Três centrais para quê, caro Roberto?

2 meses atrás 83

«Campo Pelado» é o espaço de opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Uma homenagem ao futebol mais puro, mais natural, onde o prazer da camaradagem é a única voz de comando. «Campo Pelado».

* Chefe de Redação

Reza a lenda que Giotto, o famoso artista do pré-renascentismo toscano, convenceu o Papa Benedito XI a contratá-lo depois de mostrar ser capaz de desenhar um círculo perfeito.

Só isso. Nem paisagens deslumbrantes, nem edifícios de riqueza florentina, muito menos quadros sociais da bela e virgem sociedade italiana do século XIV.

O Santo Padre viu o pintor a tratar a tela em branco com um desvelo raro. Sem qualquer artifício extraordinário, sem o apoio de um compasso, apenas a mão direita e um pincel.

Um círculo perfeito.

Ora, como bem se entende, a beleza supra das coisas simples remonta à Florença anterior ao domínio dos Médicis. É muito tempo, na eventualidade de se questionarem sobre o mesmo.

As coisas simples. Mesmo nesta sociedade apressada, que mal respira e pouco sente, há um lugar de afeição para elas. Não vale a pena inventar muito, digo eu. O sorriso dos filhos, uma cerveja ao final da tarde com amigos, o beijo da companheira ou companheiro.

No futebol não é diferente. Os caminhos simples não têm necessariamente de ser simplórios. A realidade diz-me que, normalmente, são opções mais fiáveis do que atalhos duvidosos ou avenidas de ar principesco e frágeis fundações.

Penso nisto ou avaliar a Seleção Nacional. Roberto Martínez, personagem de méritos óbvios e já por mim elogiada neste Campo Pelado, pressentiu a meio da fase de qualificação o conforto da equipa ao jogar em 4x2x3x1 (ou 4x3x3). E muito bem. 

Libertou-a do colete de forças que revelara ser o sistema de três centrais (e não de três defesas) e o talento respirou fundo. A qualidade das exibições subiu a um patamar de excelência e o senso comum apontou, lá está, no sentido certo: é por aqui.

Num processo mais simples, onde as peças se sentem mais confiantes para exprimir o evidente talento possuído, Portugal fez jogos de nota 20. A atacar com primor e a defender em rara solidez.

Voltar atrás para quê, caro Roberto?

Procuro acompanhar o pensamento do selecionador. Nos três jogos preparatórios, Martínez idealizou replicar os três desafios da fase de grupos. No posicionamento e nas ideias.

Pelo que vejo de fora, o treinador acredita que o 3x4x3 é mais efetivo em jogos contra seleções em bloco baixo e pouco dispostas a ter bola, enquanto o 4x2x3x1 será mais eficiente em jogos abertos (Croácia e Turquia).

A realidade não me tem demonstrado isto. Já não gostei do nível na vitória sofrida contra a Chéquia e, mesmo com a atenuante das oito alterações, vi contra a Geórgia uma vergonhosa aparição nacional.

Roberto Martínez sabe muito de futebol, trabalha diariamente com o grupo, mas os três centrais não são compatíveis com este ADN de Portugal. Além de usurpar um homem às posições mais ofensivas, este bloco recuado não comunica harmoniosamente com os dois médios-centro e esse «buraco» convida ao suicídio nas transições defensivas. Um perigo.

Em ataque organizado, o que se vê? A bola a entrar nos corredores, Chico/Bernardo e Neto/Leão a saírem no drible e a cruzarem para as cabeças checo/georgianas. O jogo interior, mesmo com Bruno ou Félix em campo, é pobre e raro.

Se o cenário já era feio, pior ficou ao minuto 66. O selecionador sacrificou o infeliz António Silva, de braço dado com Cristiano, mas lançou Semedo e puxou Dalot para o meio, sem nunca desfazer o trio central. Com Portugal a perder 2-0.

Difícil de perceber.

Com estes três homens, Portugal consegue atacar e defender pior. Não é fácil. A desordem não ajuda nada à capitalização do PIB de talento por m2. Afasta a equipa dos processos simples e das sensações mais recompensadoras.

Sim, o tal sorriso dos filhos e a cerveja a ver o pôr-de-sol. Ou o círculo perfeito de Giotto.

Assim, não.

PS: António Silva. A noite trágica do central português deve ser analisada com equilíbrio. O jovem do Benfica tem predicados interessantes e fará uma boa carreira. Tem qualidade para isso, mas não tem nível – nunca teve – para ser o Beckenbauer português ou um nome de elite. Forçar cenários irrealistas só lhe fez mal. Ao corpo e à cabeça.

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