Herman José. “Desistir da minha arte nunca foi opção”

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É um dos maiores humoristas, atores e criadores do nosso país e celebra este ano as bodas de ouro da sua carreira. Para presentear o seu público, vai realizar três espetáculos. Será uma ‘espécie de festa brava’, onde serão recordados grandes êxitos destes 50 anos de carreira de Herman José

Este espaço onde nos encontramos recebe dois espetáculos de comemoração dos 50 anos da sua carreira. O Porto recebe mais um. O que pode esperar o público? 

Mais do que espetáculos, vai ser uma espécie de festa brava. Por isso é que escolhemos o Campo Pequeno (risos). O último grande espetáculo que fizemos no Coliseu foi realmente feito com a lógica de quem vai fazer um espetáculo, com todos os parâmetros que é suposto haver de receita-custo. Este foi feito como um ato da amor. Temos uma orquestra enorme, vamos ter um layout de palco extraordinário e, sobretudo, é um espetáculo para me divertir. Não tem nada que não tenha sido testado, nada que não tenha feito, nada que não conheça. Acaba por ser um best off destes 50 anos de estrada, também apanhando boleia de todas as outras coisas que fui fazendo nas televisões e nos teatros. Mas é sobretudo um ato de alegria e de comemoração do facto de poder chegar a esta altura tão convicto, tão saudável, tão feliz… E isso sim, merece ser festejado. 

Se olharmos para o início da sua carreira, alguma vez pensou chegar aqui e comemorar tantos anos do mundo do espetáculo? 

Pensei que sim mas não desta maneira. Quando era novinho, lembro-me de todas as comemorações que havia de 50 anos de carreira na altura e ainda assisti a algumas. Era sempre numa perspetiva dramática de quase de final de vida. Havia qualquer coisa daquela tristeza de final anunciado, geralmente do artista que já não estava muito em condições, tinha convidados que vinham cantar o seu reportório porque ele próprio já não estava em condições. As coisas mudaram muito nesse aspeto. Hoje em dia, a nossa longevidade e a intensidade com que vivemos e a capacidade que temos em nos manter frescos faz com que seja diferente. Até mesmo no final. Lembro-me muitas vezes do Carlos do Carmo. O último espetáculo que ele deu muito pouco antes de desaparecer fisicamente, foi ótimo. Ele estava ótimo e excelente de cabeça. Acho que assim vale a pena comemorar e é muito nessa perspetiva que acho a comemoração tão gira porque ela é mesmo uma festa pelo lado positivo e não por aquela tristeza nostálgica de final de ciclo. Nem pensar.

Até porque o Herman tem uma energia que não acaba. 

Verdade. Acho que isto vai acabar mal, um dia destes acordo morto mas prefiro assim.

Sempre foi algo que quis fazer? 

Era a única coisa que conseguia fazer desde os quatro anos. Percebi na escola alemã, ainda no colégio infantil, que pelo humor, pela música, pela brincadeira, pela atuação, a vida se tornava mais fácil e mais divertida. E daí para cá nunca mais parei. Depois comecei a ganhar dinheiro – muito dinheiro – com os livros que escrevia e que vendia à família por 25 tostões. Fazia uns desenhos, escrevia umas histórias, recortava, cosia com linha, ficavam mini livros. E fartei-me de ganhar dinheiro a vender livros. Lembro-me de chegar à Mexicana, levar amigos e conseguir pagar o lanche com as muitas moedas que tinha conseguido nas transações. A partir daí, foi substituir os livros por espetáculos ou por televisão.

Mas as coisas mantiveram-se igual. 

Nunca tive intenção de ser outra coisa. 

Sempre teve o apoio da sua família?

Não. A minha família ficou horrorizada quando eu disse que ia para o Parque Mayer. O meu pai ficou doente e a minha mãe acho que na altura foi pôr uma vela a São José. Mas São José estava de férias e, portanto, não foi ouvida.

De todos os trabalhos que fez ao longo da sua vida, há algum que tenha um lugar especial no seu coração? 

