«Fiz-me ao caminho para provar que não era do FC Porto, nem do Benfica, nem do Sporting»

1 mes atrás 56

«Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico»

Luís Castro. O nosso último contacto é um telefonema intercontinental, de Lisboa até ao Rio de Janeiro. ‘Tenho de ir ao concerto dos Coldplay. Hoje é dia de folga do Botafogo, descansei um pouco e agora vou sair do apartamento. Temos meia-hora para falar.’ E falamos, animadamente.

Um ano depois, mais dia menos dia, encontramo-lo no Algarve, já como treinador do Al-Nassr. O ar descontraído é a sua imagem de marca. Começa pela viagem a pé do lobby para o quarto, a falar da vida. Sentado na sua cadeira (de sonho), durante 98 minutos, Luís Castro movimenta-se uma série de vezes e mete-se de lado com os pés para fora, completamente suspensos. Que se iniciem os jogos olímpicos das palavras.

Nem eu sei, é estranho, sim. Num primeiro momento, quero ser tudo. Depois percebo que posso não ter essas possibilidades. Olho para a minha realidade e travo. Okay, vou ser treinador na região de Aveiro, trabalho como comercial, a vender publicidade, e tudo acumulado dá-me um bolo porreiro. A esposa está bem, as filhas também, ambiente tranquilo, dá para pagar despesas. Depois começo a passar da distrital para a 3.ª divisão, da 3.ª para a 2.ª B e, de repente, começo a olhar para clubes mais de cima como possibilidade. Mas ganhava mais como comercial de uma empresa do que como treinador. Ganhava bem. No futebol, ganhava mil euros. Na empresa, 1.500. Quando se tem filhos, os gostos pelas coisas têm de estar de acordo com a exigência da vida e a exigência condiciona o gosto. Gostava do futebol, mas ia andando com cautela. Nesse momento em que fui para o Penafiel, pareceu-me a hora de olhar para a hipótese de ser profissional. Estou bem na Sanjoanense e o presidente diz-me ‘se aparecer alguém na 1.ª, liberto-te.’ O Artur Fernandes, o Joca, liga-me a perguntar se estava interessado em ir para o Penafiel, mas tinha de ser naquela semana e para substituir o Manuel Fernandes. Falo com o presidente e ele faz valer a sua palavra. Chego a Penafiel, empato com o Rio Ave, depois ganhámos, depois empatámos. Sete pontos em três jogos [Luís faz uma careta cómica]. Fizemos um campeonato curioso e apurámo-nos para a Taça Intertoto, só que o António Oliveira [presidente do Penafiel] não nos tinha inscrito. Andávamos animados e, depois, fomos privados do sonho europeu, ahahah.

Equipa boa?

Drulovic, Artur Jorge, agora treinador do Botafogo, Roberto, Folha, depois meu adjunto.

Drulo, que tal?

Já estava em final da carreira e até passa para treinador de juniores do Penafiel nessa época, mas, com bola, Drulo era Drulo: a bola saía teleguiada, fosse bola parada em faltas ou em corrida, nos cruzamentos. Clayton, outro bom de bola. Ganhámos ao Sporting, no José Alvalade.

Pois é, N’Doye.

Que jogador, fogo. E não é ele quem marca ao Benfica?

Exactooooo.

Um-zero em Penafiel.

Que bela segunda volta, 2:0 no José Alvalade e 1:0 ao Benfica em Penafiel.

É isso, sim.

Trapattoni, que tal?

Simpático e correto. Mas ninguém como Bölöni.

Então?

Joguei pelo Estarreja contra ele, no José Alvalade, para a Taça de Portugal.

E o Ronaldo não marcou nesse dia?

Acho que não. Diria Quaresma. Havia 2:1 aos 70 minutos e estávamos a andar bem. No final, eu e ele conversámos e convidou-me para ir à Academia, em Alcochete.

E?

Fui lá passar um dia, fantástica experiência.

