Dia 4 do julgamento BES. A “simpatia exagerada” de Ricardo Salgado e o “que se lixem os lesados” de Carlos Costa

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Caso BES

19 out, 2024 - 01:16 • Diogo Camilo

Durante um dia e meio, José Maria Ricciardi contou que o governador do Banco de Portugal "deu ordem" para desviar dinheiro da conta destinada a pagar a lesados do BES, recebeu um pedido de Ricardo Salgado para ser "solidário" com a família e falsificar as contas do BES e ainda sobrou tempo para um tutorial de "rodízios de obrigações".

A primeira semana de julgamento do caso BES acabou como começou - à volta da doença de Alzheimer de Salgado -, mas com Ricciardi no Campus de Justiça, houve tempo para ouvir histórias sobre jantares em Cascais entre primos, (falsas?) conversas com postura de “que se lixem os lesados”, lamentos de um pai ganancioso e até um tutorial sobre rodízios de obrigações.

Ao entrar na sala de tribunal para o quarto dia, Ricciardi mostrou ter aprendido a lição do dia anterior: no seu posto de testemunho estava uma garrafa de água, depois de no dia anterior ter sentido a falta de líquidos a meio da sessão.

O jantar com “simpatia exagerada”

A primeira cena foi digna de um filme realizado por Francis Ford Coppola. Convidado por Ricardo Salgado a ir até à sua casa em Cascais, José Maria Ricciardi achou estranho. Estávamos em maio ou junho de 2014 e o então presidente do BES já o havia tentado despedir por duas vezes, enquanto o banco caminhava prego a fundo para o precipício.

“O doutor Salgado e eu já não tínhamos relações boas, praticamente não falávamos. Fiquei surpreendido, mas como tenho alguns cabelos brancos, achei que era melhor ir ver o que pretendia e fui. Quando cheguei, não estava mais ninguém a não ser ele e a sua esposa”, conta.

Aí, o primo fala de uma “simpatia exagerada” dos Salgado, com sugestões de que as mulheres de ambos “tinham que ir ao cinema, ao Cascaishopping. “Uma atitude patética perante o cenário”, descreveu Ricciardi em tribunal.

Foi depois do jantar que Salgado pediu à testemunha para ir até ao escritório: “Perguntou ‘o que tu queres?’”. Sem saber o que pretendia como resposta, Ricciardi falou em “mais capital” para desenvolver o setor de investimento que presidia.

“Disse-me que ia fazer tudo para que o BESI tivesse mais capital, virou-se e acrescentou: ‘Mas para isso é preciso tu finalmente teres solidariedade com a família’”. “Em relação à falsificação das contas?”, perguntou Ricciardi. “Sim, sim”, terá respondido Salgado. À medida que o ex-presidente do BESI conta a história, Francisco Proença de Carvalho, advogado de Salgado, abana a cabeça.

Ricciardi ter-lhe-á dito que “nunca vai contar com a solidariedade na falsificação de contas”, perguntando-lhe como reagiria o seu filho administrador do BES se fosse confrontado com “solidariedade para com a família”, com Ricardo a mostrar “desagrado” perante a resposta.

A manhã foi preenchida por mais declarações fortes de Ricciardi e de histórias que o retratam como o “patinho feio” do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo. E uma delas envolve o próprio pai. Antes disso, um momento de pausa - com a juíza a descrevê-lo como o tempo de fumar, em gestos com a mão - levou a um comentário do advogado Rogério Alves: “Está a fomentar o vício, doutora juíza.”

Salgado pediu "solidariedade" a Ricciardi para alinhar na falsificação de contas do BES

Temor reverencial e o "medo" ao doutor Salgado

A sessão retomou quente, com o advogado Miguel Matias, que representa três lesados do GES, a questionar se Ricciardi respondia tão abertamente a criticar o primo Ricardo Salgado porque era “pura verdade” ou “sentimento de vingança”.

“Não desejava nada de mal ao doutor Salgado. Estou a contar o que sei e não foi por falta de aviso. Ainda não sabia de 5% e já estava a dizer ao Banco de Portugal que não era aceitável”, disse, com o assistente a indicar que “não é muito crível” que Ricciardi fosse o único do Conselho Superior a bater o pé a Salgado.

O ex-presidente do BESI responde-lhe que os outros membros haviam sido “capturados” e que desconhece porque não enfrentaram Ricardo Salgado. “Não sei se tiveram medo. Eu não tinha medo porque não tinha”.

“Temor reverencial, portanto”, completou o advogado, que garantiu que não pretendia colocá-lo em cheque - “apesar de ser sportinguista” - depois de Ricciardi ter desabafado: “Até parece que estou aqui para ser julgado.”

Um pai ganancioso

Para avançar a sessão valeu o poder de síntese da juíza na hora de encurtar as perguntas a Ricciardi, com o tema a avançar para os prémios que eram recebidos pelos membros do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, composto pelos cinco ramos da família.

Inicialmente com cinco membros, as reuniões passaram a ter nove, com cada ramo a passar a ter dois representantes, à exceção da de Ricardo Salgado. O alargamento levou a quem a maioria da família dividisse os prémios entre si, mas não o pai de Ricciardi - António Luís, chairman do BES até 2008.

“O meu pai não me dava nada de prémios da ESI. Não recebia porque o meu pai não queria dividir comigo”, conta ressentido, acrescentando que só descobriu após uma reunião do Conselho Superior em 2014 que outros membros do GES também recebiam estes prémios, inclusive o seu vice no BESI, contando um episódio caricato.

