A ética no caso do “pistolão”

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O chamado “caso das gémeas” tem estado no centro de uma pequena tempestade política e mediática, mas os factos que vieram a público apontam para uma situação mais complexa do que inicialmente se pensava.

Em primeiro lugar, ficou demonstrado que as gémeas tinham direito à cidadania portuguesa, tendo o processo da sua obtenção demorado cinco meses, um prazo dentro da média. As meninas são filhas, netas e bisnetas de portugueses. Têm tanto direito a ser tratadas no SNS como uma criança que tenha nascido em Viseu ou Faro, por muito que isso desagrade a quem tenta ganhar votos fazendo distinções entre os portugueses ditos “de bem” e os outros.

Em segundo, os dados oficiais não permitem sustentar que outros pacientes tenham ficado para trás ou tenham sido preteridos pelo facto de as meninas terem recebido o Zolgensma. Pelo contrário. Desde 2019, foram tratadas 33 crianças com este medicamento em Portugal. Não há lista de espera e o Infarmed aprovou praticamente todos os pedidos que os médicos do SNS lhe fizeram chegar, muitas vezes logo no dia seguinte.

Resta o tema do favorecimento e do abuso de poder que poderão ter existido por parte do então secretário de Estado Lacerda Sales e que se encontram em investigação, por ter marcado a consulta inicial.

Segundo a auditoria realizada pela IGAS, dez crianças receberam o medicamento no Santa Maria, mas as gémeas foram as únicas a ser referenciadas por Lacerda Sales. O titular de um cargo público não pode tratar os cidadãos de forma desigual e estas consultas não podem ser marcadas por via telefónica. Estes factos estão na origem da constituição de Lacerda Sales como arguido por suspeitas de abuso de poder, tráfico de influências e burla qualificada.

Com base na informação que foi tornada pública – e com a devida ressalva, uma vez que o caso ainda está a ser investigado –, tudo indica que poderá ter havido de facto “cunha” ou “pistolão”. Mas a situação não será tão simples ou a “preto e branco”, como alguns tentam fazer crer na Comissão Parlamentar de Inquérito, que cheira, a léguas, a mais um ajuste de contas do Chega com Marcelo.

E não será simples porque ainda se pode chegar à conclusão de que o comportamento de Lacerda Sales no plano ético poderá ter sido o mais correto ou, se preferirmos, o menos mau. Perante o dilema ético que lhe foi colocado, entre ajudar aquela família ou deixar o processo seguir o seu curso, o secretário de Estado terá optado pelo mal menor.

Aqui chegados, é bom lembrar que “ética” significa não lesar. Ainda não é claro se a intervenção de Lacerda Sales fez de facto alguma diferença, mas ao marcar a consulta e ao fazê-lo da forma mais célere possível, terá violado as regras para alcançar um bem maior, isto é, fazer com que as crianças fossem atendidas em tempo útil. Tê-lo-á feito sem prejudicar outros pacientes e, ao que tudo indica, deixando o caminho a seguir nas mãos dos médicos e do Infarmed.

Não cabia a Lacerda Sales marcar consultas, mas, bem ou mal, a situação infeliz destas crianças chegou ao seu conhecimento. Devia ignorar o caso, por alegadamente se tratar de uma ‘cunha’ pedida pelo filho do Presidente da República, sabendo que tal poderia representar uma sentença de morte para as duas meninas? Para a maioria de nós, não será fácil responder a esta questão.

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