“Este plano é indispensável e de emergência. Mas não espero uma política migratória para amanhã”

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Especialista em migrações, Gonçalo Saraiva Matias lembra que sempre defendeu a criação de uma Agência para as Migrações, mas considera que foi um erro avançar para a AIMA com centenas de milhares de pendências. Em entrevista à Renascença, o presidente executivo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) encontra virtudes no plano apresentado pelo Governo e pede uma AIMA mais envolvida na atração de talento a partir do estrangeiro.

Qual é a sua avaliação do Plano de Ação para as Migrações apresentado pelo Governo?

Este é essencialmente um plano de emergência e, como tal, parece-me absolutamente indispensável. Nós estávamos numa situação totalmente caótica. Eu, aliás, avisei muitas vezes que estávamos numa situação totalmente caótica, com o colapso das nossas instituições e da nossa política migratória.

Temos 400 mil processos pendentes e uma agência criada a receber já uma herança pesadíssima de cerca de 350 mil processos e com total incapacidade de lidar com isso. E em cima disso, temos pessoas expostas a indignidade, a viverem em tendas, redes clandestinas a prosperar. Portanto, era indispensável um plano de emergência que controlasse isto.

Parece-me que o plano responde positivamente. Por um lado, promete resolver os processos pendentes num tempo rápido e até ter medidas de aceleração desses pendentes. Isso parece-me muito positivo. E também me parece positivo o fim das manifestações de interesse, tal como elas estavam a acontecer, porque não tinham nenhum controlo. No fundo, eram instrumentos que facilitavam o processo das redes clandestinas, porque, na verdade, ninguém controlava os documentos que eram colocados na plataforma e as pessoas ficavam meses ou até anos à espera de serem entrevistadas.

Por um lado, isto, evidentemente, era uma indignidade e colocava as pessoas num limbo jurídico e, por outro lado, facilitava o trabalho das redes clandestinas. Portanto, esse ataque parece-me fundamental.

Há dois outros aspetos que estão no plano que também me parecem fundamentais, mas que temos de ver a acontecer na realidade. São o melhor funcionamento das redes consulares e, por outro lado, de um trabalho ativo de captação de imigrantes. Portugal precisa muito de imigrantes. A economia portuguesa não funciona sem imigrantes. Só para dar um exemplo, no ano passado, o turismo dizia que precisava de 45 mil pessoas. A agricultura não andará longe disso. São setores indispensáveis para a economia portuguesa, mas não é só nestes setores. Nós precisamos de pessoas qualificadas para trabalhar nas nossas empresas, para puxar por elas, para reter o nosso talento que poderia ficar cá se tivesse outro talento de igual valor e que não vendo isso, vai para fora.

Agora, acho que isso é um segundo passo, que também está neste plano, mas que não espero que aconteça amanhã. O que eu espero que aconteça amanhã é o controlo da nossa política migratória, pôr novamente as nossas instituições a funcionar como elas devem funcionar e depois, com tempo, com calma, construir uma verdadeira política migratória, que é, como digo há muito tempo, absolutamente indispensável para Portugal.

Governo acaba com manifestação de interesse para imigrantes. O que é?

Este plano vale então quanto tempo?

Temos aqui um plano de muito curto prazo, diria de poucos meses, seguramente antes do final deste ano, para pôr os processos em ordem e a Agência a funcionar. Não temos muito mais tempo do que isso. Para pôr a funcionar uma política de imigração, temos aqui um horizonte temporal, apesar de tudo, de algum tempo. Mas este plano também prevê isso.

Na forma como vejo as coisas, eu divido o plano em duas partes. Uma primeira parte é pôr a casa em ordem, os processos pendentes resolvidos. Eu aliás escrevi um artigo no ano passado em que dizia que a Agência não devia arrancar com processos pendentes. Isso parecia-me evidente. Nós não podíamos pôr o peso de 350 mil ou 400 mil processos pendentes em cima de uma instituição que ainda não tinha arrancado. Isso foi um erro, matou a instituição à nascença.

Portanto, agora temos de pôr a casa em ordem, regularizar estes processos, garantir que as redes não têm condições de prosperar e depois, em cima disso, construir uma política migratória consistente. Acho que ela já está no plano, mas ela não se espera amanhã.

Nas reações, a Presidente da Casa do Brasil estava preocupada com o fim desta manifestação de interesse e diz que os consulados e embaixadas não funcionam de forma célere. O fim da manifestação de interesse não trará este risco ou é calculado?

Por acaso aí até acho que não há grande razão de ser, porque os vistos CLP vão-se manter. E nestes vistos, há um outro processo.

Acresce a um visto Schengen?

Há um visto especial que resulta de um acordo no âmbito da CPLP, que é um visto especial que até dispensa as manifestações de interesse porque tem um procedimento especial. Quando diz que há um visto Schengen, aí há uma dificuldade que foi criada. Os vistos Schengen resultam de um acordo no espaço Schengen - e os cidadãos brasileiros beneficiam evidentemente também desse visto - mas esse visto estava a ser posto em causa pela Comissão Europeia, que entendia que ele era ilegal à luz da União Europeia. Portugal foi ameaçado de um processo nos tribunais europeus por causa dos vistos.

