Três anos antes do milagre de Kelvin, o Estádio do Dragão esteve sob forte ameaça. Numa hostil OPA desportiva, o Benfica entrou na relva do FC Porto a um ponto de celebrar o título nacional. Uma afronta impossível de suportar aos da Invicta. Seria a primeira vez que as águias celebrariam o campeonato na casa do velho rival nortenho e, naturalmente, teria um travo extra de satisfação – os dragões que o digam. qAdmito que foi um alívio muito grande ganhar esse jogo, mesmo sabendo que não íamos ser campeões e que o Benfica, à partida, celebraria na última jornada Ernesto Farías A dois dias de um Clássico com pontos em comum – o FC Porto absolutamente obrigado a triunfar -, o zerozero evoca as memórias desses 90 minutos de tensão e luta, escritos e realizados até desenharem um final feliz para o mundo portista. Final de ciclo para Jesualdo Ferreira, mente fragilizada por um ainda recente 3-0 recebido na final da Taça da Liga, mais temor do que confiança, ao contrário do que era habitual. O Dragão, como as Antas, revelaram-se vezes várias uma casa dos horrores para o visitante da Luz. Entre 1977 e 2005, o Benfica conseguiu apenas duas vitórias para o campeonato: 1991 na tarde de César Brito e 2005 no bis de Nuno Gomes. Daí para cá, mais três vitórias das águias: 0-2 em 2014 (dois golos de Lima), 1-2 em 2019 (Adrián López antes de João Félix e Rafa) e 0-1 em 2022 (Rafa novamente). Numa temporada de anormal distância pontual, quando a meta ainda nem se vislumbra, o FC Porto está confrontado com a sobrevivência emocional: reduz o atraso para seis pontos e mantém-se vivo na perseguição ou permite a fuga definitiva do Benfica – um empate deixará tudo em irrecuperáveis nove pontos para os dragões. Lembram-se do termo «impensável»? Foi utilizado por Ernesto Farías e Fernando Belluschi na conversa com o zerozero, a propósito do marcante Clássico de 2010. Os argentinos, heróis e autores de golos nesse duelo, pedem a mesma «coragem» para domingo à noite. Um FC Porto-Benfica é uma questão séria, de punho na mesa e convicções inegociáveis. Seja em 2010 ou em 2024, ingredientes intactos. «Admito que foi um alívio muito grande ganhar esse jogo, mesmo sabendo que não íamos ser campeões e que o Benfica, à partida, celebraria na última jornada», sussurra Ernesto Tecla Farías, atacante portista de 2007 a 2010, mais vezes lançado a partir do banco do que nome titular – 44 vs 35 -, mas com um incomum faro pelo golo: 34. Farías a celebrar um golo pelo FC Porto @Getty / Depois do 1-0 de Bruno Alves em cima do intervalo e do empate de Luisão, o rato de área recebeu uma assistência de Fernando Belluschi - após o guarda-redes Quim afastar a soco -, susteve o contacto do enorme Luisão e rematou para o 2-1. Momento decisivo. «Um avançado quer sempre marcar golos e ainda mais num Clássico», continua Farías, hoje treinador nas camadas jovens do River Plate. «Foi a primeira vez que marquei ao Benfica e o golo acabou por ser fulcral. Lembro-me que o Fucile tinha sido expulso, eles empataram logo a seguir e criou-se uma atmosfera má no estádio. Quando marquei, a explosão foi extraordinária.» Um FC Porto reduzido a dez unidades, um Benfica a arriscar na busca do empate que significaria o título – na casa do maior rival desportivo dos últimos 30 anos, insistimos – e o génio de Belluschi a resolver tudo. Dúvidas sepultadas. «Falar desse golo ainda me emociona», responde Belluschi, 40 anos e a competir na segunda divisão da Argentina (Estudiantes Río Cuarto), apesar de estar a recuperar de uma lesão grave no joelho. Dois argentinos, as mesmas sensações. «A semana não foi fácil para a equipa, tenho a lembrança disso», avalia Farías. «Tínhamos na cabeça a certeza de que eles seriam campeões no Dragão se empatassem e isso não podia acontecer. Não o podíamos permitir, era impossível imaginá-lo.» Num assomo de orgulho, que pouco mais valeu do que isso, o FC Porto adiou a festa do Benfica. Na última jornada, a receção ao Rio Ave acabou com um 2-1 e os homens de Jorge Jesus festejaram o título. Mas não em terreno azul e branco, o último desejo dos portistas. «Nós não estávamos bem no campeonato e queríamos muito dar essa satisfação à nossa gente. Creio que o sentimento para domingo será o mesmo», avança Belluschi, dragão de 2009 a 2012, 113 jogos e sete troféus no total. O concílio de argentinos tem perdido influência no FC Porto. Em 09/10 eram seis os representantes da pátria de Maradona e Messi (Farías, Belluschi mais Valeri, Prediger, Tomás Costa e Mariano González), em 23/24 Alan Varela é o resistente. Belluschi a festejar no FC Porto @Catarina Morais «Conseguimos coisas importantes para o FC Porto e o clube jamais sairá do meu coração. Foram três anos maravilhosos e faço questão de seguir o clube, sempre na expetativa de ver os resultados. Serei dragão para sempre», jura Ernesto Farías, antes de nos pedir as imagens do famoso golo ao Benfica. «Já não o via há algum tempo. Eu era forte nessas jogadas. Usava bem o corpo, mesmo sem ser muito alto e forte, e depois era frio a rematar. Tinha muito a ver com a minha personalidade, sempre fui assim descontraído», reflete, num castelhano cerradíssimo. Belluschi envia o abraço da praxe às pessoas do FC Porto e recorda os nomes de colegas e treinadores da época em Portugal. 14 anos depois de proibirem a festa encarnada no Dragão, suplicam a «mesma determinação» aos sucessores. O Clássico não é uma questão de vida ou de morte, mas pode deixar cicatrizes eternas.«Não lhes podíamos permitir o título, impossível»
Ernesto Farías
6 títulos oficiais«Foi o meu último golo e último jogo pelo FC Porto»