Encontrei no chão de Leipzig os dentes do Gascoigne

1 semana atrás 42

«Palavras à Sorte» é a rubrica diária dos jornalistas do zerozero durante o Euro 2024. Todos os dias, na Alemanha ou na redação, escrevemos um apontamento pessoal sobre a competição e todas as sensações que ela nos suscita.

Futebol sem memória? Uma carcaça sem alma, só pele e osso, à deriva. Condenado às tendências do modernismo parolo, normalmente carregado de tatuagens bizarras e vídeos tiktokianos. 

Olhar para trás é um exercício de redenção. Procurar as sensações pueris daquela infância perfeita, das idas à papelaria em busca de mais uma carteirinha de cromos, de tardes e noites a desenhar heróis. 

Do Euro84 guardei as cavalitas do meu pai e os dribles do Chalanix, no de 88 folheei as camadas da Laranja Mecânica de trás para a frente, só para descobrir que o 'van' em falta em Gullit não era um erro de impressão. 

Em 1992 quis saber quem eram os dinamarqueses da danish dinamyte, autores da mais bela lição de eficácia aos alemães que tudo comiam e nada deixavam. 

Quatro anos mais tarde, prometiam-nos o Football is Coming Home, mas a porta de casa encravou nos malditos... da Alemanha. 

Ainda não havia Beckham e Scholes, mas essa Inglaterra tinha os dribles de McManaman, o cérebro de Platt, os golos de Shearer e, sobretudo, a delirante doideira de Gascoigne

Para um puto de 18 anos, que da vida pouco sabia e de futebol devorava o que podia, aquela era a personagem mágica.

A gargalhada paranóica, o olhar pétreo, o comportamento de guerreiro comanche numa pradaria norte-americana. E uma infantilidade tão perturbadora quanto hipnotizante. 

Foi de Gazza o meu golden moment desse Euro96. Wembley, 15 de junho, há precisamente 28 anos. 

A Inglaterra ganha 1-0 à Escócia, mas sofre. Gary McAllister falha o empate num penálti parado por Seaman e o castigo é imediato. 

Na esquerda, Anderton recebe a bola a saltitar e de primeira lança Gascoigne. O diabo de cabelos loiros toca a bola por cima do gigante Hendry e apanha-a do outro lado, só para disparar em direção ao 2-0. Nada a fazer para o saudoso Andy Goram. 

O que se segue é uma cena mitológica. Gascoigne cai de costas na relva, abre os braços e lança um grito de súplica. Os colegas, em perfeita coreografia, simulam a famosa 'cadeira do dentista', como se inundassem de água (?) a boca do tresloucado camarada. 

Água? Nem por sombras. Tempos depois, a realidade é reposta e conta-se em duas penadas. 

Em vésperas desse Europeu, Gascoigne e mais uns quantos marmanjos da seleção são apanhados pelos tablóides numa festa de 'vale tudo menos tirar olhos' em Hong Kong. Numa boîte de Hong Kong. 

As imagens perturbam a bonomia e a fleuma dos bons costumes britânicos. A dias do Euro96, Gazza e companhia encharcam-se de álcool e afins, em posições semelhantes à usada nas cadeiras dos dentistas. É o deboche total. 

As palavras feias, embora justas, não largam a mente demoníaca de Gascoigne. A vingança, em forma de golo, leva-o a caricaturar a cena, só para provocar os críticos. 

De génio e de louco todos temos um pouco. Paul, o bom do Paul, exagerava na segunda constante. 

Chegado a Leipzig, dia 1 do zerozero neste Euro24, a primeira memória é essa. Gascoigne, sem dentadura e sem freio, na cadeira do senhor doutor. 

Olho agora mesmo para o chão e cá estão eles. Juro. Um, dois, três dentes. Só podem ser do malvado britânico.

Uma epifania das boas. Carregadinha de alma. 

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