Adjuntos lusos dão cartas lá fora: «O treinador português não perde tempo a lamentar-se»

2 meses atrás 72

Os tempos são gloriosos. Portugal, embora seja um pequeno cantinho na Península Ibérica e de dimensão muito reduzida quando comparado com outros países europeus, vive uma era dourada, futebolisticamente falando. Os últimos anos têm retratado uma capacidade do país em exportar talento em grande quantidade - e qualidade - para os melhores campeonatos do Mundo, mas o fenómeno já não se cinge apenas a jogadores ou mesmo treinadores principais.

Mais recentemente, os treinadores-adjuntos podem também ser colocados nesta equação. As entradas de Sérgio Raimundo no Tottenham, João Tralhão no Borussia Dortmund, Nélson Morgado no Eintracht Frankfurt - pode ler aqui a entrevista que deu recentemente ao zerozero - ou Jorge Maciel no Lyon mostram que os olhos do Mundo estão, mais do que nunca, no treinador-adjunto português.

Nesse sentido, o nosso portal conversou com dois nomes que pertencem a este leque de técnicos que receberam convites de equipas técnicas estrangeiras para estar em contextos de alto rendimento. O objetivo? Perceber um pouco deste fenómeno recente e o que leva o treinador português a ter vantagem sobre o treinador estrangeiro.

Briefs debriefs: o dia a dia de um adjunto

O motivo seria entender o que leva os olhos internacionais a fitar o treinador português, mas a curiosidade jornalística leva-nos a querer saber mais do que isso. Afinal, o treinador-adjunto é tantas vezes alguém que está na sombra, mas que tem um papel extremamente importante para manter a máquina a funcionar e cujas rotinas diárias são, não raras ocasiões, desconhecidas do público em geral.

@Getty / Tottenham Hotspur FC

«Durante a manhã começava a trabalhar nas minhas tarefas e era muito frequente haver uma reunião entre o staff técnico e os analistas, para preparar o jogo seguinte e as apresentações que eram feitas à equipa. Durante a tarde, o staff reunia novamente para preparar o treino. Após a sessão era frequente vermos todos juntos [staff e analistas] o treino», contou ao zerozero o português João Salgado, que na última temporada foi um dos treinadores-adjuntos de Nuri Sahin no Antalyaspor.

Mudamos de continente e aterramos na Ásia, mais precisamente no Catar. É lá que está João Sacramento, antigo treinador-adjunto de José Mourinho e que esteve com Christophe Galtier no Paris SG e, agora, no Al-Duhail. Um continente diferente obriga a mudanças no quotidiano, mas há vários pontos que convergem com o testemunho anterior.

qEsta nova geração de jogadores é muito visual e tem dificuldades a compreender a mensagem através do discurso. O recurso ao vídeo é fundamental

João Sacramento

«Durante todos os anos em que trabalhei na Europa os treinos eram de manhã, o que obrigava a criar rotinas matinais bem precisas», contou-nos. O dia tinha início às 07h00 e o pequeno-almoço era tomado com toda a equipa técnica, uma hora depois, já no centro de treinos. «Em seguida fazíamos a reunião de debrief para ultimar todos os detalhes do treino, nomeadamente readaptação da sessão em caso do departamento medico nos comunicar a indisponibilidade de algum jogador», continuou.

A sessão de debrief, porém, só ficava concluída com o recurso a uma ferramenta que João Sacramento considera indispensável nos dias que correm: «Para concluir o debrief, é proposto um vídeo de suporte ao treino no qual o treinador tem ao seu dispor um conjunto de imagens de vídeo que fundamentam os objetivos estabelecidos para o treino. Quando o treinador acha pertinente ele valida a apresentação do vídeo aos jogadores antes do treino. Esta nova geração de jogadores é muito visual e tem dificuldades a compreender a mensagem através do discurso. O recurso ao vídeo é fundamental nos dias de hoje.»

No Catar, a finalidade é a mesma, mas com alguns ajustes forçados pelo contexto muito específico do país: «Devido às altas temperaturas que se fazem sentir durante o dia, somos obrigados a treinar apenas depois do por do sol, por volta das 18h30. É uma realidade totalmente diferente, mas que tem de ter a mesma finalidade. Fomos obrigados a ajustar as nossas rotinas. Aqui vive-se mais de noite.»

Português na pole position: porquê?

