Gonçalo Paciência: «A minha vida tem sido uma constante de ups and downs»

4 meses atrás 75

Dias felizes na casa dos Paciência. O nascimento da primeira filha de Gonçalo deu mais um neto a Domingos e as férias vão ter um sabor diferente. Provavelmente com menos horas de sono. Perto da fazer 30 anos, o internacional português saboreia uma fase de «maturidade», ainda e sempre em busca de «golos e de minutos», as ferramentas básicas de um ponta-e-lança. 

Fechada mais uma época na Alemanha, agora com o Bochum e em jeito de final feliz e miraculoso, Gonçalo visita o zerozero para fazer o balanço e contas. Para onde corre a carreira do antigo avançado do FC Porto, ligado ao Calta de Vigo por mais uma época? 

As respostas evidenciam uma afinidade enorme com a Bundesliga e a Alemanha. Percebe-se que, no que depender dele, Gonçalo dará sempre prioridade a esse campeonato. Uma hora de conversa com um dos mais entusiasmantes comunicadores do futebol português. Esta é a PARTE I da conversa. 

Na PARTE II, a publicar quinta-feira pelas 15 horas, a ligação emocional ao FC Porto é o prato forte. 

zerozero - Comecemos pelo «milagre do Bochum». Como é que se explica um feito destes?

Gonçalo Paciência - Depois de uma derrota por 3-0 em casa, nem os jogadores conseguem explicar. Costuma dizer-se que quem vem de baixo, da segunda divisão, está melhor. O Fortuna Dusseldorf já tinha a setinha para cima. Não esperávamos. Eles estavam bem, há 12 jogos sem perder, e nós seguíamos numa maré irregular. Típica de uma equipa que estava a lutar para não descer. Depois da derrota em casa no primeiro jogo (0-3) sentiu-se ali um... o pessoal foi abaixo. Parecia um funeral e digo isto com todo o respeito. 

zz - E no meio desse «funeral» houve também um nascimento. 

GP - Ainda por cima isso. Tive a felicidade de ter o nascimento da minha filha nesses dias. Foi um misto de emoções inesperado. O Bochum teve a sensibilidade de me deixar vir a Portugal. Quando lhes perguntei se teria de regressar para jogar a segunda-mão, eles disseram-me assim: 'vem, porque nós vamos fazer um milagre'. Até mostrei as mensagens, fiz um print (risos). Voltei no dia do próprio jogo, fomos para Dusseldorf e a dada altura sentimos que aquilo ia cair para o nosso lado. Marcámos um golo cedo... quase ninguém acreditava. Os adeptos já pensavam na segunda divisão, a direção mostrava algum medo, porque uma descida é sempre algo trágico. E demos a volta. O jogo vai ficar marcado na história do futebol alemão. 

zz - Houve alguma preparação diferente para esse segundo jogo? 

qEu vivi a cultura do FC Porto muitos anos. Tem muito isso. Vem aliado à mística, à raça, parece um filme, um teatro. 'Vais para lá, tens de trincar a língua...' e o futebol é muito mais do que isso

Gonçalo Paciência

GP - Durante a semana, o treinador colocou no balneário algumas histórias de «remontadas». O Liverpool-Milan (0-3 para 3-3), o Barcelona-PSG (0-4 para 6-5)... e nós brincávamos com aquilo, olhávamos uns para os outros. 'Mas estes aqui tinham o Messi e outros, não vejo aqui nenhum desses' (risos). Deu tudo certo, foi uma noite especial. A minha filha tinha nascido na noite anterior e esse jogo foi uma descarga de adrenalina. Para mais tarde recordar. 

zz - E o Gonçalo assumiu a marcação do primeiro penálti no desempate. Com o amor pela sua filha e a paixão pelo futebol no coração? 

GP - São momentos em que é preciso frieza e calma. A minha filha deu-me uma perspetiva diferente. 'Isto não é nada', se comparado com o nascimento de um bebé. A pressão no futebol nunca me prejudicou, nunca me limitou. E, agora que sou pai, muito menos. O treinador pediu um jogador para marcar o primeiro penálti e acalmar a equipa. Isso mexeu comigo. 'Vou lá marcar'. Mostrei à equipa que estava ali com eles, mesmo depois de ter sido pai há algumas horas. Foi uma alegria enorme.

