A rapariguinha do tricot

2 meses atrás 46

Há mais mistérios no silêncio de uma mulher do que em toda a vã filosofia dos homens.

ESSEN – O comboio está parado. Há um céu cinzento sobre Rurhgebiet, o coração de aço da Alemanha, a maior zona industrial e mineira da Europa. Os cilindros grossos das usinas recortam-se contra o horizonte. Moinhos modernos erguem-se como pássaros gigantescos na beira das estradas: postes brancos que terminam numa ventoinha branca de três braços. Há paisagens ao longo do caminho que se desenrolaram na minha frente como filmes de Volker Sclöndorf ou de Werner Schröder. Espreito a rapariguinha sentada à minha esquerda absorvida no seu tricot. Não há nada de lúbrico no meu olhar, descansem. O movimento rápido dos dedos na agulha e nos nós dos fios. Está absorta. Religiosamente absorta. Em que pensará ela, a rapariguinha do tricot? É um mistério. Em que pensam as mulheres quando se absorvem no tricot? Ou melhor: em que pensam as mulheres, que eu nunca soube? Há mais mistérios no silêncio de uma mulher do que em toda a vã filosofia dos homens. Gotas de chuva na vidraça de um comboio estático. O único desafio ao estado de repouso está naquela dobadoira de ir e vir, mãos firmes e certeiras de uma rapariguinha loira cuja cor do olhos não vislumbro por que se baixam no controlo do seu trabalho minucioso. Sim, faz tricot menina! Faz tricot. Olha que não há mais metafísica no mundo senão fazer tricot. Olha que as religiões todas não ensinam como fazer tricot. Pudesse eu fazer tricot com a mesma verdade que tu o fazes. Mas naõ sei fazê-lo. E entretanto compreendo o Álvaro de Campos e como ele tenho deitado tudo para o chão como deito a vida. O comboio arranca com um safanão e ela não se mexe. Ergue os olhos de um azul-cobalto e toda a carruagem fica azul, tão azul que quase cega. Um dirigível promocional sobrevoa a cidade de Essen. Um Hidenburg dos novos tempos sem George C. Scott nem Anne Bancroft. Vagueia por entre as nuvens e um rasgão de céu para lá delas. O azul apagou-se outra vez. O dirígivel suspende-se sobre nós como um aviso.

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