Caça, companhia, alimento. Uma brevíssima história da nossa relação com os animais

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As pinturas de Lascaux e Altamira mostram que desde tempos imemoriais os animais exercem sobre o homem uma atração magnética. Ao longo da História alguns têm sido objeto de adoração; hoje destinam-se quase todos a abate.

Menos célebre do que as pinturas de animais selvagens de Lascaux e Altamira, uma modesta estatueta deteve até 2021 o estatuto de obra de arte mais antiga do mundo. Descoberta em agosto de 1939 numa gruta do sudoeste da Alemanha, os seus mais de 200 fragmentos estiveram esquecidos durante trinta anos numa gaveta do Museu de Ulm, até que um arqueólogo se interessou por eles e se dedicou a montar o quebra-cabeças. O resultado foi uma estatueta com cerca de 30 centímetros que se pensa ter sido feita há 40 mil anos: chamaram-lhe o Homem-leão de Hohenstein-Stadel, embora o sexo da figura ainda seja objeto de discussão.

O que revela este híbrido entre ser humano e animal? Há dezenas de milhares de anos, muito antes de Aristóteles dividir os animais em racionais e irracionais, é altamente provável que essas fronteiras fossem mais ténues e que os nossos antepassados não se considerassem uma categoria à parte dos restantes mamíferos. Olhavam para estes, sobretudo para os mais possantes, com um misto de assombro e reverência. E, quem sabe, com uma pontinha de inveja. A sua força, velocidade e agilidade dariam muito jeito para a caça. Ao mesmo tempo, as suas peles coloridas, as suas formas perfeitas e musculosas deviam provocar medo, mas também fascínio.

Talvez o criador do Homem-leão estivesse a imaginar um ser humano dotado das capacidades espantosas de ataque de um leão. Ou teria antes representado uma espécie de feiticeiro que punha sobre a sua própria cabeça a do animal, para desempenhar um qualquer ritual mágico ou religioso? A 40 mil anos de distância, é impossível formar grandes certezas.

O que sabemos com segurança é que desde a noite dos tempos os animais exerceram sobre o homem uma atração magnética, quase hipnótica. Por isso foram representados há 30 mil anos em Chauvet, há 24 mil anos em Foz Coa, há 17 mil em Lascaux , há 14 mil em Altamira e em muitos outros locais por onde o Homo sapiens vagueou.

“A ambiência da grande sala de Altamira é impossível de reproduzir”, notou o artista maiorquino Miquel Barceló, que visitou todas as principais grutas onde o homem pré-histórico deixou a sua marca artística. “Quando andamos pelas salas subterrâneas os animais aparecem e desaparecem, pois os artistas conseguiram a proeza de materializar a ideia de velocidade, com a vontade de dar a imagem do mundo”. E continuava: “O que me espanta em Chauvet é que os animais nunca são icónicos. Os artistas não pintam um leão repetindo as silhuetas. Cada leão é um leão particular. Podíamos dar-lhe um nome e um apelido”.

O_cão, o primeiro amigo do homem Há 12 mil anos, não muito depois de os artistas do Paleolítico terem pintado os bisontes dos tetos de Altamira, o homem começou a domesticar os animais. O primeiro a ter esse privilégio questionável terá sido o cão, na Ásia Ocidental. Sendo os lobos – os antepassados dos cães – animais ferozes, talvez inicialmente fossem capturados ainda bebés e criados em cativeiro, estabelecendo-se assim uma relação em que o homem não corria riscos e até tirava benefício, tanto em termos de proteção como na caça, uma atividade essencial para a sobrevivência.

“Os cães eram particularmente apropriados para o estilo de vida dos caçadores-recoletores da era glacial, mas foi só há 11500 anos, quando o ser humano começou a fixar-se em povoados, que a domesticação dos animais começou em força”, escreve Graham Lawton em A Origem de Quase Tudo (ed. Marcador). “Os porcos foram os primeiros, seguindo-os pouco depois as cabras e os ovinos. Estes animais foram quase de certeza domesticados pela sua carne, lã, chifres e peles”.

Mas como convencer um animal selvagem, especialmente se fosse de grande porte, a deixar-se aprisionar em benefício da espécie humana? Os nossos antepassados dispunham de uma arma secreta capaz de fazer verdadeiros milagres. “A subjugação inicial do gado foi provavelmente conseguida colocando provisões de água e de sal em pontos fixos das redondezas, que encorajavam animais livres a ficar perto de povoações e a habituarem-se gradualmente às pessoas”, explica John Reader em África – A Biografia de um Continente (ed. Europa-América). O autor apresenta o caso da zona montanhosa de Assam, no Norte da Índia, onde os residentes atraem touros selvagens da floresta com sal. “Pode-se aproximar e fazer festas aos animais, e até dar-lhes o sal à mão”.

Acerca dos rebanhos e manadas, escreve Reader: “A pastorícia era vista como uma nobre tarefa. Os pastores tornaram-se chefes que realçavam o seu apego à vida pastoral, e não apenas mediam a riqueza pela quantidade de cabeças como valorizavam as qualidades distintivas, até mesmo estéticas, dos próprios animais. Em suma, o gado tornou-se objeto de adoração”. Torna-se assim mais fácil de compreender por que os hebreus idolatraram o bezerro de ouro enquanto Moisés se encontrava no Monte Sinai a receber as tábuas da lei. O animal era um símbolo de poder e riqueza.

Da deusa egípcia à gata de Lagerfeld Além dos cães, dos porcos, das vacas e das ovelhas, também o gato se tornou uma presença comum junto do homem, tendo sido domesticado há cerca de 11 mil anos. “O seu antepassado selvagem é o Felis silvestres lybica do Próximo Oriente, talvez atraído aos povoados humanos pelos roedores que se ajuntavam nas proximidades dos depósitos de cereais”, refere Lawton em A Origem de Quase Tudo. No Egipto, como na Europa medieval, os gatos tornaram-se aliados preciosos do homem para proteger os alimentos da cobiça dos ratos. “Os humanos teriam reparado na sua utilidade como controladores de pragas e também no seu aspeto adorável”, continua Lawton. “Adorável” é a palavra certa: no Antigo Egipto, os gatos foram adorados sob a forma da deusa Bastete, protetora das casas e dos templos.

Mas também no mundo moderno continuam a ser objeto de adoração. Em 2015, Karl Lagerfeld declarou ao Le Figaro que designava a sua gata Choupette como uma das suas herdeiras, tendo-se especulado, quando o estilista morreu em 2019, que o animal poderia receber qualquer coisa como 300 milhões de euros. A própria Anna Wintour, diretora da Vogue, disse que “na próxima vida gostaria de reencarnar como Coupette, um gato extremamente belo e burguês, que tem duas criadas, um cozinheiro, um cabeleireiro pessoal e vários colares de diamantes”.

A realidade da vida animal é bem diferente deste mundo privilegiado. Segundo a plataforma our world in data, estima-se que nos últimos cem mil anos a biomassa de mamíferos selvagens tenha caído 85%. Hoje estes representam apenas 4%, enquanto os homens representam 34% e os animais para consumo humano constituem a grande maioria, com 62%. Quanto mais cresce a população do planeta, maior é a percentagem de animais criados para nos servirem de alimento. E esses são pouco mais do que carne para canhão, ou, mais concretamente, para abate.

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