Ana Gomes: “Há várias disfunções da Justiça que também são responsabilidade dos políticos”

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Em entrevista ao JE, a antiga eurodeputada defende uma reforma profunda no campo da Justiça. Juiz de instrução do caso que envolve o ex-presidente da Câmara do Funchal é “inapto” para a função, diz Ana Gomes, mas a investigação das autoridades tem fundamento, acredita. Zona Franca da Madeira facilita “a criminalidade organizada a nível global”, acusa a ex-eurodeputada socialista.

Ana Gomes considera que o país precisa de uma “reforma de fundo” na Justiça, defendendo uma maior ambição neste campo no programa eleitoral do Partido Socialista (PS). Em entrevista ao Jornal Económico (JE), à margem da conversa “Que futuro para a Democracia portuguesa?”, organizada pelo município de Porto de Mós no âmbito das celebrações do 25 de Abril, a antiga eurodeputada pronunciou-se sobre os últimos desenvolvimentos do caso Madeira, o estado da Justiça em Portugal, a governação socialista e as diferenças entre António Costa e Pedro Nuno Santos.

Quais foram os maiores erros da maioria socialista?

Eu acho que não é o momento para os relembrar, mas eu fui apontando, nos meus comentários semanais, vários deles. E de alguma maneira, quase que antecipei que eles iam acontecer, porque tive medo que a maioria absoluta desse uma sensação de “rei na barriga”, de arrogância. E viu-se logo, até pela falta de ambição do Governo, que foi constituído depois de a maioria absoluta ter sido dada ao primeiro-ministro António Costa, que de facto não existia a ambição. Eu tive muito a sensação que, por vezes, se governava mais para Bruxelas do que propriamente para os portugueses. Não quer dizer que muitas das medidas não fossem boas e não fossem positivas. Mas não houve suficiente atenção e suficiente capacidade de comunicar. E, sobretudo, o que mais me preocupou foi não ver ambição para fazer as reformas de fundo que são necessárias, que eram necessárias já antes e que em que havia a desculpa da geringonça que não deixava. Ora, não era a geringonça que não deixava, porque, obviamente, as reformas, para serem reformas, têm de ser consensualizadas o mais abrangentemente possível. E algumas eram essenciais, designadamente para pôr o país a crescer significativamente.

Como avalia a governação de António Costa?

Eu temi que a maioria absoluta fosse vista com alguma jactância e sem o ímpeto reformista que eu acho que era essencial. E que explica que, embora tivesse havido muito bom trabalho em muitas áreas, faltaram questões centrais de fundo que levaram a que se agravasse a perceção dos portugueses relativamente aos problemas do país.

Passando ao sucessor de Costa no partido, o que motivou o seu apoio a Pedro Nuno Santos?

Porque conheço-o, gosto dele e acho que ele tem as características. É evidente que eu sei que ele está a fazer a campanha em condições extremamente difíceis, desde logo por ter de defender uma herança de oito anos do Governo. Tem coisas boas, mas também tem outras que desapontaram os portugueses. E, por outro lado, porque ele teve pouco tempo para se preparar. Ele não estava, obviamente, a contar – ninguém contava – que o Governo caísse da forma como caiu. E, portanto, é evidente que isso torna as condições extremamente difíceis para qualquer novo secretário-geral do PS. E, naturalmente, para Pedro Nuno Santos em particular. Mas confio nele. Gosto dele, Conheço-o. Sei que é um homem de convicções e de objetivos e de capacidade de fazer, de transformar a economia. Acho muito positivo que ele tenha esse objetivo, que tenha enunciado desde logo a necessidade de transformar a nossa economia e ter ambição para nós, para o crescimento económico do nosso país.

Deu contributos para o programa do PS?

Não, eu sou só militante de base. Faço os meus comentários públicos. Não estive de todo na estrutura de campanha, nem da estrutura de redação do programa. Para o meu gosto, teria sido muito mais ambiciosa.

Em que áreas?

Naquelas em que todos estamos a ver que precisamos absolutamente de reformas de fundo. A justiça e a fiscalidade. Acho que não é impeditivo que elas se façam depois, por não estarem no programa neste momento. Mas gostaria que elas estivessem mais explicitamente enunciadas no programa. A habitação é diferente. Já muitas medidas foram tomadas, simplesmente ainda não começaram a produzir os seus efeitos. E outras ainda nem sequer foram abandonadas. Por exemplo, sabemos que boa parte dos preços dos arrendamentos e a especulação imobiliária têm a ver com as borlas fiscais que foram dadas aos residentes não habituais e aos vistos gold. E o último Orçamento só faz adiar o fim disso. Não acabou já com esses esquemas, só adiou para mais um ano.

E o que é que distingue estes dois líderes?

