Crianças de Gaza

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No passado dia 9 de outubro, o “New York Times” (NYT) publicou na rubrica Opinião um “ensaio convidado”, assinado por Feroze Sidhwa, cirurgião que trabalhou por duas semanas, entre Março e Abril, no Hospital Europeu em Khan Younis, Gaza.

Sidwa começa por contar como, nesse período de voluntariado em Gaza, assistiu ao aparecimento no hospital de crianças pré-adolescentes baleadas na cabeça ou no peito. Depois, outros médicos, enfermeiros e paramédicos relataram-lhe o mesmo. Na verdade, nesta peça do NYT são recolhidos 44 relatos destas pessoas, cada um claramente identificado, de crianças assassinadas a tiro no coração ou na cabeça. Cito apenas três deles:

“Uma noite, no serviço de urgência, ao longo de quatro horas, vi seis crianças entre os 5 e os 12 anos, todas com ferimentos de bala no crânio”. (Mohamad Rassoul Abu-Nuwar, cirurgião, 36 anos, de Pittsburgh, Pa.)

“A nossa equipa cuidou de cerca de quatro ou cinco crianças, com idades entre os 5 e os 8 anos, que foram todas baleadas com um único tiro na cabeça. Todas deram entrada na sala de emergência ao mesmo tempo. Todas morreram”. (Irfan Galaria, cirurgião, 48 anos, de Chantilly, Va.)

“Um dia, enquanto estava nas urgências, vi uma criança de 3 e outra de 5 anos, cada uma com um único buraco de bala na cabeça. Quando lhes perguntaram o que tinha acontecido, o pai e o irmão disseram que tinham sido informados de que Israel estava a retirar-se de Khan Younis. Por isso, regressaram para ver se restava alguma coisa da sua casa. Havia, segundo eles, um sniper à espera que disparou sobre as duas crianças” (Dr. Khawaja Ikram, cirurgião, 53 anos, de Dallas, Texas).

A peça vem acompanhada de três fotografias de radiografias, tiradas pela médica Mimi Syed, que trabalhou em Khan Younis de Agosto a Setembro. Uma delas mostra uma bala no crânio de uma criança, as outras duas mostram balas no peito, uma em cada, diz a legenda que do lado esquerdo do peito dessas crianças.

A frequência destes assassinatos afasta o cenário de um louco sádico, diz o autor do ensaio, que insta o governo norte-americano a cumprir a legislação do próprio país e a parar de fornecer armas a Israel. Cito-o novamente:

“A lei e a política americanas há muito que proíbem a transferência de armas para nações e unidades militares envolvidas em violações grosseiras dos direitos humanos, especialmente – como uma atualização de 2023 da Política de Transferência de Armas Convencionais dos Estados Unidos deixa claro – quando essas violações são dirigidas a crianças. É difícil conceber violações mais graves desta norma do que o facto de crianças pequenas serem regularmente baleadas na cabeça, de recém-nascidos e suas mães passarem fome devido ao bloqueio da ajuda alimentar e à demolição das infra-estruturas de abastecimento de água, e de um sistema de saúde que foi destruído.”

Estas crianças não são vítimas de guerra, mas de crimes de guerra. Há um responsável máximo por isto. Chama-se Benjamin Netanyahu.

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Há dias, as forças de Israel abateram Yahya Sinwar, máximo responsável pela chacina cometida em nome do Hamas no dia 7 de outubro de 2023, há pouco mais de um ano. As vítimas do massacre mereciam justiça, mas teria de ser feita de outra maneira, com uma captura e uma detenção, seguidas de um julgamento e, por certo, de uma condenação.

Menos de 48 horas depois, o Hezbollah, eventualmente assistido pelo Irão (embora Teerão o negue), lança um drone sobre a residência do PM de Israel. Netanyahu e a sua mulher não foram atingidos. Ainda bem. O que as crianças assassinadas na faixa de Gaza merecem, o que a sua memória merece, é que Benjamin Netanyahu e seus ministros da guerra sejam levados à justiça internacional, para enfrentar as acusações de genocídio e de crimes de guerra que lhes são feitas.

