Influencers geradas por IA. ‘A criação de influenciadoras virtuais levanta sérias questões éticas’

2 meses atrás 77

Têm milhares de seguidores no Instagram e trabalham com marcas ganhando milhares. Viajam pelo mundo e sugerem livros, museus e restaurantes. No entanto, nenhuma delas existe. São influenciadoras criadas a partir da Inteligência Artificial (IA). Mas até que ponto este fenómeno não será perigoso?

Todos nós gostamos de sentir que fazemos parte de alguma coisa. Todos nós gostamos de ouvir histórias com as quais nos identificamos. Estes são alguns dos seus «objetivos». Se antes muita gente desconhecia o conceito, atualmente este está cada vez mais enraizado na sociedade e, por mais que muita gente continue sem entender, ser influencer digital é uma profissão. Aliás, uma profissão cada vez mais cobiçada. Conhecidas também como creators, ou criadoras de conteúdo, são capazes de influenciar pessoas através daquilo que partilham nas suas redes sociais. No já grande leque existente, uma marca procura as pessoas com quem mais se identifica, com o objetivo que estas publicitem os seus produtos: seja de maquilhagem, roupa, comida, viagens, livros, carros, etc. Além disso, são cada vez mais aquelas que desmistificam os conceitos de beleza e, através das suas histórias e jornadas de self-love, permitem que as suas seguidoras reflitam e alterem a forma como olham para si mesmas, aceitando aquilo que, muitas vezes, não gostam no seu corpo, por exemplo. No entanto, parece que o paradigma está a mudar. E, infelizmente, para algo assustador.

Olívia C, tem mais de 12 mil seguidores no Instagram. Não sabemos a sua idade, sabemos apenas que é filha de pais portugueses, vive no Porto, lê Miguel Torga e adora viajar. Destaca-se pelos seus olhos verdes, cabelos ruivos curtos, um rosto pintado de sardas e lábios carnudos. Além disso, segundo a sua página que parece esteticamente estudada, já esteve em Paris, Bilbau, Valência, Peníscola, Sardenha, Lisboa, Peru, etc. Olívia C. partilha com os seus seguidores os locais que visita (museus, por exemplo), os restaurantes onde come e os livros que lê. No entanto, a jovem não esteve em nenhum desses lugares. Aliás, por mais que seja difícil de acreditar (pelo realismo das suas fotografias), nem sequer existe. A verdade é que esta influencer «nasceu» em 2014 e é uma «viajante artificial», criada com recurso à Inteligência Artificial (IA) pelo estúdio português Falamusa, das Caldas da Rainha. Mas não será este novo fenómeno perigoso? Com o aumento das influencers criadas pela IA, o que será das criadoras de conteúdo reais? Não estarão estas «jovens» construídas a partir dos padrões normalizados de beleza a estragar tudo aquilo que as influencers reais têm tentado combater?

Outras influencers geradas por IA

Tal como Olívia C., já existem centenas de outras influencers criadas a partir da IA. E, para surpresa de muitos, esta faz parte da lista de 10 modelos que estão a competir naquela que será a primeira edição do concurso Miss Inteligência Artificial, organizada pela World AI Creator Awards (WAICA). Alguns dos critérios que serão avaliados por um painel de jurados humanos e figuras criadas digitalmente são: a beleza, tecnologia e a influência nas redes sociais. Entre 1.500 submissões a nível mundial, destacam-se candidatas do Brasil, Roménia, Marrocos, França, Índia, Turquia e Bangladesh. A vencedora (ou o grupo que a criou) será conhecida no final de junho do próximo ano e receberá um prémio em dinheiro de 5 mil euros, além de programas de mentoria em IA, serviços de relações-públicas, entre outros. Recorde-se que estas criadoras de conteúdo são construídas com o auxílio de programas como o DALL-E 3, Midjourney ou Stable Diffusion da Open AI para gerar imagens a partir de instruções de texto.

