Águas do Tejo Atlântico: De residual a matéria-prima

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A evolução do tratamento linear de águas residuais onde o produto final é a rejeição de um resíduo, para um tratamento circular, em que a água assume uma nova vida no ciclo ambiental, económico e social (ganhando, inclusive, valor) faz toda a diferença. Mas são pequenas mudanças, como o léxico utilizado e a criação de marcas para os produtos das agora Fábricas de Água, que ajudam a fazer a grande mudança, a das mentalidades. Isso incentiva a mudanças de comportamento, não só quando há crises, mas também quando os golfinhos nadam no Tejo, defende Marcos Batista, director de Comunicação e Desenvolvimento da Águas do Tejo Atlântico.

Qual foi a principal inovação do projecto “The Linear Path to Circularity”, que levou à conquista da prata no IWA 2024 Project Innovation Awards?

A principal inovação foi uma visão que esta empresa desenvolveu para a água, encarando-a como uma só. O grande desafio não é transformar a água usada em reciclada, essa tecnologia existe há muitos anos. É alterar a mentalidade das pessoas, de forma a integrar o processo dessa transformação na eficiência hídrica.

O nosso sector é muito fechado. O que às vezes nos falta para romper um determinado paradigma é a capacidade de transformar o ciclo de vida de um produto. E a verdade é que esses ciclos são cada vez mais curtos. A capacidade que existe na sociedade de transformar tecnologicamente é muito mais rápida do que a nossa capacidade de nos adaptarmos a essa transformação. Não quer dizer que as pessoas não gostem de mudança. Elas gostam, e os estudos de mercado provam isso. Mas primam pela segurança.

Então como se consegue essa mudança?

Um cataclismo é sempre um acelerador: se houver uma seca imensa, é um catalisador. Se estivermos bem, é muito difícil fazer uma mudança, principalmente quando os ciclos de investimento são de 50 anos. E hoje não se consegue planear a 50 anos, como o comprovam os últimos 20.

O marketing, na sua génese, é transmitir segurança numa mudança. Já conseguimos ver que se trata de uma transformação necessária: os recursos naturais são escassos, acabam em Junho, mas cada pessoa faz a reciclagem dos seus papéis e isso, na sua cabeça, é suficiente. Só que não basta.

A água é muito mais do que aquela que nos aparece na torneira, serve para tudo e não pode ser substituída. Existe uma dependência da sociedade. E o paradigma da água dos últimos 50 anos, que criou um ciclo de investimento fortíssimo, gerado pelas Águas de Portugal, que transformaram o sector, ainda está a decorrer: a infra-estruturação do país, para assegurar a saúde, o bem-estar e a qualidade de vida. A tecnologia está disponível, a Namíbia transforma água usada, de esgoto, em água para consumo humano, desde 1968! O que se trata é de uma transformação de mentalidades, e é nisso que este prémio se traduz.

Quando partiram para Toronto, imaginavam que iriam regressar do Canadá com uma “medalha” de prata?

Sabíamos que estávamos nomeados, entre os três finalistas, portanto uma das “medalhas” íamos trazer. Já estávamos em êxtase, mas não fomos autorizados a fazer qualquer tipo de comunicação. Este prémio é um reconhecimento da International Water Association, são os “Óscares”. Foram 140 e tal candidaturas, de cento e tal países. E de repente estamos a “ganhar” à Fundação Melinda e Bill Gates, que concorreu com um projecto que tem na África do Sul. E perdemos para Pequim, que, quando faz qualquer coisa, implica milhões de habitantes.

Ficarem à frente da Fundação Melinda e Bill Gates, que arrecadou o bronze, deu um orgulho extra?

Deu, é verdade. Na cerimónia estávamos numa mesa mesmo junto ao ecrã e aparece “Fundação Melinda e Bill Gates”. Era um filme arrasador, uma região carente, os miúdos pequeninos a falar e nós ficámos logo a pensar que íamos ter de nos contentar com a prata. E depois passa o nosso filme, que estava bom, mas feito com as nossas capacidades. A seguir, veio Pequim, com um filme muito institucional, sobre os impactos.