Há um que é absolutamente revolucionário e que foi um êxito que foi o Tal Canal. Porque o Tal Canal era um programa inteiro, não era uma brincadeira, não era uma cantiga. Já tinha tido alguns sucessos entretanto como o Sr. Feliz e Sr. Contente com o Nicolau [Breyner], tinha feito o Tony Silva, o Passeio dos Alegres que foi um sucesso, tinha tido um disco de ouro em 1977 com o Saca o Saca-Rolhas, depois repeti com a Canção do Beijinho… O paladar do sucesso eu tinha. Agora, em função de um objeto tão vasto, tão ambicioso e tão cultural como o Tal Canal foi uma coisa emocionante e absolutamente irrepetível. Mas mais extraordinário ainda é rever o programa hoje em dia e respeitá-lo imenso e ele ter um timing que tem a ver com os nossos dias e não com o timing que se usava nos anos 80 que era totalmente diferente.

Tem uma carreira que começou cedo e passou por vários períodos de mentalidade da sociedade. Teve algum dissabor? 

Tive uma fase muito complicada que foi a suspensão do Amor de Perdição, em 1988. Fiquei muito triste, fiquei proibido de aparecer na televisão, fiquei completamente proscrito mas depois a natureza é muito engraçada e às vezes, como nas pérolas, é preciso criar uma impureza para a ostra criar uma pérola à volta da impureza. E no meu caso aconteceu isso. A minha suspensão fez com que eu fosse o grande produto quente dos espetáculos desse ano. E trabalhei tanto nesse ano em que estive suspenso que acabei o ano e comprei a minha primeira casa de Lisboa. Foi uma crise bendita, que acabou bem. 

Desistir da sua arte numa foi uma opção? 

Não. Nem pensar. Só o faria por razões de saúde.

Há músicas suas que todos conhecemos. Senhor Feliz, Senhor Contente, Saca o Saca-Rolhas, Serafim Saudade… Tem a sensação de dever cumprido quando, passados tantos anos, estas músicas ainda nos ecoam na cabeça? 

A sensação que tenho nunca é de dever cumprido. É sempre de espanto. Os meus espetáculos agora estão cheios de miúdos novos. E como é que é possível, um miúdo de oito ou nove anos saber a letra do Serafim do início ao fim? E já me aconteceu, que é de chorar a rir, eu às vezes estar tão concentrado no que vou fazer a seguir que me engano na letra. E ter os próprios miúdos a dizer ‘aquilo que cantou não era nada disso, esqueceu-se da segunda parte que era a Teresa de Bragança’. Isto aconteceu-me agora na Moita.

É um ícone da sociedade. 

É muito giro. 

E gosta? 

Fica-se muito orgulhoso e é extraordinariamente confortável porque a pessoa nunca está a contar com tanto positivismo. Achamos que as coisas vão correr bem, sou um otimista nato, mas não ao ponto de imaginar que estas novas tecnologias iam ajudar tanto. As redes sociais mantêm-nos completamente vivos e atuais. Ainda há pouco tempo partilhei uma entrevista de um programa que era o Crime na Pensão Estrelinha, que é o ‘Feuisberto Uauande’, um homem que não sabe dizer os L’s e parece que foi feito agora. As reações são como tivesse gravado agora aquele momento. É muito giro.

São as redes sociais que o ajudam a chegar à geração mais nova? 

São, sobretudo. As redes sociais são realmente uma ajuda inacreditável.

Os programas também fazem parte da sua vida. O bichinho da apresentação também está sempre aí? 

Está. Mesmo o programa que tenho agora na RTP, o Cá por Casa, alia as duas coisas. Ou seja, não é a responsabilidade de fazer uma hora de humor, que é uma coisa terrivelmente complicada, até porque Portugal não é um país que tenha tanto assunto assim, mas também não é só a conversa. Gosto muito desta ideia. Adoro conversar com pessoas, adoro pessoas e interesso-me por todo o tipo de criadores. Poder fazer esta mistura entre as duas coisas é aquilo que faço melhor. Não é por acaso que o programa está no ar há sete anos. 

E é para continuar? É sim!

Os portugueses agradecem. 

Acho que já ninguém agradece nada a ninguém hoje em dia. Mas já não é mau assim. 

Falamos também de algumas personagens suas. Tony Silva, Nélio, José Estebes, José Severino… É difícil criá-las ou saem-lhe com naturalidade? 

