Ambição renovada nos Açores: um ano da «pior época na I Liga» à «organização e foco»

1 mes atrás 54

No passado recente, o Santa Clara deixou uma imagem positiva na I Liga. Jogadores interessantes - Hidemasa Morita, Lincoln, Carlos Júnior -, treinadores promissores - João Henriques, Daniel Ramos - e campanhas felizes, que culminaram em idas à Europa. 22/23 foi o oposto, com o representante açoriano a descer à Segunda Liga. O regresso foi rápido, mas o que mudou? Qual foi o problema do irreconhecível Santa Clara que desceu? Como se reergueu? Como está agora?

Longe dos holofotes da I Liga, a descida acabou por fazer bem e revitalizou o conjunto de Ponta Delgada. Sem aquecer o lugar no segundo escalão do futebol português, os açorianos voltaram ao convívio com os grandes e logo com estrondo: a contundente vitória no terreno do Estoril (1-4) deixou água na boca e não abriu espaço a segundas interpretações: o Santa Clara está mesmo de volta.

Luís Cunha numa edição do programa Teledesporto

Para compreender este fenómeno, o zerozero falou com quem acompanha de perto o clube micaelense: Luís Cunha é comentador residente no Teledesporto, programa da RTP Açores que aproveita a noite de domingo para dar a conhecer os resultados da semana das equipas da região nas mais variadas modalidades.

A trágica (e incontestável) descida

Recuemos então a 2022/23. Vindo de uma temporada onde terminou em sétimo lugar, o Santa Clara, sem fazer prever, após 34 jornadas, acabou em último lugar: «O Santa Clara teve três treinadores nesse ano: Mário Silva, Jorge Simão e Danildo Accioly, um homem da casa. Além de não ter grande plantel, o Santa Clara não tinha uma grande organização, seja a nível do clube ou da SAD. Vivia muitas dificuldades: a contratar, com muitas dívidas... Enfim, assim é quase impossível aguentar.»

Em 22/23, os açorianos carimbaram a descida em Braga, na antepenúltima jornada @Manuel Morais / Kapta+

«Foi também um ano muito difícil pela transição entre SAD's. Foi vendida ao Bruno Vicintin- uma empresa de brasileiros - por uma empresa de turcos. A transição, ainda por cima, deu-se no início da época. Nem houve tempo para prepar a equipa. Por isso, desceram de divisão sem contestação. Foi o pior ano do Santa Clara na I Liga», salientou Luís Cunha.

Bruno Vicintin, a radiografia ao rosto do projeto

«Chegou um investidor do Brasil, uma pessoa com muitas posses, que gosta de futebol, que gostou dos Açores, da ilha de São Miguel, e fez uma aposta muito forte. Apostou bem, em bons jogadores, num bom treinador. Foi tudo uma surpresa - e bastante agradável», admitiu o comentador.

Como Luís Cunha notou anteriormente, o primeiro ano de Bruno Vicintin foi o fatídico ano da descida. Ainda assim, apesar do começo infeliz, o balanço, até ver, é positivo: «Há algo que importa perceber: investir no futebol português é difícil para qualquer empresário que venha do estrangeiro, investir em ilhas é muito mais difícil.  Ele investiu muito dinheiro, porque adquiriu a SAD e teve de pagar muitas dívidas atrasadas. Ainda fez investimentos na ilha de São Miguel. Gostou da ilha e isso foi um fator importante nesse processo.»

Desde a sua génese, o futebol pertenceu ao povo. Nesse sentido, é normal que exista algum estranhar por parte do povo no momento em que um determinado investidor chega e passa a liderar os destinos do clube. Um estranhar que, com Vicintin, na ótica de Luís Cunha, rapidamente se entranhou: «Houve um desligar muito grande [da massa adepta] com o anterior presidente da SAD. O Bruno, contudo, mostra-se; comprou uma casa em São Miguel, passeia na marginal, faz as suas caminhadas, cumprimenta toda a gente... Está muito próximo das pessoas e, por isso, as pessoas começam a retribuir e a sentir confiança.»

«O futebol, nos Açores, mudou com esta administração do Santa Clara, porque isto é uma empresa. O clube, neste momento, tem apenas 40 por cento. O Bruno Vicintin tem as suas empresas e nenhuma delas, incluindo o Santa Clara, é para dar prejuízo. Tem de rentabilizar o investimento que fez, é mesmo assim», Luís Cunha concluiu, desta forma, a apresentação do acionista maioritário do Santa Clara.

Bruno Vicintin, o grande acionista do Santa Clara @CD Santa Clara

Receita para o sucesso? Consolidar 23/24 em 24/25

«O mister Vasco Matos pegou nos cacos todos, juntou-os e, com alguns jogadores que lhe foram dando, conseguiu fazer um plantel fortíssimo. Foi um justo vencedor da II Liga», começou por recordar quando o tema chegou ao segredo da temporada do título da Segunda Liga.

Mais que mudar, para Luís Cunha, o grande objetivo para a presente temporada deve passar por «consolidar» os processos: «Sem dúvida. 90 por cento do plantel manteve-se, os jogadores que foram dispensados não eram titulares. Depois, é lidar com percalços que apareçam pelo caminho.»

