Da TV para a guerra: o incrível destino de Volodymyr Zelensky

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De presidente numa série de TV a líder de um país em guerra: conheça o percurso de Volodymyr Zelensky, que chega esta terça-feira a Portugal. Artigo publicado originalmente a 4 de março de 2022

Ninguém saberá ao certo quando é que, no inconsciente do jovem pândego Volodymyr Zelensky, a caricatura de um presidente de uma república imaginária e galhofeira se transformou no desejo da presidência da república da Ucrânia, um país ainda mais jovem que ele, acossado de um lado por um passado preso nas fronteiras militarizadas de uma União Soviética entretanto defunta (mas talvez não totalmente enterrada) e do outro pela sensação vaga de pertença a uma Europa que lhe mentia com descaramento.

Mas isso também não importa nada: Volodymyr Zelensky é o presidente de todos os ucranianos e dirige-os num momento especialmente arrepiante – mais um na história do país – em que, ficou a saber-se esta semana, é a sobrevivência nacional que se joga nas ruas de cada mais cidades, vilas e aldeias ucranianas. De algum modo, a assunção da guerra é uma espécie de fuga para a liberdade, sem que os ucranianos saibam ao certo onde fica a meta. E isso pode fazê-lo incorrer nos mais diversos erros de avaliação, depois de ter incorrido no primeiro: a ideia de que a Rússia estaria confortável nas suas fronteira, por muito que elas fossem diferentes das da antiga União Soviética ou das ainda mais antigas do império dos czares. Pela circunstância das coisas, Volodymyr Zelensky já cometeu outro erro de avaliação: a ideia de que o ocidente está empenhado na salvação da Ucrânia. Ao contrário, e com o cinismo que a geopolítica impõe, o ocidente está preocupado com a gestão da sua relação com a Rússia e, nesse quadro, a Ucrânia é um peão que também podia ser a Bielorrússia ou outro país qualquer das bordas da Europa.

Claro que a Ucrânia tem o benefício geográfico de não ser um país distante e entrincheirado entre a Rússia e a Turquia, numas montanhas de que quase nenhum europeu sabe o nome, como é a Geórgia. Claro que, para o ocidente, perder a Ucrânia é ter mais perto de casa o fantasma da Rússia – mas, verdadeiramente, o que o ocidente quer é resolver o problema que tem com a Rússia e vale a pena para os ucranianos que Zelensky não se esqueça disso. Aparentemente, e a acreditar em alguns analistas, o pedido de abertura formal de entrada da Ucrânia na União Europeia também pode ter constituído um erro de avaliação. Desde logo porque a União ficou como a sensação de que a Ucrânia pensa que entrar na União Europeia constitui uma espécie de pré-inscrição na NATO – agregado onde o país tenta entrar há anos, com assinalável falta de êxito. Ou ao menos que a circunstância de ser um Estado-membro do grupo possa fazer desaparecer as reticências que vários países têm em ver a Ucrânia na NATO. Pode bem ser que tudo isto não passe de uma quimera alimentada pelas bombas russas a derreterem o asfalto das ruas de Kiev.

Seja como for, Volodymyr Zelensky tem dado mostras de uma garra que com certeza não está nos horizontes da esmagadora maioria dos estadistas ocidentais: não estará na linha de frente dos combates, mas está ao comando da resposta militar necessariamente desequilibrada às investidas de um seu homólogo, Vladimir Putin, que continua a ser, 20 anos depois, uma incógnita para todos os ocidentais – como se o todo-poderoso homem do Kremlin fosse não o herdeiro de Brejnev ou o admirador de Catarina a Grande, mas apenas o bisneto perdido de Grigori Rasputin: um místico obnubilado pela mátria russa.

Antes da sua carreira de ator, Zelensky formou-se em Direito e depois de ter enveredado pela comédia criou a produtora Kvartal 95, que produziu “Servant of the People”, no qual desempenhava o papel de presidente da Ucrânia. Zelensky anunciou a sua candidatura às eleições presidenciais de 2019 na noite de 31 de dezembro de 2018 (durante um programa televisivo), ao mesmo tempo que o presidente de então, Petro Poroshenko, divulgava nas televisões o seu discurso de Ano Novo. Acabaria por derrotá-lo a 21 de abril por 73,2% (à segunda volta). Em síntese, a política que Zelensky, agora a sério, pretendia levar a cabo tinha três eixos fundamentais: normalizar as relações com a Rússia, aproximar-se das instituições europeias e acabar com o poder dos oligarcas ucranianos. E foi por aqui que as coisas começaram a correr mal: todas as iniciativas de Zelensky para acabar com a corrupção e com o poder dos oligarcas esbarraram numa grande reserva do parlamento ucraniano em reconhecê-las como necessários e, pior ainda, em fazê-las passar para letra de lei. Mas esta é a sua primeira batalha a sério, aquela que nenhum presidente (talvez com a exceção de Putin e de mais um ou outro iluminado) quer ter em mãos.

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