Úteros artificiais

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O útero artificial persegue o objetivo nobre de garantir o término bem-sucedido e sem sequelas da gestação de prematuros extremos. Tudo indica que num futuro próximo estes dispositivos médicos se possam tornar uma realidade, não sendo impensável que um dia a visão de bebés em gestação no interior de sacos cheios de líquido se torne comum nas maternidades.

A gestação de humanos fora do útero, designada por ectogénese, é uma das ideias ficcionais mais marcantes do romance distópico Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. No livro, Huxley descreve uma sociedade futurista onde a reprodução natural deu lugar ao cultivo em massa de embriões humanos em úteros artificiais. No mundo real, a replicação tecnológica das funções básicas de suporte de vida do ambiente uterino tem sido considerada e estudada desde os anos 50 do século XX como uma forma possível de tratar bebés nascidos entre as 22 e as 28 semanas de gestação. Os avanços científicos verificados neste campo indicam que num futuro próximo poderemos dispor de úteros artificiais que permitam reduzir a mortalidade desses prematuros extremos. Os benefícios médicos de uma gestação artificial parcial segura são indiscutíveis no contexto da prematuridade, ou até em eventuais situações de alto risco de danos fetais durante a gravidez. Já o avanço rumo a uma tecnologia que permita a gestação completa de um embrião até ao nascimento, tal como imaginado por Huxley, levanta inúmeras questões éticas, políticas e sociais que não podem ser ignoradas.

Um relatório recente da Organização Mundial de Saúde estima que no ano de 2020, cerca de 13,4 milhões de bebés (i.e., 1 em cada 10) nasceram antes das 37 semanas de gestação em todo o mundo. Destes, cerca de 1 milhão morreu devido a complicações relacionadas com a sua prematuridade, incluindo dificuldades respiratórias, problemas gastrointestinais, distúrbios de visão e audição, atrasos no desenvolvimento e paralisia cerebral. A taxa de mortalidade é particularmente elevada quanto mais precoce for o nascimento, podendo chegar a um terço ou mais no caso bebés nascidos no limite temporal de viabilidade fetal das 22 semanas. Quanto aos sobreviventes destes casos extremos, quase todos terão de enfrentar complicações de saúde ao longo da sua vida [1].

O tratamento padrão de bebés prematuros numa unidade de cuidados intensivos neonatais envolve a monitorização constante de sinais vitais, o fornecimento de oxigénio através de uma máscara ou de um tubo inserido na traqueia, o controlo de temperatura numa incubadora térmica, uma nutrição especial administrada por via intravenosa e cuidados para prevenir infeções. A estabilização e apoio ao desenvolvimento dos órgãos imaturos é particularmente desafiadora nos casos de prematuridade extrema (menos de 28 semanas). Em particular, a ventilação mecânica pode causar danos irreversíveis aos pulmões subdesenvolvidos dos recém-nascidos, sendo por isso desaconselhada. Por estas e outras razões, desde meados do século XX que vários grupos têm tentado desenvolver o conceito de útero artificial, com a primeira patente a ser submetida no ano longínquo de 1954 [2].

Um útero artificial procura replicar tecnologicamente os processos biológicos de fornecimento de nutrientes, hormonas e oxigénio, e de remoção de dióxido de carbono e resíduos que são assegurados no útero natural pela placenta e pelo líquido amniótico. A ideia central por detrás do útero artificial é suportar os prematuros extremos durante os dias e semanas onde os danos aos órgãos mais imaturos, como os pulmões e o cérebro, são mais prováveis. Em muitos protótipos de úteros artificiais, o sangue do prematuro é retirado do cordão umbilical por uma cânula, bombeado através de um pulmão artificial miniaturizado que adiciona oxigénio e remove dióxido de carbono, e retornado ao corpo à temperatura fisiológica. Simultaneamente, os pulmões são preenchidos com um fluido especial estimulador do crescimento. Algumas abordagens mais futuristas contemplam a imersão do feto num saco contendo um substituto do líquido amniótico rico em eletrólitos. Esta estratégia reduz o stress, amortece o bebé e protege a sua pele delicada de infeções e lesões [2,3].

Embora nenhum útero artificial tenha sido testado em humanos, dispositivos semelhantes foram já utilizados para completar a gestação de animais com sucesso. Em 2017, por exemplo, investigadores do Hospital Pediátrico de Filadélfia mostraram ser possível suportar fisiologicamente fetos de cordeiros, equivalentes em termos do seu desenvolvimento a bebés humanos prematuros extremos, num útero artificial por até quatro semanas [3]. O acumular de resultados positivos e bons indicadores tem levado a agência reguladora FDA a interagir com vários grupos de investigação em antecipação do inevitável primeiro pedido de autorização para realização de ensaios clínicos num útero artificial [4]. Claramente, os cientistas precisarão de demonstrar que o dispositivo pode facilitar o crescimento e desenvolvimento, reduzir a taxa de mortalidade e problemas de saúde, e superar os cuidados oferecido pelas tecnologias existentes em unidades de cuidados intensivos neonatais [4].

Embora o objetivo de um útero artificial não seja de todo o de replicar uma gestação humana do embrião até o nascimento, poucas dúvidas existem de que passos nessa direção acabarão inevitavelmente por ser dados. Hoje mesmo, a ideia da ectogénese é discutida de forma séria por cientistas e empresas como uma solução para resgatar espécies extintas ou criticamente ameaçadas [2]. Numerosas questões éticas, políticas e sociais podem ser antecipadas caso um dia os desafios tecnológicos complexos da ectogénese sejam resolvidos. Desde logo, a inevitável alteração da definição do que é um embrião/feto viável terá implicações legais e éticas, reconfigurando debates sobre aborto, direitos reprodutivos e políticas de saúde pública. As questões em torno do status moral do feto e dos direitos do embrião, ou do impacto psicológico em crianças geradas artificialmente serão inevitáveis. Uma futura industrialização da maternidade trará consigo profundas implicações filosóficas, afetando conceções sobre a vida, o papel da mulher e a própria natureza da reprodução humana. A possibilidade de usar a ectogénese para fins controversos como por exemplo o melhoramento ou a especialização genética de indivíduos não deixará também de agitar a discussão.

O útero artificial persegue o objetivo nobre de garantir o término bem-sucedido e sem sequelas da gestação de prematuros extremos. Tudo indica que num futuro próximo estes dispositivos médicos se possam tornar uma realidade, não sendo impensável que um dia a visão de bebés em gestação no interior de sacos cheios de líquido se torne comum nas maternidades. Apesar disso, o controlo social e a desconexão emocional subjacentes à maternidade industrializada imaginada por Huxley em Admirável Mundo Novo permanecem muito distantes.

[1] OMS (2023) Born too soon: decade of action on preterm birth. ISBN: 978-92-4-007389-0

[2] Ireland, T. (2024) To be born in a bag. Asimov Press. doi: https://doi.org/10.62211/72hr-98tu

[3] Partridge, E.A. et al., (2017) An extra-uterine system to physiologically support the extreme premature lamb. Nature Communications, 8:15112.

[4] Kozlov, M. (2023) Human trials of artificial wombs could start soon. Here’s what you need to know. Nature 621, 458-460.

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