“Estamos a começar a fazer frente a uma das indústrias mais poderosas da Terra”

9 meses atrás 66

Apresentado nos palcos das Nações Unidas no ano passado, o tratado de não-proliferação de combustíveis fósseis acolheu nesta COP28 a Colômbia, o seu 10.º país signatário. Um marco significativo, tratando-se do Estado com maior produção de carvão e gás deste grupo. “Estamos a tentar travar um suicídio, a morte de tudo o que está vivo, de tudo o que existe. Não se trata de um suicídio económico. Estamos a evitar o omnicídio do mundo, do planeta Terra. Não há outra fórmula, não há outro caminho. Tudo o resto são ilusões​” afirmou o presidente colombiano, Gustavo Petro, no anúncio da adesão.

Além da Colômbia, a adesão é ainda modesta: a iniciativa é subscrita pelos Estados de Vanuatu, Tuvalu, Fiji, Ilhas Salomão, Tonga, Niue, Timor-Leste, Antigua e Barbuda, e agora também Palau e Samoa. Além destes países – na sua maioria pequenos Estados insulares –, também o Parlamento Europeu e a Organização Mundial da Saúde fizeram declarações políticas oficiais a aderir aos princípios deste tratado, que ganha relevância no contexto dos debates desta COP28, em que há um apelo cada vez mais forte por uma declaração final que inclua um compromisso com o fim dos combustíveis fósseis.

Nos corredores da Cimeira do Clima das Nações Unidas, que este ano acontece nos Emirados Árabes Unidos, o Azul conversou com Tzeporah Berman, veterana do activismo ambiental no Canadá, presidente da iniciativa deste tratado de não-proliferação de combustíveis fósseis. “Estamos a começar a fazer frente a uma das indústrias mais poderosas da Terra que se interpõe no nosso caminho para garantir um clima habitável”, diz-nos.

No início da COP28, também uma centena de cidades e governos regionais assinaram este tratado, incluindo Paris, Londres, Roma e Belém (onde acontecerá a COP30) – mas nenhuma cidade portuguesa –, comprometendo-se a integrar nas suas políticas locais os três pilares do compromisso: “Nenhum novo projecto” de expansão de combustíveis fósseis, a eliminação “gradual e justa” de carvão, petróleo e gás, e uma transição energética “justa e equitativa”. Para Tzeporah Berman, a influência do poder local é essencial neste processo.

Por vezes pensamos que os combustíveis fósseis são uma questão a ser decidida pelas empresas ou pelos governos. Qual é o papel das cidades? Como é que estas 100 cidades podem ajudar a pôr isto em prática?
Quando olhamos para a história, as cidades têm desempenhado um papel fundamental ao unirem-se para usar o seu poder em conjunto para pressionar os Estados em questões em que os países têm sido intransigentes. Se olharmos, por exemplo, para a não-proliferação nuclear, as cidades foram essenciais para pressionar os seus governos a começarem a restringir a proliferação de armas nucleares. Os Estados são muitas vezes fortemente influenciados pelas empresas de combustíveis fósseis, mesmo aqui na COP, e as cidades menos. Por isso, 100 cidades juntaram-se para apelar aos Estados nacionais para que aprovem um tratado de não-proliferação de combustíveis fósseis.

Desde que começou o seu activismo, há várias décadas, tornou-se mais fácil falar sobre a responsabilidade da indústria dos combustíveis fósseis? Actualmente temos um diagnóstico mais robusto sobre o seu papel na equação das alterações climáticas, mas, ao mesmo tempo, é uma indústria que continua a ser protegida.
Existe um ímpeto incrível em torno da ideia de um tratado sobre combustíveis fósseis, em parte porque os países estão a perceber que vamos precisar de um complemento ao Acordo de Paris se quisermos restringir a produção de combustíveis fósseis. Não há dúvida de que vai ser difícil, mas, ao mesmo tempo, estamos a começar a ver Estados como a Colômbia aqui na COP, apesar de serem nações produtoras de combustíveis fósseis – ou precisamente por serem produtoras de combustíveis fósseis –, a reconhecer que não podem continuar a tornar o problema maior.

Durante mais de 30 anos, os combustíveis fósseis têm sido invisíveis nas negociações sobre alterações climáticas, e isso deve-se a uma estratégia da indústria dos combustíveis fósseis para tornar os seus produtos invisíveis, apesar de o petróleo, o gás e o carvão serem responsáveis por 86% das emissões retidas na nossa atmosfera, causando as alterações climáticas. O que nos traz entusiasmo é que os combustíveis fósseis foram finalmente arrastados para o centro do palco aqui na COP28 e estamos a começar a ter a conversa certa. Estamos a começar a fazer frente a uma das indústrias mais poderosas da Terra que se interpõe no nosso caminho para garantir um clima habitável.

É irónico que um eventual acordo sobre o fim dos combustíveis fósseis possa acontecer numa COP presidida por um patrão da indústria petrolífera...
Mas talvez seja precisamente porque esta COP está a decorrer nos Emirados Árabes Unidos e temos um presidente que é também o CEO de uma empresa petrolífera. Talvez seja por causa da dura realidade, da hipocrisia dos países que dizem que estão a combater as alterações climáticas enquanto continuam a fazer mais furos para extrair petróleo, e que se tornou agora o centro das atenções, que talvez o presidente da COP apoie uma linguagem sobre a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis porque percebe que tem de fazer alguma coisa para provar que está do lado certo da história.

Será possível chegar a um acordo para uma eliminação progressiva? A questão do “abatimento” das emissões soa a uma armadilha. Acha que será possível chegar a um acordo sobre uma eliminação progressiva sem “abatimento”?
Estamos a viver um momento de ruptura, em que estamos finalmente a ter a conversa certa. Já temos um acordo sobre perdas e danos e estão a decorrer discussões intensas e importantes sobre a linguagem dos combustíveis fósseis. Este ano foram publicados muitos relatórios que demonstram que é impossível “abater” as emissões dos combustíveis fósseis, que essas tecnologias não estão a dar os resultados esperados e que precisamos de um declínio absoluto das emissões e da produção. Penso que o que estamos a ver aqui é o difícil confronto dos Estados, finalmente, com a tarefa que têm em mãos.

O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Oceano Azul

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