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A 13 de outubro, em carta endereçada aos ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros de Israel, os Estados Unidos deram um mês para que as forças de Israel dêem passagem à ajuda humanitária em Gaza, sob pena de ser cortada a assistência militar. Aquilo que passa por ultimato seríssimo, na verdade é uma hipocrisia. Qual a razão para dar mais um mês à violência inominável que dizima diariamente largas dezenas de civis, crianças incluídas? E que pífia revelação faz a administração norte-americana quando impõe a entrada de ajuda humanitária em Gaza como condição para continuar a fornecer o instrumento da morte em Gaza. Esta ambivalência está longe do embargo de armas que todos os imperativos morais deveriam exigir.

A respeito do desempenho político externo dos Estados Unidos, Viriato Soromenho-Marques, deu há dias uma entrevista ao “Jornal de Negócios” cuja leitura se recomenda. Pelos factos e análises muito relevantes que traz e que vão mais a fundo do que aquilo que habitualmente se encontra. Em particular, uma visão com mais profundidade histórica sobre o posicionamento dos EUA e mesmo de Israel – “Durante muito tempo, os EUA tiveram o cuidado de – além de protegerem o Estado de Israel, que sempre foi um objetivo desde a sua fundação –, acomodarem os interesses de outros países vizinhos, até mesmo dos inimigos de Israel.”

Mas, hoje, os EUA não são politicamente o que eram no tempo dos acordos de Oslo (1993, entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat), ou dos ainda anteriores acordos de Camp David (1978, entre Anwar Sadat e Menachem Begin). “O problema – bem explica Soromenho-Marques – é que a degradação da democracia americana se traduziu também na degradação da capacidade de escolhas na política externa americana. E isso é uma ameaça vital para nós”.

E também Israel não é politicamente o mesmo. Durante muito tempo, na verdade até Netanyahu se instalar no poder, Israel justificara a existência a partir de um “sionismo cosmopolita”, de que Rabin foi o último grande intérprete. Soromenho-Marques aponta para a amarga reviravolta. “Rabin foi assassinado por um jovem judeu extremista em 4 de novembro de 1995. Pouco antes, os extremistas, incluindo Netanyahu, passearam pelas ruas com caixões a simbolizar o enterro do acordo de Oslo, como que antecipando o que iria acontecer.”

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Só este fim de semana que passou foram mortas mais de 100 pessoas, entre bombardeios no norte da faixa de Gaza e outros nas cidades do Líbano. Desde 7 de Outubro do ano passado, registam-se 42600 mortes diretamente relacionadas com operações militares. Os números são do Ministério da Saúde de Gaza e têm sido considerados credíveis por organizações internacionais.

São mais de 2% da população da faixa de Gaza. Discute-se se esta percentagem não é significativamente maior incluindo as mortes causadas indiretamente pelo conflito, mas de forma muito deliberada, resultado da destruição da infra-estrutura de saúde, da falta de acesso a água potável e das deslocações massivas forçadas da população dentro do território da faixa. Consideradas as causas de morte indirectas, a prestigiada revista médica “Lancet” apontava, em julho passado, para um patamar em que, até então, 7,9% da população total de Gaza poderia ter perdido a vida.

De volta às crianças da vergonha moral do nosso tempo, declarava, em Setembro, um representante da Oxfam: “Mais de 25.000 crianças perderam um dos pais ou ficaram órfãs, o que as deixou em profundo sofrimento emocional. A maioria das crianças debate-se com ansiedade e lesões físicas graves, tendo muitas delas perdido membros.” De acordo com a Oxfam: “No último ano, foram mortas mais mulheres e crianças em Gaza pelo exército israelita do que no período equivalente de qualquer outro conflito das últimas duas décadas.”

Que cada citação seja um eco e nos vire do avesso. Os cidadãos comuns que não são especialistas deste conflito, têm toda esta informação à mão de um par de clics, ou de um canal de televisão. E nem sequer tem sido especialmente contestada, apesar da impossibilidade de jornalistas entrarem na faixa de Gaza. A informação existe, mas falta que se torne sensibilidade colectiva e reverbere em repúdio e acção.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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