[abro o excel e Ronaldo marca mesmo ao Estarreja, o momentâneo 3:1]

Foi, marcou?

Carlos Martins, Moita, Niculae, Ronaldo e Danny.

E eu que pensava que nunca tinha jogado com o Ronaldo. Com quantos anos, 17? E marcou? Nem sabia. Olha, um dos golos dele é contra mim.

E o Estarreja?

Subimos de divisão. Foi cá uma festa. Aprendi muito ao longo dos anos e uma das aprendizagens é que a alegria na vitória é transversal às divisões.

Bela aprendizagem. Segue-se o FC Porto, e como coordenador da formação. É um passo pensado?

O Antero [Henrique] fala comigo. Há contactos, reuniões, é uma história longa. De repente, sou director técnico da formação. Queria fazer a minha carreira como treinador, mas foi uma forma de ter uma fase na minha vida em que pude apreender uma série de coisas que estavam por apreender em termos de metodologia e estilo de jogo. Retive muito conhecimento durante esses dez anos, porque trabalhei com jogadores jovens, liderei 20 treinadores e isso ajuda-me hoje a ter paz a olhar para os meus jogadores, todos eles de forma diferente, e a olhar para o treino de uma forma tranquila. Hoje, o meu mundo é a elaboração do treino e o treino em si; o jogo é o complemento, é o resultado final de uma semana de treinos. Ajudou-me muito, essa fase no FC Porto, e ainda hoje, hoje mesmo, tenho um prazer enorme em elaborar um treino.

O que sobressai desses dez anos como diretor técnico?

A bênção ao projeto PJE (Potenciais Jogadores de Elite), que consiste em programas de desenvolvimento para todos os potenciais jogadores de Seleção Nacional, a partir dos 14 anos.

Quem, mais concretamente?

Diogo Costa, Rúben Neves, Gonçalo Paciência, André Silva, Diogo Dalot. O Vitinha, já não sei. Esse programa começava com jogadores aos 14 anos e acho que o Vitinha começou mais tarde. Seja como for, tenho todos esses nomes ali no computador.

E a experiência no FC Porto B?

Ao fim de sete anos como diretor técnico da formação, gostava de fazer o que fazia e tinha relações ótimas com Benfica, Sporting, Vitória, Braga. Ia ver um jogo a Lisboa dos sub17 e era bem recebido. Se alguém viesse ao Porto, o mesmo. Havia uma boa relação entre todos nós, gostava daquele mundo. As pessoas tentavam misturar as águas, como se quisessem imitar o futebol sénior. Nada disso, missão impossível. Um dia, sou chamado pelo Antero Henrique e ele: ‘vamos substituir o treinador da equipa B, faz um trabalho de scout sobre os potenciais substitutos.’ Fiz o relatório, trocámos opiniões e, um belo dia, ele chama-me e

- ‘tu vais ser o treinador da equipa B’

- ‘Não, não vou’

- ‘Mas eu que é mando’

- ‘Já não sei treinar.’

- ‘Estás todos os dias no Olival.’

- ‘Sim, uma coisa é orientar, outra coisa é treinar e não dou um treino há sete anos’

- ‘Vais ser tu’

- ‘Não, não vou’

- ‘Pois, mas tens um contrato connosco e vais ser’.

E?

E fui, pois. Ainda me lembro do primeiro jogo, em Aveiro. Já nem sabia subir as escadas ou fechar a porta do balneário.

Convenhamos, o resultado foi óptimo.

Fizemos um bom campeonato no primeiro ano, fomos campeões da 2.ª Liga no segundo e saio em Novembro no terceiro. O Antero foi embora, para o Paris, e eu também quis sair. Não era muito atrevido, mas queria seguir os outros. E fiz-me ao caminho para provar que não era do FC Porto. Nem do Benfica, nem do Sporting. Sou do futebol. Mas foi preciso ganhar ao FC Porto no Dragão [pelo Vitória SC, 2:0 ao intervalo e 2:3 no final] para as pessoas pensarem em mim como um treinador do futebol.