Hora de regressarmos ao ponto de partida, a exportação de talento em massa - jogadores, treinadores, treinadores-adjuntos - que Portugal tem conseguido para os maiores palcos do futebol mundial. A que se deve? Porque é que o treinador X quer um adjunto português e não espanhol, francês, inglês ou alemão?

«O treinador português tem sido muito procurado nos últimos anos fruto do seu know-how sobre a profissão, mas eu diria que existem quatro características que o distinguem: capacidade de adaptação aos contextos, capacidade de perseverança e superação perante obstáculos, facilidade em aprender idiomas e o uso da intuição», opinou João Sacramento.

qAcho que o que nos move é o amor que temos pelo jogo, porque faz parte da nossa cultura. Nós, portugueses, somos resilientes e inovadores

João Salgado

O técnico português argumentou de seguida: «O treinador português é determinado, valoriza a oportunidade que lhe é apresentada para poder trabalhar e sobretudo não perde tempo a lamentar-se. Estas caraterísticas são muito valorizadas pelos proprietários dos clubes mas também pelos próprios jogadores. Hoje em dia praticamente todos entendem e percebem o jogo, o conhecimento está ao alcance de toda a gente. A diferença está nas caraterísticas intra e interpessoais, que nos moldam como seres humanos. Aí, eu diria que os portugueses fazem a diferença.»

João Salgado reconheceu também o valor do conhecimento e destacou a evolução dos últimos anos no acesso à informação. Contudo, o antigo treinador-adjunto do Antalyaspor também embarca na questão da cultura portuguesa como arma e acrescenta ainda uma pitada de... amor: «Acho que o que nos move é o amor que temos pelo jogo, porque faz parte da nossa cultura. Nós, portugueses, somos resilientes e inovadores. Temos coragem de assumir algum tipo de comportamento ou tomar algum tipo de decisão e temos uma grande capacidade de adaptação a novas culturas e contextos.»

Influência do adjunto no todo: muita ou pouca?

«O que tenho sentido é que os modelos de hierarquia tradicionais estão cada vez mais em desuso», atirou João Sacramento, em relação à influência do treinador-adjunto na equipa técnica. «O tempo em que o treinador só confiava e ouvia o seu treinador-adjunto já lá vai. Aquilo que se tem vindo a verificar é uma tendência para a criação de equipas altamente multidisciplinares, em que cada elemento tem oportunidade de contribuir e sobretudo expor o seu ponto de vista. As equipas multidisciplinares têm a vantagem de oferecerem mais diversidade de conhecimentos e estimulam a inovação e a criatividade», explicou.

No seio desta equipa, naturalmente que o treinador continua a ser a peça central, a cola para todas as outras partes. «É o moderador que conduz este grupo de pessoas», opinou Sacramento. Os tempos, contudo, são outros e hoje é praticamente impossível o treinador conseguir ter controlo de tudo. «É fundamental delegar no staff. É crucial que cada elemento da equipa multidisciplinar filtre ao máximo a informação final a passar ao treinador. O tempo do treinador é precioso e como tal cada elemento deve assegurar que o treinador recebe o sumo», rematou.

@Paris SG

Nessa ótica da delegação de tarefas, voltamos a João Salgado, o homem que dava suporte a toda a estrutura na Turquia. «Havia sempre um treinador-adjunto principal, com responsabilidades acrescidas, e eu estava no suporte a tudo isto. O que fosse necessário fazer, eu estava sempre disponível para ajudar. As minhas tarefas ao longo dos anos foram sempre muito vastas», revelou o treinador-adjunto, que encontra semelhanças na forma de trabalhar de Nuri Sahin com a de João Tralhão. 

E porque não partilham só o primeiro nome, João Salgado e João Sacramento também estão de acordo em relação ao facto de que o tempo do treinador principal é precioso. «O nosso propósito é sempre enaltecer a ideia de jogo do treinador. Por vezes, é necessário criar algumas dúvidas ao treinador, porque as ideias também deve divergir e é nas pequenas diferenças entre nós que, por vezes, se chega a conclusões importantes. Também é necessário libertar um pouco o treinador das decisões e das ações de treinador principal, para que ele se possa focar noutras questões», concluiu Salgado.

Aos jogadores seguiram-se os treinadores. Aos treinadores seguiram-se os treinadores-adjuntos. A vaga de portugueses a dar cartas pelo Mundo parece ter vindo para ficar e mesmo sendo Portugal o pequeno cantinho na Península Ibérica, talento é coisa que continua a nunca faltar.

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