Uma bala na cara, um crime no Rio: «Morreu ali a mudança para o Sporting»

1 mes atrás 51

Um carro rola no asfalto molhado do Rio de Janeiro. Lá dentro, cinco amigos cantam e brincam, despreocupados. É só mais uma noite na Cidade Maravilhosa, mas na Cidade Maravilhosa os perigos sabotam o mais inofensivo dos planos. 

No banco de trás, Nando segue entre Germano e Fonseca, todos defesas e todos futebolistas do Vitória SC, de Guimarães. O primeiro tem um convite irrecusável do Sporting entre mãos e convida os restantes para uma jantarada na nobre zona da Barra da Tijuca. 

Ao volante segue o dirigente Manuel de Almeida. Ao seu lado, Vítor Nóvoa, guarda-redes. 

Em segundos, a celebração é interrompida por um indesejável conviva. O automóvel ouve um estrondo, os estilhaços destroem o vidro traseiro, Nando está já inconsciente e a esvair-se em sangue. 

16 de julho de 1990, o estágio do Vitória em terras cariocas é brutalmente interrompido. Fala-se em ajuste de contas, em ataque organizado, mas a especulação morre com o passar dos dias. 

O zerozero volta ao local do crime. E com a melhor das testemunhas: a vítima.

Nando, 61 anos, atende-nos com a gentileza dos homens livres, de bem com a vida e sem segredos por revelar. 

Porquê agora? Há histórias que ganham vida própria e Nando tem uma história para contar.

O contacto nasce na preparação da Supertaça Cândido da Oliveira, a propósito do troféu ganho por esse maravilhoso Vitória no final dos anos 80, mas logo salta para essa avenida escura e sem saída. 

Um relato impressionante, um momento esquecido do futebol português.   

zerozero – Já não ouvimos falar há muitos anos do Nando. O que é feito de si?

Nando – Vivo em Sintra, onde nasci. Mais propriamente em Algueirão. E estou completamente afastado do futebol. Tirei o curso de treinador há uns anos, ainda trabalhei com equipas de crianças, mas nesta altura não quero estar ligado ao jogo. Perdi a ambição e o gosto que tinha pelo futebol. Estou bem, trabalho como segurança numa empresa aqui da zona, vivo para a família. Tenho uma casa boa, filhos, netos, não preciso de mais nada. Sou feliz. Também fui muito feliz no futebol, mas para mim bastou. Um dos meus filhos é treinador de futebol, chama-se Fábio Santos e quase que conseguia subir de divisão com o Os Montelavarenses, na AF Lisboa.

qEra de noite, tinha chovido, lembro-me de o nosso carro passar num lençol de água e de eu olhar pelo vidro de trás. Estava a passar um carro ao lado do nosso. Quando fiz esse movimento para trás, ouvi um barulho enorme, senti o vidro a partir e desmaiei

Nando, ex-futebolista do Vitória

zz – Como é que surgiu essa mudança do futebol para o mundo da segurança?

N – Eu deixei de jogar futebol no Sp. Lourel, o meu irmão era o presidente do clube e eu tirei o curso de treinador para trabalhar nas camadas jovens. Isto por volta de 2002. O meu irmão chama-se José Ribeiro e trabalha hoje em dia na Associação de Futebol de Lisboa. Bem, estive alguns anos a treinar, mas percebi que não me identificava nada com a forma como os clubes trabalhavam e com o sistema que estava implementado. Desisti.

zz – E teve de arranjar uma profissão nova.

N – Antes de ser jogador de bola, já trabalhava. E por isso não tive problemas em voltar a fazê-lo. Tinha despesas para pagar e a verdade é que no meu tempo de futebolista não se ganhavam os milhões que hoje se ganham.

zz – Não ficou rico com o futebol.

N – Recebi salários bons em Guimarães e em Braga. Não posso mentir. Mas a vida avança. Tive um divórcio, tive um ou outro azar e o dinheiro vai saindo. E se não entrar… Sou uma pessoa com convicções sociais fortes e mete-me impressão a exorbitância que se paga a futebolistas quando há tanta gente a passar forme no mundo. Eu nunca soube o que é um milhão, quanto mais muitos milhões. Mas ganhei algum dinheiro, sim, fiz um pé-de-meia jeitoso. Joguei em seis clubes da 1ª divisão, por isso não foi um percurso curto. Farense, Vitória, SC Braga, Famalicão, Gil Vicente e Beira Mar. Felizmente estou bem e não preciso de pedir nada a ninguém. O meu salário é suficiente.

zz – Aqui no zerozero, na ficha do Nando não constam internacionalizações pela seleção de Portugal. Mas temos ideia de ter sido convocado várias vezes.

