Um ano após ataque golpista polarização e fragilidades da democracia persistem no Brasil

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Dois cientistas políticos ouvidos pela Lusa avaliaram que o fracasso dos atos antidemocráticos realizados por apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro provocou reações importantes e positivas em forças que compõe a República brasileira, principalmente no Executivo e no Judiciário, mas não eliminou a forte divisão ideológica entre a esquerda e a extrema-direita, que se consolidou após a ascensão do `bolsonarismo` no país, cujos apoiantes usaram a força para tentar impedir o atual Presidente de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva, de governar, oito dias após a sua posse.

"Costumo usar como metáfora a imagem de um tecido esticado. Quando você submete o tecido democrático a uma constante tensão, quando você estica o tecido democrático, você tem duas hipóteses, ou ele se rompe ou ele fica esgarçado. Não houve o rompimento do tecido [em 08 de janeiro], mas a democracia brasileira ficou fraturada, ficou esgarçada", explicou Rodrigo Prando, sociólogo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

"Vimos concretamente, ou seja, com dados da realidade, o que acontece quando você tem um conjunto de indivíduos que são nutridos por `fake news` e por teorias da conspiração. Eles entram em dissonância cognitiva, eles criam uma realidade paralela e isto gera não apenas uma violência retórica e simbólica da qual Bolsonaro é um grande representante na extrema-direita mundial, mas uma violência que escapa para realidade, como o que aconteceu em Brasília", disse o mesmo especialista. 

Investigações em curso, realizadas por autoridades em resposta aos atos de depredação realizados nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF) em 08 de janeiro do ano passado por milhares de `bolsonaristas`, têm apontado que o ataque tinha o objetivo de semear o caos e tentar deslocar o poder do Governo de Lula da Silva para os militares, depois da derrota eleitoral de Bolsonaro.

Nos últimos meses, a polícia brasileira, o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal avançaram em investigações e punição aos executores desses atos. Cerca de 2.000 pessoas foram presas e acusadas em razão desse ataque, das quais trinta já foram condenadas a penas de até 17 anos de prisão.

Entre os já condenados e os que cumprem prisão preventiva, encontram-se 66 dos visados, enquanto os demais fizeram acordos com o Ministério Público ou ainda são investigados, mas estão em liberdade.

No entanto, as autoridades brasileiras ainda não chegaram a uma conclusão sobre a participação ou não do ex-presidente Bolsonaro na instigação desses atos nem sobre o papel de funcionários públicos, incluindo militares, e de outras autoridades suspeitas de omissão ou de facilitação.

"A extrema-direita segue muito forte no Brasil. Mesmo com a inabilitação [de uma candidatura] do Bolsonaro nos próximos 8 anos, o campo que ele representa é muito forte (...) O `bolsonarismo` não tem nenhum compromisso com a democracia. Os eventos de 08 de janeiro são a melhor evidência disso", pontuou André Kaysel, cientista social e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

"A extrema-direita existe, está presente na sociedade brasileira e temos agora o que os autores do livro `Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e ameaça o futuro do Brasil` chamaram de calcificação", acrescentou Prando, referindo-se a um livro que mapeou a polarização extrema e a radicalização que se tornou uma característica marcante da sociedade brasileira nos últimos anos.

Essa divisão forte entre a direita e esquerda influencia diversos aspetos da sociedade brasileira e foi uma marca na última eleição presidencial vencida por Lula da Silva por uma margem mínima de 50,9% de votos contra 49,1% de votos do ex-presidente Bolsonaro.

Kaysel destacou que o `bolsonarismo`, além de manter influência na sociedade, também tem-se mostrado forte no Congresso, embora os seus representantes não sejam a maioria, já que a ideologia desse grupo ressoa entre parlamentares, partidos e políticos de centro-direita que, por sua vez, exercem forte pressão no Governo. 

Segundo o mesmo cientista social, isto acontece porque a ideologia dominante na direita brasileira é a extrema-direita, que também influencia diretamente o comportamento de cerca de 25% da população, facto que mantém o pacto liberal democrático em constante desafio. 

Citando o poder, a ascensão e as ligações entre líderes como o ex-presidente norte-americano Donald Trump, que poderá voltar ao Governo nas eleições deste ano, o atual Governo de Israel, o Presidente argentino, Javier Milei, e outras autoridades de extrema-direita da Europa, Kaysel frisou que a corrente que promove o confronto de valores democráticos não é uma característica local, mas um fenómeno das sociedades contemporâneas.

"A extrema-direita mostra claramente que atua em função de fronteiras ideológicas, mais do que em fronteiras nacionais, para usar um velho conceito da Guerra Fria, que está de volta. O risco [no Brasil] não desapareceu e o pior é que ele não depende somente das forças internas", concluiu o professor da Unicamp.

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