Já ganhei alguns títulos, mas evitar uma descida... a emoção ainda é maior. Há mais coisas em jogo, é a fuga à morte. O clube pode cair e não se levantar mais. Eu era um atleta emprestado, mas a relação com os meus colegas e as famílias estava lá. Imaginei-os a terem de descer um escalão. Eu sabia que não ia continuar no Bochum, mas quis ganhar por eles também. 

zz - O Bochum é um clube muito diferente do Eintracht e do Schalke? Até do Celta, em Espanha. 

GP - Sim. O Schalke vive um momento complicado, mas é um clube de dimensão muito grande, tal como o Eintracht. Já apanhei o Schalke em queda, embora ninguém pensasse na descida. A aposta nesse ano foi muito grande, o orçamento era um dos cinco maiores da Bundesliga. Sentia-se toda a aura do clube, quando íamos para os treinos, na cidade. O símbolo joga muito e o símbolo do Schalke na camisola é pesado. Posso revelar uma história gira.

Quando cheguei ao Eintracht, um dos primeiros jogos foi em Gelsenkirchen, a casa do Schalke. No final do jogo lembro-me de estar a falar com o meu empresário e dizer-lhe isto: 'Se um dia tiver de escolher outro clube para jogar na Alemanha, escolho o Schalke'. Que clube! A atmosfera no estádio era extraordinária. Clube grande, com massa adepta forte. Julgo que será o terceiro clube com mais adeptos na Alemanha. 

zz - No Eintracht foi o oposto. Era um clube em crescimento. 

GP - Exatamente. Apanhei o primeiro ano na Liga Europa (18/19), fomos à meia-final e perdemos nos penáltis contra o Chelsea. Hoje em dia já tem condições de primeiro nível. Remodelaram os campos de treino, tudo. Quando eu cheguei lá, ainda nos equipávamos debaixo da bancada e num balneário pequenino. Hoje existe um complexo desportivo que é dos maiores da Alemanha. O Bochum e o Celta coloco no mesmo nível. São clubes mais pequenos, ambicionam dar um salto, mas está a demorar.

O Bochum é um histórico da Alemanha, com uma massa adepta boa, mas que tem passado mais tempo na 2.Bundesliga. O Celta é próximo às gentes nortenhas de Portugal, temos carinho pelo clube. Tem muito potencial, mas também está a ter dificuldades em dar o próximo passo. Com a nova direção parece-me haver maior proximidade aos adeptos. É um clube que tem algo especial, falta-lhe dar o salto em alguns aspetos. Está um bocado abaixo do Eintracht e do Schalke. 

zz - Não jogou tanto como esperaria no Bochum, mas fez um dos melhores golos da época. Só o Gonçalo marcaria aquele golo ao Hoffenheim, como diziam num canal alemão?

GP - Foi uma época difícil. Cheguei lesionado ao clube, estava com um problemazito e demorei duas semanas a recuperar. Até janeiro consegui entrar nas opções e afirmar-me. Nessa paragem voltei a ter alguns problemas físicos e não dei continuidade ao que estava a fazer. Na fase final não joguei como queria. O jogo da equipa também não me beneficiava muito. A maneira como cheguei ao clube, na fase final de mercado, não foi positiva também.

Tem-me faltado isso, tenho chegado a vários clubes nesses momentos já fora da pré-época. Isso tira-me consistência e continuidade. A indecisão... acaba por me prejudicar. Tenho sempre bons momentos, como esse golo ao Hoffenheim, mas sem continuidade. Seguirei em frente. 

Gonçalo tem contrato em Vigo até 2025 @Celta de Vigo

«Em Bochum gostam de bola longa, na frente»

zz - Não vimos todos os jogos do Bochum, mas o futebol não pareceu ajustado ao tipo de avançado que é o Gonçalo Paciência. 