Perguntei, a brincar, como é que tínhamos ganho ao Bill Gates. E disseram-me que esperavam um projecto transformador do país todo. Já Pequim, é transformador do mundo, qualquer coisa que façam tem um impacto muito grande. A nossa candidatura assentou em parcerias dinâmicas. Se não levarmos a sociedade connosco, estes prémios não são válidos para nada. Ficamos orgulhosos, mas o que queremos é dizer, “isto é possível”.

Como exemplo, é muito engraçado um município usar as denominações que criámos, tornando a “Fábrica da Água” e a água+ marcas distintivas. Quando criamos uma marca para uma água usada, ou reciclada, mostramos à população que estamos a transformar o produto de acordo com os valores e segurança para a sua utilização.

Mesmo os esgotos geram riqueza: têm energia, resíduos sólidos, que servem como biolamas… Só da Fábrica de Água de Alcântara saem 100 toneladas de lamas por dia. Conseguimos gerar coisas que hoje são um custo e que podem ser benefícios, reutilizados na produção agrícola. Aliás, Pequim ganha o ouro, em parte, com este projecto.

Sentiam que o objectivo de promover e inspirar pessoas, empresas e instituições para uma utilização responsável da água já tinha sido atingido, mesmo antes do projecto ter sido validado por este prémio?

É óbvio que este prémio também ajuda a valorizar. Mas não estamos sozinhos neste percurso: a ERSAR, a APA, os municípios, todos têm consciência desta dinâmica que está a ser alterada desde a década passada.

Esta consciência existe e não somos sequer os únicos em Portugal a fazer este trajecto. Graças às mudanças empresariais, conseguimos fazê-lo de forma estruturada numa empresa, que renasceu em 2017 e permitiu criar uma estratégia. Nessa altura, mudámos o nome das ETAR, lá estava aquela palavra, “residual”, que hoje, em consciência, não se pode usar. A água usada é um activo, uma matéria-prima: tem valor, não é um resíduo.

Como é que a empresa mede o impacto ambiental e económico do projecto?

Ainda são pequenas acções, mas, por exemplo, desde 2022 que regamos o norte do Parque das Nações com água reciclada. Só aí, já poupámos milhares de metros cúbicos. Temos projectos com a Lourinhã, Torres Vedras… Em Óbidos, existem projectos para as lamas. Também criámos outra marca, a biolamas+. Criamos marcas para conseguirmos aproximar.

Os humanos fazem parte do ciclo da água, mas conseguiram transformá-lo. Portanto, temos agora de o fazer de forma eficiente. A Fábrica de Água da Guia já chega a conseguir ser totalmente autónoma, por dias inteiros, ao transformarmos a digestão das biolamas em energia.

Já temos muita produção de energia: Frielas tem 43 por cento e Beirolas, 39%. Com investimento, conseguimos aumentar. Senão, ficamos expostos a aumentos de custos, porque o nosso principal consumível é a energia. Esse binómio está sempre presente, ou é a água que produz energia, ou a energia que produz água. Quisemos criar a possibilidade antes da necessidade: Orange County, nos EUA, produz água para a torneira a partir da usada, porque é preciso, eles não têm. Se os nossos comportamentos continuarem, já não é em Junho que acabam os recursos, é em Maio.

Os filmes de antecipação científica usam muitas vezes a água para traduzir uma evolução negativa. A nossa antecipação científica é positiva: isto é uma fábrica, entra matéria-prima, transformamos e dá para energia, biolamas, fertilizantes e água para consumos não potáveis. Porque não precisamos de potáveis. Ainda. Até já fizemos experiências-piloto, com fundos europeus, para vermos como transformamos a nossa água para potável. O que é que restringe? Estarmos a meio de um ciclo, usarmos as mesmas palavras, a mesma mentalidade. Inclusivamente, o não poder aumentar o preço da água, que devia ser das primeiras coisas a mudar.

» Marcos Batista, director de Comunicação e Desenvolvimento da Águas do Tejo Atlântico

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Marketing de águas e sumos”, publicado na edição de Setembro (n.º 338) da Marketeer.

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