Eu acho que Pedro Nuno Santos tem outra visão. Tem uma visão realmente mais social-democrata na vertente transformadora da economia e na vertente do Estado Social, do reforço do Estado Social. E daí que eu penso que ele tem as características para, sem desfazer aquilo que foi feito de bom pelo Governo de Costa, poder ir mais além, ser mais ambicioso para o crescimento do país. Manter, obviamente, o rumo das contas certas e da descida gradual da dívida, mas fazendo um investimento público significativo que não foi feito nos últimos anos, e um investimento público direcionado para as áreas que se entenderem que são estruturantes de um novo tipo de crescimento económico, que crie valor acrescentado e que, de facto, ponha o país a ter melhores salários. É uma questão essencial, designadamente para podermos manter e aproveitar os talentos e as qualificações dos nossos jovens.

Que cenários aponta para 10 de março?    

Não ligo muito as sondagens, acho que são retratos do dia a dia. Acho que ainda há muita gente indecisa. Acho que vai ser importante o debate da próxima segunda-feira entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro (nota: esta entrevista foi concedida antes do debate de 19 de fevereiro). As questões da economia e do desenvolvimento económico do país vão ser muito, muito importantes para fazer decidir muitos eleitores que neste momento não sabem bem ainda para onde ir. Penso que para o Pedro Nuno Santos é muito importante mostrar que, tendo essa ambição e essa capacidade transformadora, vai reforçar e não enfraquecer o nosso Estado Social, designadamente o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública, resolvendo conflitos que não havia justificação, na minha opinião, que se tivessem perpetuado, por exemplo, com os professores, com os médicos, etc. E, portanto, espero que daqui até ao dia 10 de março, uma maioria de eleitores entenda que Portugal deve continuar com o rumo socialista, com correções, sem dúvida, na trajetória e ambição. E que Pedro Nuno Santos é o que tem mais capacidade de nos levar a isso. Portanto, espero que haja uma maioria que não seja, naturalmente, uma maioria absoluta, mas uma maioria relativa.

À imagem da geringonça?

Com todos os partidos à esquerda, incluindo o PAN, que é de centro, digamos, a uma maioria o mais alargada possível, com compromissos escritos, depois, acho que é muito importante, em vez de ser aquele género de acordos paralelos que houve na geringonça e, portanto, com metas, com objetivos. Acho que isso pode dar estabilidade e também transformação positiva ao país. E penso que o consenso que é consensualização da governação, que é preciso é que se pode fazer à esquerda, vai ser mais fácil fazer a esquerda do que se eventualmente se desse uma maioria a ser liderada pela direita.

É cética quanto ao “não é não” de Montenegro?

Eu até acredito que o Montenegro esteja a ser honesto neste problema. O problema é que Montenegro pode sair no momento a seguir, não tendo, no entanto, a possibilidade de formar uma maioria à direita, e nesse caso virá Passos Coelho ou uma outra figura qualquer que não terá os mesmos pruridos e que fará uma coligação que inclua um entendimento que inclua o Chega. E eu penso que isto seria um desastre absoluto para o nosso país e, portanto, espero que não se verifique. Está para além de Montenegro. Porque já fizeram esse tipo de acordo em 2020, nos Açores, e o programa do Chega e aquilo que se propunha fazer era muito pior do que aquilo que eles hoje afivelam, mas muito pior. Em termos de fascismo. Eram fascistas que queriam destruir a Terceira República. O discurso agora é o lobo com pele de carneiro, mas o lobo está lá na mesma. E quando o lobo era o lobo que descarada e despudoradamente queria acabar com o Serviço Nacional de Saúde, queria vender as escolas aos professores e acabar com o ensino público. Queria acabar com o próprio cargo de primeiro-ministro; de que o Presidente da República seria ele, Ventura, também primeiro-ministro. Portanto, havia um esquema de poder pessoal ditatorial. Tudo isto era o programa do Chega em 2020 e foi com esse Chega que o PSD regional, mas com a chancela do nacional, decidiu coligar-se.

Passando à Justiça, como olha para os últimos desenvolvimentos da Operação Zarco”? 

