Extrair água como se não existisse um amanhã

7 meses atrás 62

O mês de janeiro foi pautado por temperaturas anormalmente elevadas, chuvas intensas e até uma onda de calor – a mais extensa de janeiro desde 1941. Surgiram notícias sobre escassez hídrica, particularmente sentida no Algarve onde as albufeiras chegaram a um volume médio de armazenamento de apenas 25%. Em cascata, sucederam-se os cortes de água na agricultura e, logo a seguir, os protestos dos agricultores pela Europa, inclusive Portugal.

A 19 de janeiro, no Conselho Europeu, foram apresentados finalmente os detalhes da proposta ReWaterEU, com o objetivo de tornar os recursos hídricos mais resilientes face aos impactos das alterações climáticas. As cinco medidas propostas levantam dúvidas sobre a sua capacidade de concretizar este objetivo. Desde logo, porque esta proposta partiu apenas do Ministério da Agricultura e Alimentação, quando a gestão dos recursos hídricos em Portugal é da responsabilidade do Ministério do Ambiente e Ação Climática.

A proposta assenta na otimização e construção de infraestruturas para armazenamento e transporte de água. Esta abordagem extrativista da água, em que se promove a construção de barragens e transvases para retenção e distribuição da água, apenas favorece uma agricultura intensiva.

São ignoradas soluções mais sustentáveis e baseadas na natureza, como a criação de zonas húmidas, o restauro das funções naturais dos leitos de cheia, e a adoção de práticas agrícolas com menor consumo de água. Estas seriam medidas mais eficazes a promover ecossistemas de água doce, fundamentais para recarregar aquíferos e garantir o ciclo da água.

Destacam-se pela positiva as medidas que visam a redução de perdas de água nos sistemas de adução e distribuição ou a reutilização da água nos setores urbano, turístico, industrial e agrícola.

No entanto, voltamos a dar passos atrás com a proposta apresentada para o recurso a tecnologias, como a dessalinização. Qual a viabilidade desta tecnologia a longo prazo? E qual o consumo de energia associado? A resiliência dos recursos hídricos só será uma realidade se à redução de perdas, e à reutilização e produção de água doce, corresponder uma igual redução na quantidade de água extraída da natureza.

A última medida proposta parte de um bom princípio, o de assegurar a monitorização dos recursos hídricos e dos consumos através do licenciamento para o seu uso de acordo com a real disponibilidade de água. Mas será que a atribuição destas licenças ocorrerá tendo por base essa real disponibilidade de água, ou será para justificar a construção de mais infraestruturas com elevado impacto ambiental?

É urgente discutir a finita disponibilidade e resiliência dos ecossistemas de água doce e valorizar o seu papel face às alterações climáticas. Sem uma boa governança e uma gestão sustentável da água, não será a tecnologia nem as infraestruturas a restaurar os ecossistemas de água doce e a devolver a biodiversidade ao planeta.

Precisamos de um Ministério do Ambiente e Ação Climática que tome a dianteira na gestão dos recursos hídricos, que promova medidas corajosas que evitem o seu desperdício, reduza o seu consumo e diversifique as origens de água. Só assim conseguiremos garantir um amanhã com água para todos.

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