Chega: uma máquina de captar ressentimento

8 meses atrás 73

Sabemos, pelo menos desde Hegel e Nietzsche, que o grande motor das sociedades modernas é o ressentimento.

Foi o ressentimento que alimentou o comunismo, o nazismo e o fascismo. Assim com é o ressentimento a chama que aquece o islamismo e outros extremismos, mais ou menos populistas, que teimam em crescer nas nossas democracias do Ocidente e por esse mundo fora.

Uma ideologia assente na falácia da soma zero, na inveja, que assume que se destruirmos os que têm poder, sucesso, mérito, dinheiro ou outro bem que gostaríamos de ter, seja o judeu, seja o latifundiário, seja o capitalista ou, simplesmente, o outro, o diferente, qualquer que seja sua natureza e desde que se lhe possa imputar a culpa do nosso infortúnio, ao arrasá-los, ao nivelarmo-nos por baixo, assim conseguiremos um lugar no céu e a justiça na terra.

Nada mais falso, como os resultados de muitas aplicações práticas têm evidenciado ao longo dos últimos séculos, sobretudo depois do terror resultante da revolução francesa de 1789. Ou seja, o aproveitamento político desse ressentimento contra o outro nunca melhorou a vida dos povos, nem trouxe mais liberdade e prosperidade a cada individuo em particular.

Muitos dirão: “mas sempre houve ressentimento” - do senhor contra o escravo, do operário contra o patrão ou do aprendiz contra o mestre. Então, o que há de novo?

A novidade é que, com a crise de confiança na política, o relativismo dos valores e das crenças, a transformação da classe média e a perda do seu estatuto social, todo o ressentimento larvar, encapotado, que sempre viveu entre nós, projeta-se e alcança uma nova voz. A voz do Chega e do seu líder, que intuiu aí o seu momento, a sua oportunidade única de singrar na política dos grandes.

Ou seja, o habitual ressentimento passou, não só a ser captado e enquadrado onde já se sentia, como a ser fabricado em doses grossistas, a ponto de alimentar o novo partido com intenções de voto até agora, para muitos, impensáveis.

Aliás, o mesmo têm feito até agora os partidos da extrema-esquerda do nosso sistema político, como o PCP e o BE, embora de um modo não tão assertivo e profissional. Todos crescem, afinal, na base do ressentimento e da inveja, palavra que o notável e tão ingratamente esquecido Luis Vaz Camões, colocou a fechar o nosso glorioso poema Os Lusíadas.

Na verdade, a estratégia do Chega resume-se a recrutar os ressentidos da vida qualquer que seja a sua origem, idade, profissão, classe social ou mesmo nacionalidade, a fim de alcançar o poder. É muito simples. O Chega escolhe um alvo e ataca esse alvo através da transferência afetiva de culpas e da consequente criação de um clássico bode expiatório.

Para começar, os políticos, como se o Chega não fizesse parte do sistema e fosse composto por anjos querubins vindos diretamente do céu. Depois, os subsidiados, como se todos os que recebem subsídios fossem malandros e, infelizmente, não houvesse pobreza em Portugal. A seguir, os estrangeiros, como se não fosse possível e desejável distinguir os que vêm por bem e os indesejáveis. Por fim, embora não abarcando todos, os banqueiros e as grandes empresas, como se o país nadasse em capital próprio e fosse possível fazer crescer a riqueza sem grandes empresas.

Mais uma vez, nada de novo sobre o sol. Foi assim nos anos vinte e trinta do século passado em toda a Europa e América do Sul e foi assim, bem mais próximo de nós, com a vitória de Donald Trump nos Estado Unidos da América em 2016.

O habitual, a clássica demagogia, afinal, verdadeiro cerne dos diferentes populismos e antecâmara de todos os autoritarismos, sejam eles mais de esquerda ou mais de direita.

Só que, no caso português, o Chega goza ainda da infeliz vantagem de não só termos muitos ressentidos, devido à crónica escassez de rendimentos e à má gestão da coisa pública, como também de termos partidos tradicionais, compondo o chamado bloco central moderado que, com a sua permanente diabolização, tem contribuído de sobre maneira para a sua fama e atual representatividade.

Assim, caros concidadãos, é tempo de dizer bem alto: já chega!

Chega de mentiras, de ilusões e de falsas promessas. Chega de hipocrisia política. Para isso, já chegavam alguns dos partidos do burgo. Não precisamos que todos os ressentidos, insatisfeitos e escorraçados pelos partidos tradicionais se juntem para conquistar o poder que lhes passou ao lado nos sítios onde militavam. Iludindo e usando pelo caminho, para atingir essa finalidade, muitos portugueses com imensas razões de queixa e que, razoavelmente insatisfeitos, se deixam encantar por mais este canto da sereia.

É que, e terminando, a receita que querem aplicar não se chama limpar Portugal. A essa tática política, já velha e rasteira, a minha saudosa avó chamava oportunismo e venda da banha da cobra, sem ofensa para o milenar e paradisíaco réptil.

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