BRICS. Putin tem "vitória diplomática", mas cabe à China o papel de "ator principal"

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Cimeira de Kazan

22 out, 2024 - 06:12 • Miguel Marques Ribeiro

Em declarações à Renascença, Ricardo Ferreira Reis, da Universidade Católica de Lisboa, admite que Vladimir Putin vai, inevitavelmente, recolher frutos da cimeira dos BRICS, que começa esta terça-feira, em Kazan. Ainda assim, vai chegar "a hora em que a Rússia vai ter dificuldade em afirmar-se como líder perante a China".

A cimeira dos BRICS começa esta terça-feira em Kazan, na Rússia, prolongando-se até quinta-feira.

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul são os países fundadores de uma aliança que conta já com dez parceiros do chamado “sul global”. O bloco abrange 3,2 mil milhões de habitantes.

Em declarações à Renascença, o diretor do Centro de Estudos Aplicados da Universidade Católica de Lisboa (CEAUCL), Ricardo Ferreira Reis, admite que Vladimir Putin vai, inevitavelmente, colher frutos do encontro, aproveitando a oportunidade de surgir ao lado de diversos líderes mundiais.

"Sim, vai ser uma vitória diplomática da Rússia, porque vai ter muita gente na fotografia", declara. Segundo Moscovo, vinte dirigentes de todo o mundo vão marcar presença em Kazan, entre eles António Guterres, que deverá reunir com Putin na quinta-feira.

"Putin poderá dizer que são uma força a ter em conta nas Nações Unidas. E que não é óbvio que estejamos todos do lado dos Estados Unidos na condenação da Rússia. Que ele tem muitos amigos pelo mundo fora."

Liderança é chinesa

A realização da cimeira, "desde logo é uma procura de afirmação da Rússia enquanto ator principal nas relações internacionais e há uma procura da Rússia de criação de um bloco alternativo às democracias ocidentais. E isso é mais do que evidente, na estratégia de Putin de recolocação da Rússia num patamar de liderança de um bloco alternativo", acrescenta Ferreira Reis.

Lá chegará a hora em que a Rússia vai ter dificuldade em afirmar-se como líder perante a China

No entanto, para Ricardo Ferreira Reis, esta aliança global, à qual, para além dos cinco fundadores, já se juntaram o Egito, o Irão, os Emirados Árabes Unidos e a Etiópia, será inevitavelmente liderada pela China e não, como gostaria Putin, pela Rússia.

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"Esquece-se a Rússia, que quem lidera esse bloco nunca seria a Rússia, mas a China, porque é muito mais importante do que a Rússia neste patamar. Lá chegará a hora em que a Rússia vai ter dificuldade em afirmar-se como líder perante a China", refere.

Bloco heterogéneo e com tensões

Para Ricardo Reis, é importante não olhar para os BRICS como um grupo homogéneo. Existem diversas "tensões", desde logo entre a Rússia e a China.

"A milenar diplomacia chinesa é muito orientada para a negociação, para a transação, para as trocas comerciais. A tradição chinesa é uma tradição de paz. A guerra é usada como último recurso, não é posta de parte, mas o esforço é, ao contrário do da Rússia, de começar pela paz. Portanto, a China começa sempre pela paz."

O investigador sublinha ainda a ligação que os chineses pretendem manter com o Ocidente. "Continua a ter um interesse comercial fortíssimo com o Ocidente e com os Estados Unidos em particular. Não é em vão que as novas rotas da seda chinesas não acabam em Moscovo. Acabam aqui, deste lado". O desígnio do gigante asiático será sempre o de "ser um país central no mundo todo e não apenas em parte dele".

Não é em vão que as novas rotas da seda chinesas não acabam em Moscovo. Acabam aqui, deste lado

As tensões dentro dos BRICS não se ficam por aqui. Ricardo Ferreira Reis dá o exemplo da China e da Índia, dois países entre os quais há também um oposição latente. "A Índia vai continuar a ter uma necessidade fortíssima de ligação ao Ocidente por motivos históricos e também por um motivo de afirmação dentro deste bloco por contraposição à China", aponta o diretor do Centro de Estudos Aplicados da Católica.

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Assim, apesar dos esforços desenvolvidos pela Rússia para sobressair no xadrez das nações, os resultados vão continuar a beneficiar sobretudo a China. Sobretudo, porque os resultados deverão ser mais económicos do que políticos, antecipa o diretor do CEAUCL.

Economia acima da política

Os BRICS "rapidamente perceberam que a zona onde mais facilmente se punham de acordo era economia. O resto é mais complexo". Daí um dos projetos mais avançados ser o desenvolvimento de um banco de cooperação (dirigido por Dilma Rousseff), que poderá ser acompanhado da criação de uma divisa de circulação global alternativa ao dólar.

"É por aí que estão a começar", explica o especialista, para quem a Rússia gostaria de ir mais longe.

"Não é esse o objetivo da Rússia. A Rússia, claramente, quer ir mais além. Mas a percepção que fica é que a China já ficava muito satisfeita se resultasse na perspectiva económica, mais uma vez pragmaticamente, à boa maneira chinesa, achando que atrás da economia as outras coisas viriam mais ou menos por por arrasto".

Rapidamente perceberam que a zona onde mais facilmente se punham de acordo era economia. O resto é mais complexo

Assim, na mesma linha, Ricardo Ferreira Reis considera que os resultados esperados da cimeira que se prolonga até quinta-feira deverão ser sobretudo ao nível económico. Assim, é esperada a assinatura de diversos acordos de cooperação económica entre as nações participantes, aquilo a que se costuma chamar "o fruto que está abaixo na árvore, porque pode-se colher facilmente".

Já no plano político, espera-se que resulte dos encontros uma declaração favorável à paz global. "Uma pretensão a favor da paz global, assinada pela Rússia tem um certo significado , mas eles não irão muito mais longe do que isso", avança Ricardo Reis, que não espera grande "entusiasmo" caso Putin procure o apoio à invasão da Ucrânia junto dos seus parceiros.

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Numa eventual declaração final, também "poderá haver uma condenação de Israel", em linha com a demarcação relativamente ao ocidente que os BRICS têm demonstrado.

É a China que vai dar o sinal

Por causa de todas estas nuances, Ricardo Reis vai estar particularmente atento ao comportamento da China durante a cimeira. "O que eu tenho mais curiosidade nisto é perceber qual é o entusiasmo que a China vai ter nesta nesta matéria? Quão visível vão ser os altos representantes da República Popular da China neste evento e que envolvimento vão ter", diz

Outro país que vai estar sob os holofotes dos países ocidentais é a Turquia, membro da NATO que já manifestou interesse em aderir aos BRICS, juntamente com Cuba, Venezuela, Azerbaijão e Malásia.

A Turquia vai ver onde param as as coisas

"Putin tem tentado, desde o princípio, promover uma desunião junto da da NATO" e a "Turquia é claramente o ponto crítico nesse contexto", avisa Ricardo Reis, opinando que foi um erro não ter aceitado a adesão do país otomano à União Europeia.

Ainda assim, o docente não acredita que Putin venha a conseguir os seus intentos. "A Turquia vai ver onde param as as coisas, mas não me parece que seja muito fácil convencer Erdogan a virar completamente para o outro lado", conclui.

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