Com grande apreensão. A Justiça precisa de uma reforma de fundo. E não é que ela não tenha profissionais de alto nível, mas precisam de ser devidamente apoiados, formados e treinados. Há quanto tempo é que o Centro de Estudos Judiciários não dá uma formação sobre o combate à criminalidade organizada e ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo? Precisam de meios, de peritos, sobretudo para o combate à corrupção e à criminalidade económica. Frequentemente, a corrupção está ligada à grande criminalidade económica, designadamente criminalidade organizada. Os esquemas de corrupção que existem hoje no nosso país muitas vezes não são só de origem endémica. Têm a ver com os esquemas do neoliberalismo global que facilitou, por exemplo, as transferências para offshore, o parqueamento de capitais em jurisdições sem transparência. É intolerável que a única reforma que foi feita até hoje tenha sido perversa porque pôs em causa, no fundo, a hierarquia do Ministério Público (MP). Neste momento, eu não culpo o MP por estes últimos incidentes sobre a Madeira. Eu culpo o Conselho Superior da Magistratura, designadamente no anterior mandato, que deixou o juiz de instrução, sabendo que é uma pessoa profundamente doente e inapta para o serviço, a estar com a responsabilidade de produzir decisões, ainda que só ao nível da jurisdição, sobre casos. Estamos com várias demonstrações de terríveis disfuncionamentos da Justiça, que em boa parte são responsabilidade dos políticos que, nos últimos anos, abdicaram fazer aquilo que é a sua responsabilidade. Eu nunca aceitei nem apoiei o mantra de António Costa de que “à justiça o que é da justiça, à política, o que é da política”. Há decisões da política que são essenciais para que a Justiça funcione, para que faça, com autonomia e independência, o seu trabalho de combate à criminalidade organizada. Eu não aceito que, até hoje, o MP não tenha levado a julgamento os responsáveis do chamado caso Monte Branco. Se tivessem feito, o caso BES e outros casos de criminalidade organizada em torno do sistema financeiro teriam sido detetados muito antes. Há várias disfunções da Justiça que têm depois consequências noutros planos e que também são responsabilidade dos políticos que não quiseram, que se intimidaram e que não quiseram de facto, lidar com esses problemas naquilo que lhes compete. Obviamente, não lhes compete interferir com as decisões da Justiça, mas compete-lhes dar os meios para agilizar e fazer funcionar a Justiça. Tenho defendido que nós precisávamos de avançar para um sistema de perda alargada em favor do Estado e de confisco de ativos para o combate à criminalidade organizada, como tem sido defendido de forma perfeitamente canhestra e populista, por exemplo, pelo líder da extrema-direita. A lei de recuperação de ativos que nós temos desde 2005, que está profundamente desatualizada, não dá às polícias e as magistraturas os meios para efetivamente combater a criminalidade organizada, onde ela mais dói aos criminosos. Tal como o produto da droga pode ser imediatamente apreendido pelo Estado, também o produto da corrupção e da criminalidade económica e financeira devia ser imediatamente apropriado pelo Estado, independentemente depois, por uma Justiça que, obviamente, não devia demorar tempo, viesse a determinar quem são os responsáveis pelo crime.

Deve a Procuradora Geral da República dar explicações públicas sobre este caso e tirar consequências?

Eu não estou convencida que aqui seja o Ministério Público e a procuradora que têm explicações a dar. Seria tão monstruoso acreditar que a operação de investigação na Madeira era completamente destituída de fundamento, tendo ela envolvido tantos responsáveis das magistraturas, do MP, da Polícia Judiciária, etc. Para mim, apesar de tudo, é mais aceitável a explicação de que o problema está no juiz de instrução, que eu sei, por informações que tenho de operadores do sistema, que de facto tem um problema de saúde grave que o torna inapto para tomar aquela decisão. Eu sei porque investiguei a Zona Franca da Madeira, fui lá, falei com operadores, fiz uma queixa à Comissão Europeia, em 2017. Eu sei que a Zona Franca da Madeira, tal como foi operada e continua a ser um esquema de facilitação da criminalidade organizada a nível global. Isto não pode deixar de refletir-se em quem é responsável na Madeira pelo Governo ou desgoverno da Madeira. Sei que isto prejudica o povo madeirense, desde logo nos índices da de apoio comunitário. Isso é altamente corruptor do poder na Madeira e, portanto, eu acredito que a operação tem fundamento. Não sei se o MP fez competentemente essa investigação, mas acredito que sim, que investigar a Madeira fazia sentido e era imperativo.

Em relação ao combate à corrupção, como olha para as propostas do programa do PS?

Eu sou muito mais exigente. O programa, para mim, é aceitável, mas a prática vai exigir muito mais ambição do que aquilo que consta no programa. Nalgumas matérias será mais ambicioso. Nas áreas da Justiça, parece me que é bastante conservador e eu quero ver mais ambição. Mas não, o programa não exclui, pelo contrário, que, sendo o PS eleito para governar, depois venha a ter mais ambição.

E que reformas é que o país precisa?

São muitas. Por exemplo, desde logo assumir que a Justiça é uma área que precisa absolutamente de atenção e meios. Tudo o que contribua para agilizar o combate à criminalidade organizada, económica e financeira e a evasão fiscal; tudo o que dê meios às polícias e às magistraturas para atuarem com rapidez face ao tipo de criminalidade organizada com que estamos confrontados. E com competência, naturalmente, é o que é prioritário. Penso que uma revisão da Lei de Recuperação de Ativos com vista a reforçar a perda alargada em favor do Estado, do produto da corrupção e da criminalidade, do tipo branqueamento de capitais e evasão fiscal, era essencial, aliás, em aplicação da lei europeia, que foi mal transposta para a lei portuguesa, na qual trabalhei no Parlamento Europeu.

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