As melhores são as que já vêm feitas. Desde puto que imitava os professores. Mas imitava os professores que tivessem tiques que eu soubesse reproduzir bem. Os outros não fazia. Hoje em dia, por exemplo, se me é tão fácil fazer a voz da Júlia Pinheiro, a voz do Milhazes ou antigamente a voz do Carlos Pinto Coelho, a partir do momento em que ela existe, é muito fácil depois fazer o resto. Agora, para a semana, tive que escolher uma personagem. Que personagem é que escolhi? Uma que é rigorosamente igual a mim, praticamente não preciso de me maquilhar, que é a Xana Carvalho. 

E é fácil fazer essas imitações? 

É, sim. Divirto-me imenso e faço isto com muito prazer.

Qual é a sua personagem que acha que ficou mais na memória dos portugueses? 

Há um boneco que é muito forte que é o José Estebes também pelo facto de ele cantar o hino que a Federação Portuguesa de Futebol escolheu como hino oficial da seleção há dois anos, apesar de já ter sido feito em 1986, que é o Vamos Lá Cambada. Aquela energia nortenha, a diversão daquele sotaque e também a força da música fazem do personagem uma coisa completamente icónica que eu não posso deixar de fazer seja onde for. E que, em qualquer parte do mundo, é reconhecido. Lembro-me que há uns tempos fui fazer dois espetáculos à Austrália e estávamos todos boquiabertos. A Austrália tem emigração de várias gerações. Muito recente  – dos anos 90 – e tem a primeira de todas que foi nos anos 70 e são agora já pessoas de bastante idade. Ficámos espantados como é que era possível três ou quatro gerações diferentes unidas na mesma canção à volta da mesma personagem que conheciam perfeitamente. Isso é absolutamente mágico.

Destaca-se em várias áreas… Isso não o baralha? É fácil ser tantas pessoas numa só? 

Não porque há coisas que faço terrivelmente mal. A natureza é muito sábia e como me deu muito talento num dos recipientes, tirou-me completamente o talento para jogar à bola ou fazer qualquer coisa que meta bola. Se pegar na bola e quiser apontar para aquela entrada que está a três metros de distância, ela vai parar ao centro do Campo Pequeno. E nunca sei como. Tenho uma pontaria absolutamente miserável. E a jogar à bola sou tão mau, tão mau, que nos tempos de escola, quando era preciso escolher-se equipas, os que escolhiam fingiam que não me viam. Meter-me na equipa equivalia quase sempre a dizer que iam perder. Porque eu conseguia fazer coisas que ninguém faz. Autogolos só de passar pela bola. Acho que há aí uma compensação tão presente e tão concentrada. 

Como é que vê o humor em Portugal?

Está ótimo.

Não é uma arte incompreendida? 

Não, não. Está melhor que nunca. Há muita gente nova a fazer e da quantidade vem sempre a qualidade. Nos meus tempos era terrível porque era um deserto, havia muito pouca gente a fazer humor com conteúdo. Daí também ter tido tantas chatices. E hoje em dia há uma diversidade enorme de gente. Então se formos ao Instagram, TikTok, Facebook, é extraordinária a quantidade de miudagem que anda a fazer experimentalismos. Uns vão ficar pelo caminho mas outros vão, de certo, ter carreiras interessantes. E outros, são muito novos e já conseguem encher muitas salas de espetáculos, o que é extraordinário.

Há suficientes episódios caricatos na sociedade portuguesa para se fazer humor? 

O problema maior é que há momentos e personagens que já vêm com a caricatura feita. Hoje estava a ver um resumo do debate da Kamala com o Trump. As infantilidades que o Trump diz estão para além da própria caricatura. Ele já se vende com a caricatura. E o que é mais grave é que metade da população americana adota aquilo e vai com aquilo. A humanidade não me deixa muito espantado. Há coisas que estão sempre presentes no ser humano passem os séculos que passarem que é: por cada pessoa boa tem sempre um Putin, por cada pessoa inteligente tem sempre um atrasado mental que no interior da América profunda anda com uma bandeira com a cara do Trump a dizer que acredita que os imigrantes do Haiti lhes andam a comer os gatos e os cães. 

E como é que se inspira para esses trabalhos? Está sempre atento? 

Sempre com as antenas ligadas. É uma espécie de uma doença que se tem.

Não consegue desligar? 

Não, não consigo. É uma coisa obsessiva. No seu caso, por exemplo, não tem nada de caricaturável mas se tivesse algum problema, passado cinco minutos depois de se ir embora, já estava a fazer pouco de si. Mas por acaso não vale a pena porque é tudo perfeito.