N – E estão certos. Não joguei um único minuto por Portugal e essa é a minha maior mágoa. Fui convocado pelo mister Juca para muitos jogos na qualificação do Mundial de 1990, uma vez até para um jogo fora, na Suíça. Fomos 17 jogadores e eu fui o 17º, fiquei na bancada. Mas recebi a medalha de presença e vi o meu querido Paulo Futre a partir aquilo tudo. Ganhámos 2-1. Agora é muito mais fácil ser internacional, há muitos mais jogos. Fiz 251 jogos na I Liga, nove edições diferentes do campeonato nacional, e a minha grande dor é não ter feito um minutinho que fosse por Portugal.

Nando e Neno na Seleção Nacional @Arquivo Pessoal

zz – O titular era o João Pinto, do FC Porto?

N – Isso mesmo. O Juca convocou três laterais direitos para esse jogo em Neuchatel, mas o Veloso, do Benfica, jogou na esquerda. Fiquei muito perto. Do Vitória, só eu e o Neno é que estivemos nesse grupo. São grandes memórias e tenho muito orgulho nisso. Tenho ainda os recortes dos jornais dessa época em minha casa. Nessa época de 89/90 eu tinha 25 anos, estava em grande forma e considerava-me jogador de seleção. Depois, enfim, levei o tiro no Brasil e não voltei a ser o mesmo. Eu ia para o Sporting, o presidente do Vitória, o Pimenta Machado, já tinha acertado tudo com o Sousa Cintra e só me faltava assinar a papelada. Eu já nem devia ter ido para o estágio do Vitória no Rio de Janeiro. Acabei por ir e… levei um tiro. O Sporting acabou por contratar o Nélson ao Salgueiros [em 1991].

zz – Nota-se que tem um carinho especial por Guimarães.

N – É o meu clube e quem entra em minha casa vê logo isso. Amo o Vitória e o Sintrense, são os meus clubes. Ainda há poucos meses fui homenageado no relvado do D. Afonso Henriques, falei ao canal do Vitória e fui aplaudido de pé. São os meus melhores títulos. Não é fácil sair de Guimarães, ir para Braga e depois continuar a ser acarinhado no Vitória. Aconteceu comigo.

«'Olhem, olhem, o Nando está vivo!'»

zz – Falemos, então, da noite que mudou a sua vida. Estamos a falar da noite de 16 de julho de 1990, no Rio de Janeiro e durante um estágio do Vitória. Lembra-se de tudo?

N – Depois de um dia normal de treinos, convidei os meus amigos Fonseca, Germano, Vítor Nóvoa e Manuel de Almeida, este último vice-presidente do clube, para jantar na Barra da Tijuca. Eu estava muito feliz porque ia jogar no Sporting e quis oferecer-lhes um jantar. Infelizmente, os dois últimos já não se encontram entre nós para corroborar tudo o que eu estou a contar.

zz – Saíram do jantar e regressavam ao hotel quando o vosso carro foi atacado.

Nando em ação num dérbi contra o Fafe @Arquivo Pessoal

N – Eu até hoje não sei se foi um ataque ou se foi uma bala perdida. Acredito mais na segunda hipótese. Na altura contaram-se muitas mentiras, especulou-se muito, mas 34 anos depois posso garantir que sempre contámos a verdade. Não houve confusão nenhuma, não nos metemos com ninguém, não houve bebidas, não houve mulheres. Houve um jantar de amigos, boa disposição, alegria e uma viagem aparentemente calma e que acabou mal.

zz – Do que se lembra em concreto?

N – Eu ia no banco de trás e o senhor Manuel ia ao volante. Era de noite, tinha chovido, lembro-me de o nosso carro passar num lençol de água e de eu olhar pelo vidro de trás. Estava a passar um carro ao lado do nosso. Quando fiz esse movimento para trás, ouvi um barulho enorme, senti o vidro a partir e desmaiei. Pelos vistos ainda tive forças para dizer ‘levei um tiro’, segundo me contaram os meus colegas. Eu levava uma tshirt branca, com desenhos de Fórmula Um, e ficou toda ensanguentada.

zz – Só despertou no hospital?

N – Não, ainda dentro do carro. Os meus colegas estavam na rua, aos berros, a pedir ajuda para alguém parar e levar-nos ao hospital. Não havia telemóveis, ninguém conhecia a cidade. E lembro-me de ouvir o Germano, o meu compadre, a gritar assim: ‘Olhem, olhem, o Nando está vivo!’. A partir daí fiquei sempre consciente.

zz – Arranjaram ajuda para chegar ao hospital?