Verdade, esse 3:2. Mas o Luís comete a proeza de ser campeão da 2.ª por uma equipa B. Quem andava por lá?

Graça, Francisco Ramos, Omar, Diego Carlos, André Silva, Gonçalo Paciência. Foi uma época interessante, muito interessante. Fomos campeões antes de jogar, porque a equipa do Vítor Oliveira, do meu grande amigo Vítor Oliveira, um amigo do c*******, não ganhou o seu jogo de manhã. E foi o primeiro ano da minha vida em que não mostrei um único vídeo dos adversários aos meus jogadores. Virámos tudo para nós, apresentávamos vídeos semanais sobre nós, o que estava mal, o que estava bem. Tinha uma equipa em processo formativo, não queria condicioná-los sobre a forma de jogar dos outros e o resultado foi que a nossa equipa não tinha medo e desfrutava do jogo.

O Luís também chegou à equipa principal. Para o lugar do Lopetegui?

Não, foi para o do Paulo [Fonseca]. Mas aí foi um flash de quatro meses.

Quem andava por lá?

Quaresma, Jackson, Fernando, Defour, Herrera, Danilo, Alex Sandro, Helton, Mangala.

Ainda faz jogos europeus?

Vamos a Nápoles, do Benítez, foi a minha bênção.

Como foi?

Ganhámos 1-0 no Dragão e empatámos 2-2 em Itália. Pior foi depois.

Então?

Apanhámos o Unai [Sevilha]. Ganhámos em casa, depois sofremos cedo o primeiro golo em Sevilha e foi o descalabro.

Flash de quatro meses, o que é isso?

Foi bom para estar em contacto com jogadores de grande nível. Mas foi mau, porque o clube estava instável e exigiu muito da minha comunicação, além de não ter podido construído a equipa desde a raiz. Quando me dizem ‘treinaste o FC Porto A’, respondo sempre ‘não, não treinei’. Para mim, o treinar é escolher a equipa, depois treiná-la, depois escolher os jogadores nas janelas de mercado entre entradas e saídas e por aí fora.

«Achei que o Trubin tinha capacidade para ser top»

O Luís fez isso no Shakhtar?

A ideia do presidente do Shakhtar era acabar com uma geração e começar com outra. Fui escolhido pelo presidente para deitar a mão aos mais jovens, como Solomon, Marcos António, Dodô, Bondarenko, Trubin.

Trubin?

Sim, tenho de tirar o Pyatov. Fim do mundo na Ucrânia, a queda do Pyatov. Sou contratado para isso, para tentar continuar a ganhar enquanto mudo o pneu em andamento.

E o Pyatov aceitou bem?

O Pyatov [36 anos] é uma pessoa muito boa, mas nunca gostamos quando o nosso espaço é invadido. Mas achava que o Trubin [19 anos] tinha capacidade para ser top. E foi. A verdade é que fomos campeões ucranianos na primeira época, com recorde de pontos de avanço sobre o Dínamo Kiev [23 de avanço]. Na Liga Europa, vamos às meias-finais e somos esmagados pelo Inter, onde jogava o Brozovic.

Quantos?

Ao intervalo, 1:0. Digo então à minha equipa técnica que vou dar mais dez minutos para arriscar e eles dizem-me ‘mister, isso é cedo para arriscar o que quer que seja’. O Inter tinha Lautaro e Lukaku, uma máquina de jogar. E arrisco mesmo aos dez minutos: ponho o Solomon a 10 e, a partir daí, foram autoestradas para apanhar cinco. Para chegar aí, saltei da Liga dos Campeões num grupo com City e Atalanta. O que nos salvou foi um 3:3 em Zagreb. Estava 3:1 para o Dínamo aos 90’, reduzimos aos 90’+4 e, depois, empatámos de penálti aos 90’+8.

Uauuuu, que emoção.