Ah, muito obrigada! O seu humor já lhe valeu distinções. E também pelos 50 anos da sua carreira recebeu a medalha de mérito cultural. Por essa altura, o então primeiro-ministro António Costa falava numa mudança histórica e revolucionária no tipo de humor que o Herman trouxe. Como vê esta distinção e estas palavras? 

Vejo com muito orgulho e fascina-me que elas saiam de um homem com a experiência de vida e a responsabilidade de António Costa da mesma maneira com que hoje mesmo li a mesmíssima declaração por um dos miúdos que escreveram para mim, que fazia parte dos Gato Fedorento, o José Diogo Quintela. De uma maneira generosa diz precisamente a mesma coisa. Essa unanimidade de opinião que me encanta e na qual vejo alguma justiça, faz também parte desta alegria com que parto para estas declarações dos 50 anos.

Alegria essa que transmite sempre ao seu público. Sente-se muito acarinhado? 

Sinto. Mas gostava de ser mais (risos). Às vezes vejo pessoas absolutamente sensuais e apetecia-me ter uma varinha de condão e despi-las imediatamente e passar um fim de semana nas Maldivas (risos). 

Será esse humor e essa resposta rápida que tem sempre debaixo da língua que cativa o seu público? Se calhar é. Mas lá que gostava ir para as Maldivas gostava. 

Herman, preparamo-nos para mais 50 anos de histórias e humor? 

É muito inquietante essa nossa finitude e a perceção dela que tem feito tantos poetas, músicos, pintores, criadores, especular à volta dessa angústia que é a pessoa saber que acaba. Tenho uma grande vantagem que é: não sou muito rico, então não tenho grande desgosto de morrer. Tenho alguns amigos extraordinariamente ricos e às vezes olho para eles e penso assim: ‘Se eu tivesse o vosso dinheiro tinha um pânico enorme de morrer’. Agora no meu caso até me consola. Depois já não pago mais impostos, não tenho que pagar mais ordenados, acaba-se o IMI de vez… dá-me até um certo conforto saber que vou para um descanso eterno e depois alguém cá fica a pagar contas. Agora se eu tivesse como amigos meus que recebem milhões de dividendos por ano, tinha um desgosto enorme de morrer. Tinha milhões de coisas ainda para fazer.

Independentemente dessa finitude a que todos chegaremos, até lá não tenciona parar?

Curiosamente fiz uma coisa extraordinariamente inteligente que aconselho todas as pessoas a fazerem: a minha vida privada tornou-se tão rica e tão interessante, tenho tanta coisa que me distraia e ganhei uma técnica tão boa da passagem do tempo que se tiver de parar agora mesmo, estou preparado para isso. Não quer dizer que fique feliz, porque adoro fazer espetáculos e adoro o que faço. Mas, se tiver que ser, não fico à toa. Sei precisamente o que vou fazer no minuto seguinte. E o mundo está cheio de coisas interessantíssimas que se podem fazer. Ler, ver filmes, cozinhar, passear, ir para o jardim jogar dominó com os velhos (risos). Mas, realmente, se uma pessoa tiver que se habituar a enriquecer intelectualmente, verdadeiramente nunca está enfadada, nem triste, nem só. O exemplo maior era o meu pai que odiava trabalhar. Sempre odiou. E quando se reformou – cedo – foi o dia mais feliz da vida dele. A vida dele intelectual era tão rica que ele foi um tipo felicíssimo até ao último momento. E ainda tinha uma vantagem sobre mim: gostava de futebol. Portanto, ainda tinha o prazer de ver jogos de futebol que é uma coisa que eu não tenho. E lembro-me que ele já estava no hospital, muito mal do coração, pouco antes de ser operado e depois de ter ficado no pós-operatório, estava numa fase já muito complicada e, mesmo assim, comprei-lhe na altura uma televisãozinha portátil, estava a dar um campeonato qualquer. A felicidade dele… Uma das últimas vezes que o fui visitar, ele estava tão entusiasmado e tão encantado com o jogo que estava profundamente feliz naquele momento. O truque é esse: é compensar as debilidades físicas com o enriquecimento intelectual. Se a pessoa ficar demente, melhor ainda. Assim vive sempre numa bolha, num mundo ficcionado onde tudo é maravilhoso.

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