aparece todo o tipo de tarefas loucas.

Os escravos também são muito especializados, não é?

Quando se tem alguém para segurar no pénis enquanto fazemos um chichi… [risos] Mas mesmo para os muito pobres, saberem que não são escravos dá-lhes uma dignidade que de outro modo não teriam. Há sempre uma certa dose de desprezo em cada classe social para com aqueles que se encontram abaixo. Claro que o Cristianismo subverte isso completamente.

Santo Agostinho conta a história de um cristão chamado Alípio que é levado relutantemente para o anfiteatro pelos amigos para assistir a um combate de gladiadores.

Arrastam-no, não é?

Exatamente! De início ele recusa-se a olhar para a arena, mas por fim lá espreita um pouco… e acaba por ficar viciado. O gosto por este desporto sangrento era universal ou havia pessoas a quem repugnava?

Há pessoas que o desprezam, da mesma forma que um intelectual hoje pode achar que é uma perda de tempo ver um jogo de futebol. Mas julgo que a obsessão com os jogos é praticamente universal. Especialmente em Roma. Ter ‘bilhetes’ para o Coliseu é uma parte muito importante da vida de um cidadão. Os jogos servem para manter o povo satisfeito. Pão e circo. Mas com Tito, que inaugura o Coliseu, tem ao mesmo tempo muito de ideológico. É um processo de expiação, julgo, por uma série de calamidades que assolaram Roma. Estou a falar dos dois incêndios, numa década, que reduziram a cinzas o templo de Júpiter no Capitólio, uma peste e, claro, a erupção do Vesúvio. Isso levou à sensação de que os deuses tinham de ser apaziguados. A ideia de que os combates de gladiadores podia aplacar os espíritos inquietos dos mortos é muito, muito antiga.

Estamos a falar de uma espécie de sacrifício humano?

Uma espécie, sim. Essa maneira antiga de ver as coisas não tinha desaparecido completamente. Mas o Coliseu é ao mesmo tempo uma afirmação do tipo de regime que Tito quer, porque é construído em cima do grande lago ornamental que Nero tinha feito. É um repúdio muito contundente do regime de Nero, mas também é uma declaração de ordem. Porque cada pessoa tem o seu lugar, cada um sabe onde se deve sentar. A ideia de censo muito importante para os romanos. E há a sensação de que o Coliseu é um censo de pedra. As pessoas vão lá e sabem que estão no lugar certo. E se estão no lugar certo, a ordem é mantida e os deuses, esperamos nós, estão satisfeitos. O Coliseu tem muito que se lhe diga. Obviamente o entusiasmo é muito importante, mas não é tudo. Não é só o equivalente da final da Liga dos Campeões. Há várias questões morais, teológicas, antiquárias relacionadas com isto.

No Norte de Inglaterra existem ainda várias secções da Muralha de Adriano. A sul ficava o império e a norte ficavam os bárbaros. Havia um contraste nítido entre as pessoas e as paisagens de um e do outro lado da muralha?

A Muralha de Adriano não tinha uma função defensiva. É antes uma afirmação maciça do poder de Roma, e diz às pessoas que vivem a norte da muralha: ‘Não vale a pena darmo-nos ao trabalho de vos conquistar’. É um pouco o equivalente das cercas eletrificadas que protegem as propriedades dos bilionários. Além disso, é apenas uma das várias barreiras deste género que Adriano patrocinou. Há uma de madeira na Alemanha, uma de terra em África. Adriano é como um jardineiro que vai colocando cercas para proteger a beleza da paisagem e manter a ralé à distância.

Ou seja, não é tanto como a grande muralha da China, mas mais como o muro de um condomínio privado.

Adriano não está a dizer que é ali o limite do império, porque os romanos achavam-se senhores de tudo. Como diz Vergílio, o império romano não tem limites. O que aquele muro quer dizer é: ‘Vocês são horríveis, não vos queremos aqui’.

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