Nando
1 títulos oficiais

N – Sim, tivemos sorte. Um senhor não se assustou connosco e parou. Fomos atrás dele. E fui muito, muito bem tratado no hospital do Rio. Tenho de dizer isso. Eles estavam muito habituados a tratar de ferimentos de bala. O médico virou-se para mim e foi claro: ‘Olhe, se a bala se mexer um milímetro, pode morrer ou ficar tetraplégico. Mas vou fazer tudo para ficar vivo’. E fiquei. Até hoje.

zz – A sua visão nunca foi afetada? A bala entrou mesmo abaixo do olho…

N – Nada, nada. Sempre vi bem. Afetou-me a fala numa fase inicial. Porque a bala desceu do olho, passou pela garganta e ficou alojada na coluna. E houve um período em que não conseguia falar.

zz – Como é que geriu tudo isso emocionalmente?

N – Sempre fui muito estável emocionalmente. Podia ter-me acontecido em Lisboa, aconteceu-me lá. Prefiro pensar assim. Ainda tenho a bala alojada na minha coluna e faço uma vida completamente normal. É impressionante. O tiro acertou-me abaixo do olho, a bala entrou por aí e não tocou em nenhuma zona sensível ou essencial. E continua dentro de mim. Ainda fiz muitos anos de futebolista profissional com a bala na coluna, aliás. Quando voltei a Portugal, não imaginam a loucura que foi.

zz – Estivemos a ver as imagens no arquivo da RTP antes de falarmos com o Nando.  

N – Pois, apareço nas imagens com um enorme penso debaixo do olho direito e uns arranhões no sobrolho. Foi engraçado porque nos aeroportos comecei a apitar sempre nos controlos de segurança (risos). Lá explicava que tinha uma bala dentro de mim. Passei um bocado difícil, mas lá fui superando tudo.

«O João Alves só me arranjou confusões»

zz – O Sporting desistiu da sua contratação. Isso não foi recuperado.

N – Essa foi a principal consequência, é verdade. A mudança para o Sporting morreu ali. E deixei também de ir à Seleção Nacional, porque tive ali uma fase de menor rendimento. Mas a verdade é que fui baleado em 1990 e joguei na 1ª divisão até 1996. Trabalhei com treinadores maravilhosos. O Vítor Manuel, o Paulo Autuori, o Rodolfo Reis era espetacular. Gostei de todos menos de um.

zz – Quem foi esse 'mau da fita'?

N – O João Alves. Aliás, sempre o disse nos jornais. Não vale nada como pessoa. Grande jogador, treinador espetacular e como homem… zero. Chegou a Guimarães, levou cinco jogadores com ele e esses jogadores tinham de jogar. Ou seja, era treinador ou empresário? É isso. Mas eu amo o Vitória e amo Guimarães, como amo Sintra e o Sintrense. Ninguém imagina o que se sente ao vestir a camisola do Vitória. Tenho um amor eterno por aquele clube, inexplicável. Fui sempre tão bem tratado… sempre, sempre. Guimarães deu-me tudo. Serei sempre grato a clube e cidade.

zz – Em 1991 saiu emprestado para o SC Braga por vontade sua?

N – Por culpa do João Alves. Foi buscar o Jaime Alves ao Boavista, um lateral direito espetacular e que não tinha culpa nenhuma destas coisas do treinador, e eu percebi que ele me queria afastar. Eu tinha moral em Guimarães, vinha de três grandes épocas, merecia jogar. Saí para ter minutos. O Alves só me arranjou confusões. Uma vez substituiu-me, eu saí mesmo triste porque nunca era substituído e ele foi inventar que eu tinha dito isto e aquilo aos sócios. Tudo mentira. Pôs-me a treinar a parte, fomos para tribunal e eu ganhei no julgamento. Fui reintegrado e voltei a jogar. ‘Tenho de admitir aqui o Nando, porque ele em Guimarães é o Maradona’. Era assim o João Alves.

Um a um: o olhar sobre os heróis da Supertaça

zz – Temos de falar da Supertaça ganha pelo Vitória, até porque esse era o tema inicial desta entrevista.

N – Foi maravilhoso, marcante. Fomos empatar às Antas e festejámos lá. Quem é que festeja uma conquista dessas no campo do FC Porto? O nosso treinador era o Geninho, uma pessoa maravilhosa. Tive muita sorte, apanhei só gente boa, com a exceção do senhor que acima referi. O Vitória tinha uma equipa incrível. Para enorme tristeza minha, alguns já não estão entre nós. O Neno, o Basílio, o Carvalho, o meu querido Caio Júnior…

zz – Vamos pedir ao Nando para falar um pouco sobre cada um dos seus colegas que estiveram nessa Supertaça. Podemos começar pelo saudoso Neno.