GP - O treinador [Thomas Letsch] tinha um histórico que me agradava. Tinha passado pelo Vitesse, no futebol neerlandês, e essa equipa jogava de forma diferente. Tenho sempre essa curiosidade de perguntar e saber como joga a equipa para onde posso ir. O próprio treinador admitiu que queria um futebol mais apoiado, de toque, mas o ADN do Bochum exige sempre uma coisa diferente.

Campo pequeno, bancadas em cima da relva, aquela mentalidade típica do Vale do Ruhr... é uma região historicamente ligada a classes operárias e isso faz com que não haja paciência para ver a equipa a tocar a bola de um lado para o outro. Gostam de bola longa, na frente. Eu até tenho essas características de ganhar duelos, segurar a bola, mas o outro avançado era ainda maior do que eu (risos). 

zz - O Philipp Hoffman? 

Gonçalo Paciência
3 títulos oficiais

GP - Exatamente. Nos jogos em que joguei, a equipa procurava-me mais para a ligação em passe curto e eu conseguia fazer isso. Mas o treinador sentia que não era o caminho certo. Sentíamos que ele tinha mais medo de perder do que desejo de ganhar. Quando é assim... jogávamos com quatro centrais na defesa.

Os laterais eram centrais. Quando passavam a linha de meio-campo, parecia que havia ali um sensor (risos). Não havia cruzamentos deles, era mais difícil fazer golos. A juntar a isso, também não tive uma época perfeita nas minhas condições físicas. Por isso não tive nem consistência, nem continuidade. É a minha vida, tem sido uma constante de «ups and downs». Vou à procura só de «ups» no próximo passo. 

zz - Já passou por problemas físicos pesados no passado. Nesta altura como é que está? 

GP - Percebi que a época não foi boa e estou a preparar-me bem para a próxima temporada. Não parei, já estou a treinar. A desfrutar das férias e da minha filha, mas a treinar. É essencial fazer uma boa pré-época. Curiosamente, ou não, sempre que fiz a pré-época com o clube em que continuei, os anos foram melhores. Pode acontecer o contrário, claro, mas a mim ainda não aconteceu.

Estou longe das lesões traumatizantes e estou bem. Tenho de encontrar um bom lugar para fazer uma boa época. Estar emprestado, normalmente, não é o melhor. Pensam que o futebolista está com a cabeça noutro lado. Aconteceu-me este ano. Por não serem da casa, alguns jogadores começaram a ser afastados. Fique no Celta ou não, quero fazer uma boa pré-época. 

zz - Se depender do Gonçalo Paciência, em que direção vai ser dado o próximo passo? Tem mais um ano de contrato em Vigo. 

GP - Estou aberto a tudo, a qualquer oportunidade. É sabido que sou fã do futebol alemão e que gosto muito de estar lá. Gosto daquele tipo de futebol, da atmosfera. Jogar em estádios cheios não tem preço. Tive a oportunidade de estar no Celta, em Vigo e o estádio costuma estar composto, mas na Alemanha sente-se algo diferente. Sempre gostei de estar lá.

Mesmo em Bochum o estádio estava sempre repleto [27.500 lugares]. No Celta estou na liga espanhola, também não é um mau lugar (risos). Ainda não há decisões. Se começar no Celta, começarei com a mentalidade de ficar e lutar pelo meu lugar. Mas acho que uma saída deve ser considerada. Se houver alguma coisa interessante pela Alemanha, gostaria de voltar. Gostaria também de experimentar outras ligas, como a italiana. Isso é para os meus agentes, a quem faço desde já o apelo para isto se trabalhar (risos). 

Gonçalo ainda é um ídolo em Frankfurt @Getty /

«Com golos e minutos posso voltar à seleção»

zz - A mentalidade do balneário, dos jornalistas, dos adeptos, é muito distinta entre Espanha e Alemanha?