Seren Ay tem quase 22 mil seguidores no Instagram. É turca e, tal como Olívia C., tem cabelo ruivo e olhos verdes. Também publica fotografias das suas viagens e atividades. Além disso, viaja no tempo. Por exemplo, a criadora de conteúdo já apareceu ao lado do primeiro presidente da Turquia, Kemal Ataturk, que morreu em 1938; ao lado de um dinossauro; em castelos com roupas medievais; no tapete vermelho dos Óscares; no cimo de um prédio com o fato de Homem Aranha; no deserto do Saara e a vaguear pelas ruas de Quioto, no Japão. Além disso, é modelo. Esta foi criada para promover a joalharia dos seus fundadores – Sirena Art -, já que estes não conseguiam trabalhar com criadoras de conteúdo reais.

Já Anne Kerdi, criada em França, além das publicações que faz sobre viagens, é ativista e chama a atenção para temas como a limpeza dos oceanos. Tem mais de 10 mil seguidores no Instagram. É magra, tem os olhos cor de avelã e os cabelos castanhos lisos.

Aiyana Rainbow, da Roménia – com mais de 4 mil seguidores na mesma rede social -, tem os olhos azuis e o cabelo pintado com as cores do arco-íris, publicando mensagens de apoio à comunidade LGBTQI+. Esta parece mais radical, aparecendo em fotografias em cima de motas, com fatos de cabedal e lingerie que mostra bem as suas curvas.

Zara Shatavari, da Índia, tem mais de 13 mil seguidores e é conhecida por dar dicas para lidar com a depressão e para perder a «gordura teimosa na barriga». Faz ginásio, yoga, ténis, meditação e corridas.

O perigo de perpetuar padrões de beleza

Como influencer mid/plus size, Catarina Corujo, tem vivido na linha de frente das complexas e, muitas vezes, dolorosas questões relacionadas aos padrões de beleza impostos pela sociedade. Segundo a própria, navegar pelo mundo digital, onde a imagem perfeita é frequentemente celebrada, pode ser um desafio constante. «A chegada das influenciadoras geradas por inteligência artificial (IA) adiciona uma camada adicional a essa já complicada dinâmica, já que vem retirar ainda mais espaço a uma comunidade tantas vezes pouco inclusiva», defende. «Para muitas de nós, a nossa presença online não é apenas sobre promover produtos ou ganhar seguidores. É sobre representar uma demografia que tem sido historicamente negligenciada e sub-representada», explica a criadora de conteúdo portuguesa que conta com 40 mil seguidores no Instagram. Para si, cada publicação, cada história e cada interação «são oportunidades para desafiar estereótipos, promover a aceitação do corpo e criar ligação com uma comunidade que muitas vezes se sente completamente sozinha». «Ver influenciadoras virtuais, criadas para se adequar a ideais de beleza inatingíveis, minar esse trabalho, pode ser verdadeiramente desanimador», lamenta. Mesmo com a promessa de serem programadas para parecerem diversas, de acordo com Catarina Corujo, a verdade é que estas não vivenciam as lutas e os preconceitos que as influenciadoras reais enfrentam. «Elas não viveram na pele a gordofobia, não sofreram de bullying ou discriminação e não precisam lidar com a baixa autoestima que pode acompanhar a rejeição social. Isso levanta-me muitas questões sobre a autenticidade e a profundidade da representatividade que elas realmente oferecem», revela.