N – É difícil falar sobre ele. Acho que não vou dizer tudo o que quero. Um homem incrível, o ambiente que criava no balneário, um sorriso maior do que o mundo. Se houvesse tristeza, o Neno aparecia e iluminava a sala. Eu frequentava a casa dele, ele frequentava a minha casa. Se o céu existir, o Neno está lá a sorrir.

zz – Os centrais eram o Nenê e o Germano. O Bené jogou na segunda-mão.

N – Que grandes defesas, nível altíssimo. Para perceberem melhor, o Germano era o Mozer e o Nenê era o Ricardo Gomes. Um mais forte a marcar e o outro com uma capacidade técnica fortíssima. E o Bené era do mesmo nível.

zz – Na esquerda jogou o histórico Basílio.

N – Sim, o Roldão também jogava lá, mas na Supertaça jogou o Basílio a lateral e o Roldão mais à frente. O Basílio fazia tudo bem, líder do balneário, jogava bem à direita e à esquerda. Certinho e fiável. O Roldão era um cavalo, um pulmão inesgotável, fazia o lado esquerdo para cima e para baixo.

zz – O médio mais defensivo foi o Soeiro.

N – Não era sempre ele a jogar, mas tinha uma bela visão de jogo, era muito forte no passe longo. Não faltavam boas opções. O Benfica e o FC Porto dominavam, mas o Vitória era capaz de formar grandes plantéis.

zz – À frente do Soeiro, dois médios: N´Dinga e Carvalho.

N – O N’Dinga era o homem espetáculo, jogava sobre a direita e deixava o corredor todo para mim. Tecnicamente era soberbo, dos melhores estrangeiros que vi em Portugal. Sabia fazer jogar a equipa. O Carvalho era um menino de Guimarães, protegia muito bem a bola, sempre nos demos muito bem e entendia-se muito bem com o N’Dinga. E ainda falta o Renê. Outro craque. Sofreu uma lesão muito grave nas Antas, acho que depois de uma falta do André, e não voltou a ser o mesmo.

zz – Os avançados foram o Décio Antônio e o Chiquinho Carlos.

N – O Chiquinho, meu deus. O Chiquinho tinha jogado no Benfica e foi a pessoa mais humilde que vi no futebol. Um jogador fora de série. Foi meu colega em Guimarães e em Braga. Certo dia apanhei-o a ir a pé para o treino e quis dar-lhe boleia. ‘Para quê, Nando? Andar a pé faz bem à cabeça’. Eu acho que ele nem carro tinha, vejam bem. Ele agora trabalha no Mafra e continua a ser o homem de sempre.

zz – E o Décio Antônio?

N – Ponta-de-lança espetacular, mesmo homem de área. Muito objetivo, um bom ‘9’. Fez um dos nossos golos nessa Supertaça. Bem, e nem falámos ainda de Ademir, Paulinho Cascavel, do meu grande amigo Caio Júnior… o Caio era amigo do coração, como é possível ter morrido naquele acidente de avião? Era um cavalheiro, um senhor. A mulher dele era muito amiga da minha e depois vieram viver para a Amadora. Um craque, uma inteligência fora do normal. A nacionalidade não interessa nada, a cor não interessa nada. O que importa é o coração e o comportamento. Sempre fui amigo de brasileiros, zairenses, jugoslavos, gente espetacular. É por isso que até fico doente ao ouvir estes discursos segregadores, de políticos de pacotilha. E o Caio, sinceramente, foi dos melhores homens que conheci na vida.

zz – Sabe quem foi o jogador que mais vezes esteve ao seu lado em campo?

N – O N´Dinga?

zz – Não, o N´Dinga e o Germano estão no segundo lugar.

N – Então é o Chiquinho Carlos, não é? Boa, fico muito feliz em saber isso. 132 jogos? Pois, era sempre ele e mais dez.

zz – Última questão: para quem não se lembra do Nando, que tipo de lateral direito era?

N – Era um lateral com grande condição física, acho que podia ter ido muito mais longe. Nunca teve a mania de que era superior a alguém. Foi pena o maldito tiro na cara. Sempre adorou o João Pinto, o Veloso, o Nélson, todos laterais de grande nível. Era muito ofensivo, procurava a linha de fundo, gostava de subir e defender. Foi um grande lateral direito, sim. 

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