“Até fiquei revoltado porque o Ricardo Abecassis, que estava abaixo de mim, queixava-se que recebia pouco e disseram-lhe que não podia receber mais que eu, a não ser que me aumentassem. E afinal recebia muito mais dinheiro na ESI do que eu não sabia”, desabafou.

"Quem devia ser julgado era o Banco de Portugal, não os administradores do BES", diz Ricciardi

Carlos Costa fez um “que se lixem os lesados”

A partir daí, Ricciardi virou baterias a Carlos Costa. No dia anterior, já tinha falado numa reunião com o governador do Banco de Portugal em outubro de 2013 em que o alertou para a “sensação de um banco dentro de um banco” e lhe entregou um documento com seis dos nove administradores do BES a pedirem a saída de Salgado do banco - que desapareceu e foi acabar nos ouvidos do então presidente do BES.

A resposta foi, tudo quanto se sabe, um “assobio para o lado”, mas esta sexta-feira Carlos Costa veio negar tudo, afirmando ao Observador que não teve qualquer reunião com Ricciardi em outubro de 2013 para falar sobre problemas no BES ou no GES.

O ex-governador do BdP nega também que tenha falado com Ricciardi sobre “lesados”. Isto porque, segundo o ex-administrador do BESI, foi Carlos Costa quem deu ordem para retirar as provisões, o que impediu o pagamento aos lesados na altura da resolução do banco.

Em tribunal, Ricciardi disse mesmo que em agosto de 2014, durante a separação das contas do “banco bom” do “banco mau” foram desviados 500 milhões de euros em provisões para créditos do Novo Banco.

“O que o senhor governador Carlos Costa e o Fundo de Resolução disseram foi: ‘Vamos tornar a conta dos lesados, que é sobre terceiros e não afeta o capital, que se lixem os lesados, e vamos deslocar esse dinheiro para créditos que faltavam para as contas que a gente fez mal no Banco Espírito Santo”, referiu Ricciardi.

Assim, sugeriu, “quem devia ser julgado não eram os administradores do BES, foi quem deu ordem para revogar a provisão aos lesados”.

Outro dos ataques de Ricciardi a Carlos Costa aconteceu já à tarde, garantindo que, se o Banco de Portugal não tivesse avançado para a “resolução patética” do BES e se tivesse emprestado 4 a 5 mil milhões de euros, o banco teria sobrevivido à crise e hoje seria um “banco ótimo”.

Mas a memória também trai Ricciardi, que ontem disse desconhecer o que era a Eurofin - uma sociedade suíça que terá sido criada para desviar recursos do BES - e hoje admitiu que o seu BESI poderá ter realizado negócios com ela.

Também disse que “conhecia muito bem” Alexandre Cadosch, um dos arguidos do caso, mas depois recuou e disse ter estado apenas uma vez com ele no BESI, sem se lembrar porquê. Mais tarde falou em “várias reuniões” com o arguido suíço, sem saber ao certo o tema das mesmas.

Dia 3 do julgamento BES. A “sensação” de Ricardo Salgado ser o Dono Disto Tudo

A relação de amor-ódio entre Ricciardi e a defesa de Salgado

Fora do tribunal, foi conhecido que o Ministério Público pediu o estatuto de “maior acompanhado” para Ricardo Salgado. O requerimento pouco muda este caso BES: a defesa do ex-banqueiro vê-o como uma vitória e um reconhecimento da doença, enquanto advogados dos lesados consideraram que apenas representará efeitos práticos numa eventual queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Dentro do tribunal, o advogado Francisco Proença de Carvalho abdicou de fazer perguntas a Ricciardi sobre o BES, mas não escusou de colocar em causa a sua credibilidade, perguntando-lhe se “estava de relações cortadas” com Salgado. “O doutor Salgado é que está de relações cortadas comigo”, respondeu Ricciardi, acrescentando que não vê o ex-banqueiro há mais de 10 anos.

À saída do tribunal, a defesa de Salgado despediu-se de Ricciardi com um amistoso aperto de mão e desejos de bom fim de semana.

Já no piso de baixo, o ambiente era outro e o advogado Francisco Proença de Carvalho acusava o primo de Salgado de “trair a vida pessoal e profissional e tentar desprezá-la em tribunal”.

"Ele é que está de relações cortadas comigo". Ricciardi e Salgado não se falam desde 2014

O rodízio de obrigações e o pedido de desculpas de Ricciardi

Ao terminar a sessão, houve direito a um tutorial de José Maria Ricciardi sobre o que diz ser um “rodízio de obrigações” - um termo nunca ouvido antes na sala e que gerou intriga. O esquema, que terá sido uma das razões que levou à resolução do BES, passava pela troca de obrigações com taxas de juro muito altas com obrigações com juros muito mais baixos em clientes do GES, com emissões de várias dezenas de anos.

Ricciardi disse que tomou conhecimento do “rodízio” através de um administrador do BES em julho de 2014 e que foi Isabel Almeida, diretora do departamento financeiro do BES e arguida no caso, que lhe explicou o que se tinha passado.

Depois de conversas sobre rodízios, a juíza interrompeu para um aviso à tripulação: “São quase cinco horas e o senhor funcionário do tribunal tem a sua vida fora do tribunal. Nós não temos, mas o senhor Miguel tem.”

Mas Ricciardi continuou a tentar explicar em que consistem estes mecanismos. “Você não se cansa”, disse a juíza Helena Susano.

Antes de sair, Ricciardi disse ter tentado fazer o seu melhor, pediu desculpa por “respostas mais acaloradas” e salientou que “não estava em todo o lado nem dominava tudo”.

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