Este plano obviamente privilegia os cidadãos da CPLP e mantém os vistos. Fazer o contrário até seria difícil porque resulta de um acordo entre os Estados da CPLP. O plano prevê um conjunto de medidas que provavelmente vão ultrapassar a dificuldade da ilegalidade, que têm a ver com a emissão de um cartão de residente e a recolha dos dados biométricos - era isso que a União Europeia se queixava, que não tinha informação nenhuma sobre as pessoas que estava a regularizar com os vistos da CPLP.

Para os cidadãos brasileiros, que são aliás 30% dos nossos imigrantes, e em relação aos outros lusófonos, continua a haver o caminho dos vistos CPLP, mais facilitado em relação aos vistos consulares ‘puros e simples’.

O fim das manifestações de interesse, tal como elas existiam, parece-me evidente. Não quer dizer que não se possam discutir outros formatos de legalizar as pessoas. Agora, isto é um programa de emergência. Aquele esquema como estava a funcionar, de ‘upload’ de documentação que ninguém controlava, associado a dois anos de espera para uma entrevista, é de comum bom senso que não se podia manter.

Quem são os imigrantes a trabalhar em Portugal?

Falou também da questão dos consulados. Não é uma estrutura demasiado rígida para este choque de produtividade administrativa que tem que ter para agilizar todo este processo?

Há muitos anos que defendo e sempre defendi a criação de uma Agência. Devo ter sido Aas primeiras pessoas a defender a criação de uma Agência. Sou muito a favor da Agência, mas para a Agência fazer algo diferente do que era antes feito pelas outras entidades.

Ora, um dos trabalhos que, na minha opinião, a Agência deve ter é de promover no estrangeiro Portugal como um país onde se vive e trabalha, porque Portugal precisa de atrair pessoas qualificadas e não qualificadas. Precisa de atrair talento. A estrutura consular pode perfeitamente trabalhar em articulação com pessoas da Agência que tem esse trabalho. Já hoje as estruturas consulares trabalham em articulação com os oficiais de ligação, por exemplo, do AICEP para atração de investimento estrangeiro. Ora, isto não pode ser feito pela

Agência para atrair pessoas? A Agência não pode ser um AICEP para as pessoas, para que Portugal seja visto no estrangeiro como um país bom para se viver e para trabalhar, para trazer as suas famílias? Isto parece-me indispensável.

Se os consulados fazem isto? Talvez não, mas tem de passar a fazer, porque essa é que é a vantagem de termos uma Agência. Para ter uma Agência para fazer pior do que aquilo que outros faziam antes, então não vale a pena ter a Agência.

Que sentido faz acabar com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e agora criar uma Unidade de Estrangeiros e Fronteiras dentro da PSP?

Há um objetivo na criação da Agência, com o qual eu também sempre estive de acordo, que é a separação das funções administrativas das funções de polícia. Uma coisa é processar administrativamente os vistos e promover o país como destino de imigração. Outra coisa é a fiscalização policial das irregularidades. Essa separação parece-me uma boa ideia e foi alcançada aqui.

Agora, alguém tem de fazer a fiscalização e deve ser feita por uma força policial especializada. Podia ser o SEF? Podia. Eu não tenho nada contra o SEF, nunca defendi a extinção do SEF. Podia ser o SEF, mas também pode não ser o SEF. Não há aqui nenhuma obstinação quanto à entidade que o tem de fazer. Uma coisa eu sei, tem de ser uma entidade policial. Outra coisa também sei, tem de ser uma entidade policial especializada que tenha ‘know-how’ e que possa garantir a segurança das nossas fronteiras. Agora se é o SEF, a PSP, a GNR, para mim é relativamente indiferente, porque tem de ser uma força policial com especialização para fazer esse trabalho.

O primeiro-ministro, logo no início da apresentação, quis fazer uma rejeição de qualquer ligação entre imigração e criminalidade. Acredita que este plano poderá travar a retórica negativa existente nalgumas franjas da sociedade em relação à imigração?

Sim, pode travar essa retórica. A imigração é um tema muito complexo e polémico em todo o mundo nas últimas décadas e só agora está a chegar a Portugal. Não podemos ter a pretensão de resolver todos os problemas de uma penada e fugir aquilo que os outros a enfrentam há muitas décadas. É evidente que não é só isto que vai resolver.

Por um lado, é claro que não há uma ligação entre imigração e criminalidade. Todos os dados mostram isto e parece-me muito importante, quando se apresenta um plano desta natureza, dizê-lo de forma muito clara. Agora, por outro lado, é evidente que, se temos um colapso das nossas instituições e da nossa política migratória, é natural que as pessoas associem e tenham perceções que até podem estar erradas. Ao pôr as coisas em ordem, parece-me claro que essa perceção pode reduzir. Isso pode ter um efeito positivo.

Criar uma unidade policial para fiscalizar fronteiras não tem nada de extraordinário. Todos os países têm isso. Agora, é preciso também ter consciência que não é essa unidade policial que vai fazer a tramitação dos vistos, que vai fazer a promoção internacional do país como um país de destino para imigrações e isso descansa-me bastante.

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