Também tenho um grupo difícil no segundo ano, com Real Madrid, Inter e Borussia. Aí, empatámos 0:0 com o Inter em Milão e passámos. Mas tivemos sorte, o Inter podia ter-nos posto fora.

Grande movida.

Sabes, Rui, pensava que o mundo era pequeno. Primeiro pensava que o mundo era a minha aldeia, Vila Real. Depois pensava que era Portugal, depois pensava que era Portugal e Ucrânia, agora é grande para caraças, já sou cidadão do mundo. Ainda há dias, estava a mostrar vídeos aos jogadores dos meus treinos na Ucrânia, cheios de neve, depois no Qatar, com camelos a passar no meio da estrada, depois no Rio de Janeiro, a visitar a Rocinha e o Vidigal, e agora no meio dos milhões em Riade.

«Na Arábia Saudita são mais efusivos do que no Brasil»

Pois é, Brasil. Já nem me lembrava do Botafogo. Que tal?

Entreguei-me ao trabalho. É um país do futebol, gostei muito. As pessoas vivem apaixonadas, vêem-se 30, 40 e 50 mil no estádio, sempre alegres, muito ligadas ao jogo.

E vive-se sossegado?

Ninguém chateia.

Ninguém?

Na Saudi é mais efusivo.

Mais que o Brasil?

Sim, sim. Na Saudi, tiram-me fotografias e fazem vídeos comigo sem autorização, é sempre a andar, a andar.

(desligo o gravador, porque tenho um comboio para apanhar e, convenhamos, já comi uma série de sortidos sem glúten, cortesia do Luís)

(E, de repente, começa-se a falar dos primórdios)

Como era arrancar aquelas bolas de cautchu?

Era violento, sobretudo na formação, sobretudo nos pelados, sobretudo a chover. O futebol evoluiu muito; não é melhor nem pior, é diferente.

Alimentação, por exemplo.

Por exemplo. Antes, reduzíamos a um arroz branco com peixe ou bife. Agora é feijão, grão, peixe assado. Antes estávamos muito limitados, agora há bolos, há doces, proteínas. Agora é tudo ao pormenor, e individual. No fim de cada treino, e em função da informação do gps, o nutricionista faz o prato ao Otávio, o copo do Brozovic e por aí fora. É tudo diferente. Agora é melhor? É diferente.

Brozovic. Adoro-o.

Chegou aqui há três dias e já jogou ontem. Correu, correu, correu. Há um jogo do Mundial-2014 em que ele faz 18 quilómetros em 120 minutos. É um animal competitivo. O seu normal é 12, 13 quilómetros por jogo. Está sempre a encontrar caminhos. Demasiados até, ahahahah.

E ele lembra-se do Luís naquele 5:0 entre Inter e Shakhtar?

Nunca falámos sobre isso, ele lembra-se lá. Já fez centenas de jogos depois desse.

Verdade.

Atenção, ele já jogou finais de Mundial, Liga das Nações, Liga dos Campeões, Liga Europa. É muito para um homem só.

Qual foi o primeiro título do Luís como treinador?

Campeão distrital de infantis, no Águeda.

Que espectáculo.

Ainda era jogador. Ganhámos o sub13 e, depois, entrámos na fase final da zona norte, com FC Porto, Sanjoanense e Espinho.

[dá-me um flash e eureka] Essa proeza é como ganhar duas vezes ao Real Madrid.

Ahahah.

Só agora é que me lembrei.

Duas vitórias diferentes. Lá, em Espanha, no Estádio Di Stéfano, ganhámos bem. Recuámos o Dentinho para puxar o Varane e libertámos as feras nas alas. Fomos a ganhar 3:0 ao intervalo. Depois, o Real reduziu para 3:2, mas mantivemos o nosso fluxo e até podíamos ter marcado. Em casa, na Ucrânia, já foi mais à base da sorte. Ganhámos 2:0, sim, mas com sorte.

(agora é que é, despedimo-nos à engenheiro Sousa Veloso: com amizade e até à próxima entrevista)

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