GP - Em Espanha são complicados. Eu vivi a realidade-Celta. Não é um clube grande, não tem a dimensão do FC Porto, do Eintracht, do Schalke. E o ruído à volta do clube é gigante. Nunca vi tanta gente a comentar tanta coisa. Os media espanhóis também não são fáceis. Na Alemanha pensava que era igual a todo o lado. Mas não, há mais respeito. O jogador é menos criticado, há mais tolerância. Há casos e casos, mas há mais respeito. As pessoas vão ao futebol porque gostam de futebol. 

qEstou aberto a tudo, a qualquer oportunidade. É sabido que sou fã do futebol alemão e que gosto muito de estar lá. Gosto daquele tipo de futebol, da atmosfera.

Gonçalo Paciência

zz - Os treinos são abertos ao público? 

GP - São sempre abertos, sim. Há muito contacto com as pessoas, com os adeptos. Criamos alguma intimidade. Dizem que os alemães são muito arrogantes, mas senti mais isso em Espanha. São mais fechados. O alemão recebe-te e dá-te condições. Depois tens é de mostrar que estás lá para aprender e evoluir. Não só no futebol. A Alemanha é um país com muitas oportunidades, em várias áreas. E as pessoas respeitam-se. 

zz - É um bom palco para o Euro24?

GP - Sem dúvida. As condições são excelentes. Estádios, centros de treino, estradas, comboios. Nós viajamos muito de comboio, por exemplo. Misturamo-nos com as pessoas nas estações e nas carruagens. Num FC Porto ou Benfica seria impossível. O ambiente é muito mais leve. Outra grande diferença é o luto da derrota. Na Bundesliga a derrota é aceite, é normal.

Se perderes muitas vezes és contestado, mas é mais saudável. Não há a representação do dia a seguir, em que temos de fazer caras, não podemos estar a rir-nos. Lá não somos o palhaço do circo. Não há esse caça-fantasmas e isso dá-nos uma vida mais equilibrada. Futebol é futebol, em casa tens a família e à tarde vais passear e ninguém te diz nada. Portugal não é um inferno, mas há diferenças. 

zz - A ditadura dos três grandes alimenta programas, televisões e rádios. E isso contagia o público. 

GP - Eu vivi a cultura do FC Porto muitos anos. Tem muito isso. Vem aliado à mística, à raça, parece um filme, um teatro. 'Vais para lá, tens de trincar a língua...' e o futebol é muito mais do que isso. Mais do que bater e correr. Na Alemanha há uma expressão engraçada para esses jogadores que fazem carrinhos e batem no peito. Chamam 'fantasmas' a esses jogadores. Aqui há muito esse fantasmazinho que gosta do show off. Podemos sentir a paixão, mas é preciso mais. 

zz - Falemos da Seleção Nacional. Aos 29 anos, e com duas internacionalizações, passa-lhe pela cabeça voltar esse espaço nas próximas duas épocas, até ao Mundial? 

GP - Bem, tenho dois jogos pela Seleção A. Um em 2017 quando ainda era jogador do Vitória de Setúbal. Tornou tudo ainda mais gratificante. Ao lado de jogadores do Manchester United, do Manchester City e do Real Madrid, um jogador do Vitória. Acabei por ir para o FC Porto, onde não tive grande continuidade ao que estava a fazer no Bonfim. Não podemos olhar muito para o lado. Cada um tem o seu caminho, a sua história, o seu contexto. Orgulho-me desses dois jogos. Nunca consegui dar seguimento aos meus grandes momentos, porque se tivesse conseguido tenho a certeza que estaria lá agora, a preparar o Euro24. Sem sombra de dúvidas. 

zz - Um regresso é descabido? Já não vai lá desde 2019. 

GP - É sempre um sonho. Os jogadores prolongam as carreiras, há gente a estar no auge aos 32, 33, 34 anos. Por que não eu? Sonhar é de graça, ainda não paga impostos. Sonho com isso. Estou longe, sim, mas as coisas mudam depressa. É uma questão de golos e de minutos para mudar totalmente as coisas. Tenho de acreditar e estou preparado. Por isso gostaria também de continuar numa liga com alguma visibilidade. Nesta altura não estou nas ideias do selecionador. Com golos e jogos isto pode mudar. 

Ler artigo completo