 «á na época passada, o Vasco Matos teve problemas, com a lesão do Adriano Firmino, que era um jogador muito importante; este ano, voltou a ter problemas no início de época: o central Pedro Pacheco, que fez uma temporada [passada] extraordinária, que se lesionou na pré-época e já foi operado ao joelho.»

«Por acaso, estive a falar com o Vasco Matos e ele disse-me: "Meu amigo, eu sou pago é para arranjar soluções". Conseguiu-o, como mostrou no campo do Estoril. O próprio treinador obriga a que a estrutura esteja fechada em si; ou seja, há ali um foco muito grande no trabalho: isso é que Vasco Matos trouxe ao Santa Clara. Por isso, não vai mudar grande coisa, é só continuarem organizados», aconselhou Luís Cunha.

Vasco Matos renovou no início desta época, até 2026 @CD Santa Clara

Entre confissões, o jornalista continuou: «Vou-lhe contar outra: estive à conversa com o Vasco Matos antes do jogo contra o Estoril. Disse-lhe que esta administração tem uma despesa louca; além de terem a equipa principal, têm os sub-23, a equipa B... cada escalão tem cerca de 15 pessoas a treinar. Ao todo, jogadores e staffs, devemos estar a falar de 200 pessoas: é muita gente. Por isso, perguntei-lhe se não era mais fácil e mais rentável ter um edifício único, para os jogadores estarem todos juntos. Ele respondeu-me de forma interessante: com estas idades e com estas culturas, não devemos ter todos [os atletas] no mesmo bloco de apartamentos, temos de os ter dispersos. Caso contrário, há sempre confusão.»

«Eles aprenderam com isso. Na época da descida, chegaram a viver sete ou oito jogadores na mesma casa e era um forrobodó. Agora não. O Santa Clara tem tudo separado, com elementos a vigiar. Demonstra a organização que há e o foco no trabalho», continuou.

Para encerrar o dossiê Vasco Matos, Luís Cunha fez questão de referir: «É uma pessoa dura, no bom sentido da palavra, de muito trabalho. Não dá grandes confianças.»

Um mercado diferente (e explicado)

Ao analisar a janela de transferências do clube recém-promovido à I Liga, saltam à vista os negócios com o FC Alverca: para já, são três entradas e nove saídas entre os Açores e o Ribatejo. Luís Cunha fez questão de explicar ao detalhe a ligação peculiar entre os dois clubes.

João Costa foi um dos jogadores envolvidos nos negócios entre Santa Clara e FC Alverca @Kapta+

«O Bruno Vicintin deixou de ser, oficialmente, o presidente da SAD e passou a ser o acionista maioritário do Santa Clara. Está relacionado com questões legais. O pai do Bruno era dono do Alverca, o engenheiro Ricardo Vicintin. Eles tomaram a decisão e deixaram de ser presidentes da SAD. Passaram a ser acionistas e, por isso, podem fazer os negócios que entenderem. Se continuassem a ser presidentes da SAD, nem a lei permitia esses negócios», explicitou.

 «Ainda por cima, são negócios vantajosos; fica bem servido o Santa Clara e o FC Alverca. São empresas que dominam no Brasil, trazem jogadores de lá para os valorizar e ganhar dinheiro com eles. No fundo, quem é que não quer isso? Não acaba por ser esse o objetivo do futebol profissional? Se assim não fosse, o Santa Clara estaria no campeonato regional

Por fim, o futuro

Inevitavelmente, não podíamos ignorar o motivo que nos levou a esta conversa. O Santa Clara, líder do campeonato, recebe o FC Porto, um dos candidatos ao título. Para Luís Cunha, os dragões são favoritos, mas há fatores a ter em conta. 

«O FC Porto vai ter, desde já, um problema: o jogo é às 16h da tarde; há 30 anos que, nos Açores, não existia uma temperatura tão alta e a humidade vai ser muita, como de costume, a rondar os 90 por cento. Os jogadores do Santa Clara treinam diariamente em São Miguel e já estão minimamente habituados àquela humidade; por isso, levam um pouco de vantagem nesse sentido. Ainda assim, o FC Porto está muito bem, melhor que o que se poderia pensar», referiu.

«Vão ser duas equipas bem apetrechadas, com dois treinadores jovens. Ambos inteligentes e a querer vingar no futebol profissional, na primeira época como treinadores principais na Primeira Liga. Por estas razões, espero um jogo extremamente interessante», perspetivou Luís Cunha.

Em tom de conclusão, quando questionado se este Santa Clara tinha capacidade para realizar uma das melhores campanhas do clube no principal escalão, Luís Cunha mostrou-se confiante: «Acho que sim. O plantel conhece-se muito bem. Tem jogadores que já deviam ter dado o salto para outro patamar - e vão dar. Há um jogador que, neste momento, é titular e que raramente foi titular na época passada: o Gabriel Silva. Esta temporada, toda a gente vai falar dele. Além disso, há muitos jogadores de excelente nível: o Serginho, o Pedro Ferreira, o Pacheco, o Gabriel Batista... Jogadores que vão aparecer e vão dar muito trabalho. Não quer dizer que a equipa vá fazer melhor que a campanha do Daniel Ramos, mas este Santa Clara deve lutar para o meio da tabela, sempre mais para cima do meio e não para baixo, na minha opinião.

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