Dinheiro, competição e irrealismo

Aitana Lopez não faz parte do concurso Miss Inteligência Artificial. No entanto, a influencer de 25 anos, de cabelo cor-de-rosa, de Barcelona, cuja aparência física está próxima da perfeição pode ganhar até 10 mil euros por mês em trabalhos de publicidade, segundo o seu criador Rubén Cruz, designer e fundador da agência The Clueless. No entanto a média ronda os 3 mil. A criadora de conteúdo já possui quase 500 mil seguidores no Instagram. «Começámos a analisar a forma como estávamos a trabalhar e apercebemo-nos de que muitos projetos estavam a ser adiados ou cancelados devido a problemas fora do nosso controlo. Muitas vezes, a culpa era do influenciador ou da modelo e não de questões de design», explicou no ano passado à Euronews. «Fizemo-lo para podermos viver melhor e não estarmos dependentes de outras pessoas que têm egos, que têm manias, ou que só querem ganhar muito dinheiro a posar», acrescentou. Além disso, Rubén Cruz adiantou que Aitana – que ganha cerca de mil euros por anúncio – é o rosto da Big, uma empresa de suplementos desportivos e coloca fotografias suas em lingerie na Fanvue, uma plataforma semelhante à OnlyFans. Segundo o seu criador, esta até recebe mensagens privadas de celebridades que não sabem que ela não é uma pessoa real. «Um dia, um conhecido ator latino-americano enviou-lhe uma mensagem a convidá-la para sair. Este ator tem cerca de 5 milhões de seguidores e alguns membros da nossa equipa viram a sua série de televisão quando eram crianças», revelou à mesma publicação. «Ele não fazia ideia de que a Aitana não existia», acrescentou. Rubén Cruz adiantou ainda que a agência tem recebido inúmeros pedidos de marcas que querem ter «a sua própria modelo personalizada». «Querem ter uma imagem que não seja uma pessoa real e que represente os valores da sua marca, para que não haja problemas de continuidade se tiverem de despedir alguém ou já não puderem contar com ele», contou. Além disso, de acordo com o mesmo, com a Aitana há também economias de custos. «A Kim Kardashian ganha um milhão de euros por uma foto no Instagram e não cura o cancro. Ninguém ganha um milhão de euros por colocar uma fotografia numa rede social, parece-me absurdo», afirmou, acrescentando que acredita que esta medida «pode ajudar a baixar os preços de mercado e dar um impulso às pequenas empresas que não podem pagar grandes campanhas publicitárias».

Segundo Catarina Corujo, a competição com figuras virtuais que são projetadas para serem «perfeitas» pode fazer com que influenciadoras como ela, que promovem uma beleza mais inclusiva e realista, percam visibilidade. «As marcas podem optar por colaborar com influenciadoras virtuais porque estas não têm imperfeições e podem ser controladas com precisão. Isso pode resultar em menos oportunidades para influenciadoras reais que lutam para redefinir o que significa ser belo e digno de atenção», desabafa. Além disso, garante, o mercado de influenciadores já é incrivelmente competitivo, e adicionar influenciadoras virtuais «pode intensificar essa competição». «Muitas vezes, as influenciadoras plus size já enfrentam barreiras adicionais para conseguir colaborações e patrocínios devido a preconceitos implícitos. A entrada de influenciadoras virtuais pode exacerbar essas dificuldades, tornando ainda mais difícil para nós sermos reconhecidas e valorizadas», aponta. «Acredito também que a criação de influenciadoras virtuais levanta sérias questões éticas. Ao serem usadas para promover produtos e estilos de vida sem transparência sobre sua natureza artificial pode, sem dúvida, enganar os seguidores e criar expectativas irreais», alerta ainda. Enquanto influenciadora humana, Catarina sublinha que é transparente sobre a sua jornada, sobre as suas lutas e vitórias. «Sendo muito crua sobre o quão desafiante pode ser o dia a dia de alguém com distúrbios alimentares e depressão, acredito que essa autenticidade é fundamental para construir uma conexão genuína e verdadeira com meu público. Vender um estilo de vida de forma fácil e imediata, gera imensa frustração no público que fica cada vez mais dependente dos milagres vendidos por uma indústria já por si, milionária», reforça.

Além disso, de acordo com a influenciadora natural de Aveiro, «há uma responsabilidade moral em reconhecer o impacto das nossas ações e das imagens que promovemos»: «As influenciadoras virtuais, por mais bem-intencionadas que sejam suas criações, não têm a mesma responsabilidade ética ou social, pois são, em última instância, controladas por empresas que podem priorizar lucros sobre a integridade e a autenticidade», explica. Por isso, a ascensão das influenciadoras geradas pela IA é um reflexo da inovação tecnológica, mas também um sinal de alerta para a indústria de influenciadores. «É crucial que continuemos a valorizar e promover a diversidade real e a autenticidade nas redes sociais. Como influenciadora mid/plus size, o meu compromisso é continuar a representar e a lutar pela visibilidade de corpos diversos e reais, ao desafiar padrões de beleza e promover a aceitação. A minha esperança é que, mesmo com as mudanças tecnológicas, a autenticidade e a humanidade permaneçam no centro da nossa presença online», remata Catarina Corujo.

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