Uma conversa com o Dr. Domingos Gomes
7305 dias passaram desde o fatídico sorriso esboçado por Miki Fehér, a preceder, por instantes, um inolvidável tombo. Esse trágico episódio, que deixou uma marca irreparável no Benfica, no futebol português e nos que com ele privaram. Esta quinta-feira, na marca dos 20 anos da trágica morte, o zerozero tentou saber se a versão contemporânea da história teria sido diferente. Acima de tudo procurámos entender, numa forma menos vulnerável às emoções, de que forma evoluiu a medicina no mundo desporto ao longo destas duas últimas décadas. «Dessa altura para cá, muito mudou e muito foi mudado», começou o Dr. Domingos Gomes, à conversa com o nosso jornal. E é mesmo esse o essencial sumário de tudo o que nos disse o octogenário, especialista no tema por ter sido, entre outras coisas, fundador do Colégio de Medicina Desportiva. Ao longo de 20 anos, as mudanças são extensas e não cabem numa só categoria. São alterações humanas, científicas e técnicas, que se refletem até nas leis. Por exemplo... «Dentro dos estádios tem de haver apoio para todos, até quem não é atleta, e isso avançou muitíssimo. O desfibrilador passou a estar sempre presente, porque há leis bem explícitas para isso». Domingos Gomes passou vários anos como médico do @FC Porto Na medicina, cuja evolução é constante e impossível de sintetizar sem o entendimento de resmas de artigos científicos, 20 anos são suficientes para uma pequena revolução. O lado desportivo, mesmo sendo uma curta falange desse mundo, não é exceção. As mudanças não estão limitadas às leis e à evolução da parafernália - que o diga o próprio Domingos Gomes, que ainda abraça o seu «companheiro» fonendoscópio -, passando também pela evolução de todos os intervenientes clínicos, que estão cada vez mais imersos nas respetivas especializações. No caso da medicina desportiva, é, até, uma especialização nova. Um caso célebre: Christian Eriksen sobreviveu a um episódio cardíaco e ainda joga ao mais alto nível, com um desfibrilador implantado @Getty / «Só nos últimos anos é que se tratou de fundar a especialidade de medicina desportiva. Isto permite a existência de clínicos bem formados e calibrados para questões específicas, especialidades essas que os clubes procuram. Aliás, neste momento só um especialista em medicina desportiva pode estar em certos locais, clubes ou federações.» Numa conversa que tem a responsabilidade de passar pela medicina cardíaca, o doutor salientou conhecimentos relativamente recentes, como a existência das fibroses, que descreve como «pequenas cicatrizes no interior do coração» e cujo impacto pode ser relevante. Mas o trágico tombo de Fehér é, naturalmente, mais complexo do que isso. Miki Fehér é uma figura incontornável no Sport Lisboa e Benfica @Global Imagens / Jorge Amaral Apesar de todos os feitos impressionantes na evolução da medicina, nada pode corrigir a fragilidade inerente ao ser humano. No coração em específico, bastam ligeiras mudanças de medicação ou um desvio nos níveis de hidratação para alterar o funcionamento. Quando o relâmpago da tragédia atinge alguém próximo, essa evolução medicinal parece sempre insuficiente. Falando de Miklós Fehér e o seu último sorriso, a história poderia ter terminado da mesma forma se tivesse ocorrido hoje e não em 2004. «Nesses casos e outros menos públicos, por assim dizer, houve algumas coisas que deveriam ter sido feitas. De qualquer modo, sabemos que apareceu o desfibrilador e pessoas muito capazes, por isso aconteceu o que tinha de acontecer.» qSabemos que apareceu o desfibrilador e pessoas muito capazes, por isso aconteceu o que tinha de acontecer. «Nem todos concordam, mas quanto a mim todos os atletas, especialmente os mais jovens, deviam fazer também um ecocardiograma. Porque este explica-nos muito mais coisas, como o funcionamento das válvulas e o tamanho das cavidades ou do próprio coração. Morfologicamente dá-nos informação muito importante, que deveria ser incluída nos exames desportivos», atira. O problema de normalizar o ecocardiograma logo a partir do futebol de formação? Simples. «É caro». O custo mais elevado é limitador, mas a sua defesa também é simples. Quem se atreveria a colocar um preço na vida, sabendo que a causa do tombo de Fehér - cardiomiopatia hipertrófica, responsável por mais de 70 por cento das mortes de atletas - poderia ser mais facilmente identificada? Ninguém em específico, pois não é um tema que permita distribuição de culpas. Ainda assim, o objetivo passa por tentar ter, por prevenção, o máximo de informação. 20 anos de luto por Fehér @Getty / - Miki, esse avançado húngaro de cabelo louro, deixa eterna saudade e motiva cartas de amor. Ainda assim, a sua perda não deve ser lamentada apenas pelos adeptos e por aqueles que o conheciam, mas sim por todos os que encontram desconforto na história de um jovem aparentemente saudável que vê a vida escapar entre os dedos. Previsão, sensibilização, observação e dúvida são a chave na hora de evitar fatalidades no desporto. «Não é que nessa altura não existissem bons procedimentos, mas não há dúvida de que muita coisa mudou e continuarão a haver avanços. Isso não quer dizer, claro, que não aconteça algo. Seria lamentável. O importante é sensibilizar as pessoas».Duas décadas da nova medicina desportiva
A importância dos exames e o caso Fehér